Música: Blackstar, David Bowie

por Marcelo Costa

No dia 31 de dezembro, o mundo foi novamente surpreendido: “Blackstar”, o vigésimo quinto álbum de estúdio de David Bowie havia caído na “rede mundial de computadores”, uma forma exemplar de se despedir de um ano difícil e criar esperança para o que virá. Agendado para chegar ao mercado no aniversário do músico, na próxima sexta-feira, 08 de janeiro, “Blackstar” é o segundo álbum de Bowie nesta década (“Next Day”, o anterior, foi lançado em 2013 rompendo um silêncio de 10 anos!), e traz o Camelão em sua melhor forma, aqui acompanhado do inseparável Tony Visconti, membros da Maria Schneider Orchestra e até James Murphy, do LCD Soundsytem, que faz a percussão de duas faixas.

No total, “Blackstar” traz sete canções em pouco mais de 40 minutos de duração. Três faixas já eram conhecidas (“Sue” e “Tis a Pity She Was a Whore” foram lançadas digitalmente em 2014 e “Lazarus”, presente no musical off-Broadway de mesmo nome), mas surgem revigoradas, com Bowie chocando a pegada free jazz dos músicos da Maria Schneider Orchestra, que era mais intensa nas primeiras versões das canções liberadas anteriormente, e aqui soa incorporada a sonoridade Bowie pós “Young Americans” / “Station To Station” (1976), um mix de funk branco espacial e eletrônico que soa como se o Kraftwerk encontrasse John Coltrane em algum buraco negro perdido no universo e quisesse ninar estrelas cadentes.

O cartão de visitas de “Blackstar” veio na forma da faixa título, divulgada através de um clipe sombrio em novembro do ano passado com quase 10 minutos de art rock, lirismo e melancolia lunar (a faixa tinha 11 minutos, mas Bowie e Tony Visconti tiveram que diminui-la para 9m57s porque o iTunes não vende individualmente canções acima de 10 minutos!). O clipe desta pequena epopeia melodramática traz uma improvável mulher de vestido e cauda analisando o corpo de um astronauta caído e se decompondo sob a luz do sol eclipsada pela lua enquanto espantalhos humanos preveem a tempestade. Na letra, Bowie lamenta: “no centro de tudo, seus olhos”.

Segunda faixa liberada de “Blackstar”, no meio de dezembro, “Lazarus” mantém o ritmo da faixa título com batidas cadenciadas, embalando alguém que tenta, desiquilibradamente, dançar na lua: os passos são lentos, a condução é esparsa e a tempestade surge na forma de um solo desesperado de sax de Donny McCaslin. O personagem avisa que está no céu e que “tem cicatrizes que não podem ser vistas”, vive “dramas que não podem ser roubados”. A sensação de claustrofobia vai crescendo, mas David Bowie brada, tentando se convencer: “Vou ficar livre”. No purgatório, Lazarus sacaneia: “Eu estava olhando a sua bunda”.

Além das duas faixas lançadas oficialmente há outras duas canções lançadas em 2014: “Sue (Or in a Season of Crime)”, presente na coletânea tripla “Nothing Has Changed” (vídeo abaixo), e seu lado B, “Tis a Pity She Was a Whore”. Porém, ambas surgem em versões ligeiramente modificadas em “Blackstar” (compare!). Guitarras sujas são colocadas à frente e se fundem com a bateria seca e o arranjo free jazz na nova versão de “Sue (Or in a Season of Crime)” enquanto “Tis a Pity She Was a Whore” (que abre dizendo: “Ela me deu um soco como um cara”) soa mais climática, ainda que mantenha sua característica de dança na superfície da lua.

Entre as totalmente inéditas há a insinuante “Girl Loves Me”, que choca frases de “Laranja Mecânica”, o livro de Anthony Burgess que inspirou o filme de Stanley Kubrick, com palavras da gíria Polari, muito usada por gays britânicos, prostitutas, marinheiros, atores e criminosos entre os séculos 16 e 19. “Dollar Days” foi escrita no estúdio e é uma balada nervosa que combina um bonito arranjo de sax com batidas de violão cristalinas enquanto Bowie canta: “Estou tentando, estou morrendo de vontade, ou será que estou morrendo também?”. Fechando o álbum, “I Can’t Give Everything Away”, a canção de levada mais alegre do disco, com direito a solo de guitarra e vocais espaciais.

Prestes a completar 69 anos, David Bowie continua sua missão de criar trilhas sonoras para se ouvir sentado numa cratera da lua (ou, quem sabe, bebendo água em Marte). Ainda que acrescente free jazz ao seu futurismo, “Blackstar” (que merece audição cuidadosa via fone de ouvidos) soa como uma sequencia natural tanto de “Station to Station” quanto da trilogia “Low”, “Heroes”, “Lodger” (1977, 1977 e 1979, respectivamente), dos bons álbuns noventistas (“Outside”, “Earthling” e “Hours”) e também do recente “The Next Day” (2013), comprovando que Bowie continua genial em estúdio. Só resta voltar aos palcos do Planeta Terra. Nós, meros mortais, aguardamos.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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5 thoughts on “Música: Blackstar, David Bowie

  1. “Só resta voltar aos palcos do Planeta Terra. Nós, meros mortais, aguardamos” Infelizmente não vai acontecer!!!! Me pegou de surpresa, não sabia que ele estava doente. Perdemos um grande gênio da música. Descanse em paz Bowie. Deixou de “último suspiro um belo disco”

  2. Bowie foi um talento que surgiu e foi lapidado no decorrer da vida, pela sua visão além do alcance…até seu estado de saúde foi blindado…ele é o cara, obrigado Deus por deixar eu ver, ouvir, sentir a arte desse incrível superstar…

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