Entrevista: La Carne (2015)

por Leonardo Vinhas

“Engraçado perceber que todas as pessoas com quem o [vocalista] Linari e eu tocamos hoje não têm banda. Pararam de tocar. Continuamos a tocar porque gostamos de som, mesmo. (…) Antes, quando a gente conversava com alguém, uma pergunta era fatal: ‘e se a banda der certo, vocês vão deixar de trabalhar?’. Meu, quantas vezes eu ouvi isso! Pô, se não tivesse dado certo, o La Carne não tinha música e nem CD gravado. Não teria durado tanto tempo. Mas para essas pessoas, o ‘dar certo’ é ser empregado de gravadora e receber todo mês. E isso está acabando. Felizmente”.

Palavras de Jorge Jordão, guitarrista do La Carne, impressas no livro “Desconhece o Rumo, Mas Se Vai” (2006), trabalho de conclusão do curso de Jornalismo de Fernando Lalli (hoje o homem por trás do nome The September Guests). Estamos em 2015 e elas seguem válidas: a banda de Osasco completa 20 anos de atividade. Nos mais recentes deles, não houve um mês sem que fizessem ao menos um show, e agora acabam de lançar “Volume 5”, disco assim intitulado “porque não é qualquer banda que aguenta tanto tempo na estrada e lança cinco discos”, segundo o baixista Carlos Remontti.

Essa vontade de seguir em frente, tão empedernida quanto apaixonada, transparece na sonoridade do lançamento mais recente. Ou melhor, sempre transpareceu, mas agora está mais nítida. “Volume 5” é um disco alto, veloz, “nervoso” e, certamente, é o registro de estúdio que é mais fiel ao que acontece nos palcos – decididamente o ambiente em que o La Carne derruba queixos, arregala olhos e vence resistências. Pode se alegar que o álbum de estreia, o impecável (e indispensável) “La Carne” (1997), soava melhor, já que tinha uma sonoridade mais assimilável. Mas neste “Volume 5” escuta-se, com peso e volume antes inauditos, o baixo à frente conduzindo a canção para o ataque da guitarra sem pedais, das batidas quebradas e cheias de contratempos de José Ronconi, da voz rasgada e aguda de Linari.

Os fãs de longa data (e a banda tem um séquito fiel) têm apreço especial pelas letras. O universo poético do La Carne se alterna entre se engalfinhar na vida como um boxeador em clinch e aceitar a própria contrariedade com prazer e como força motriz. Já não é mais um imaginário tão sinistro quanto nos discos anteriores – parece, de fato, que alguns demônios estão sob controle. E há mais humor, como em alguns versos de “Luz Vermelha” e “Eterna Repetição” – aliás, a primeira reza que “o que a gente não pode mudar /a gente avacalha e é total”. Quando recebeu o pedido de entrevista para falar desse disco, a banda aceitou, pedindo apenas que as respostas fossem creditadas coletivamente. Assim, entenda a conversa abaixo como um diálogo com quatro cabeças pensantes, e que não são muito afeitas a respostas curtas nem a raciocínios preguiçosos.

Ao ouvir “Volume 5” fica evidente a diferença na qualidade sonora: nunca um disco de vocês teve um som tão “real”, com a velocidade e o peso da banda. O que rolou: mais experiência, mais grana, mudança de ares, ameaçaram o [produtor] Ronaldo Rossato (rs)?
O Ronaldo é um velho chapa nosso, desde os tempos de colégio em Osasco. Ele gravou dois CDs do La Carne – o “Bom Dia, Barbárie” (2002) e o “Desconhece o Rumo Mas se Vai” (2003). Na época, ele estava aprendendo a produzir e a pilotar a mesa, usar ProTools, e toda parafernália do seu estúdio. E nós também estávamos aprendendo: no caso, aprendendo a ser uma banda. Vivíamos outros tempos – nós e ele. Claro que todos nós ganhamos experiência, ao longo do tempo. E, olha, respeitamos sua opinião, mas tem o seguinte: não achamos que o “LC5” tem “mais qualidade” que os outros, como você diz. Todos os nossos trampos anteriores “fotografaram/registraram” o momento que a gente estava vivendo, o que a gente estava pensando ou escutando na época, o que a gente estava querendo na época, ou sei lá… Gostamos de todos eles justamente por causa disso. Fizemos o que estava ao nosso alcance fazer, dentro das nossas limitações, em cada um dos discos. Por relaxo ou preguiça, ou pelos dois, nunca procuramos um produtor pra nos dizer “o que fazer”. O que sempre prevaleceu é a vontade de tocarmos juntos. É isso. Ninguém aqui é virtuose. Nem almeja o “megaestrelato”. Só queremos estar juntos. Esse negócio de “qualidade sonora” vai da cabeça de cada um, velho. Veja o “Bom Dia, Barbárie”, por exemplo: é um disco tosco, cru, cheio de atropelos – gravamos em três dias! Mas tem gente que gosta dele, vai entender… O Jair Naves (que é um artista que admiramos há tempos) disse numa entrevista que adora esse disco. O [dramaturgo Mario] Bortolotto usou a música-tema na trilha do filme “Nossa Vida Não Cabe num Opala”. O Mateus Novaes, do Krias de Kafka, também diz que prefere o “Bom Dia, Barbárie” por ele ser mais “garranchão”. Quer dizer, como se mede essa tal “qualidade”? É pelo “mercado”? Moda? Pensa rápido: Beatles ou Pistols? Cólera ou Paralamas? Dimmu Borgui ou Marduk? Cê vê, fi? É muita treta… Certa vez, um piá ouviu “Granada”, e comentou com um brother nosso, em tom sarcástico: “Nossa, que legal a música! Quanto será que eles pagaram por esses timbres?” Rapaz, não dá para saber se é para dar risada ou chorar diante dum comentário desses! Ó o raciocínio do cara… Pô, se não gosta de nós tudo bem, direito dele. Agora, insinuar que é uma questão de grana, “ficou bom porque foi caro”, é de uma pobreza de espirito que só dá pra lamentar. É aquele ditado de vó: “Onde falta pão, todos brigam, e ninguém tem razão”. O rock brasileiro anda meio assim, ultimamente… Por outro lado, tem o seguinte: a entrada do Zé Ronconi na bateria foi muito importante pro “5” ter saído do jeito que saiu. Além de grande músico, o Zé é um cara muito legal, tranquilo, descomplicado. Acho que a chegada dele deu uma oxigenada nas ideias, criou uma harmonia nova, bem bacana, entre todos nós. Certamente, isso está refletido no disco.

Também é o disco em que a influência do pós-punk está mais evidente. Não cópia, nem plágio, nada disso. Mas dá para sacar, principalmente em “Diógenes de Oz”, estruturas e sonoridades que estão bem próximas da formação musical de vocês. Como pintou essa “revisitada às raízes”?
É que quando fomos pra Curitiba, tocamos com a banda Munay Xamanismo, tomamos uns ayahuascas, daí voltamos às nossas raízes, ao útero do rock osasquense, uma imensa vagina cósmica… (risos) Pô, sacanagem essa pergunta! Mas vamo lá: há 20 anos a gente faz música do mesmo jeito: em jam sessions, nos ensaios, em “la horita”… Ninguém traz nada pronto de casa. A gente sempre trabalhou assim. O Linari vai cantando / improvisando, a gente vai tocando / improvisando, e assim a gente vai tentando achar algo que desemboque numa canção. Método intuitivo. Tem dia que não sai porra nenhuma, nada que preste. Mas tem dia que a coisa vira – e aí, tu ganha o dia! O Jorge guarda na casa dele quase todas as nossas gravações de ensaio. São horas e horas, nêgo! Então, não dá pra racionalizar muito o lance. Não dá pra planejar previamente uma sonoridade x ou y, entende? É tentativa e erro, assim vai. As boas e más influências. Pós-punk, soul, MPB, grunge… tá tudo ali. Mas tem uma coisa: “Diógenes de Oz” foi a primeira música que compusemos junto com o Zé. Talvez isso queira dizer alguma coisa, não?

Há muitos anos vocês colocam as canções de vocês para download gratuito (os quatro discos anteriores estão liberados no www.lacarne.com.br). Agora tem esse lance que nem baixar o pessoal baixa mais: ouve nos serviços de streaming, os Spotify da vida. Então a primeira pergunta é: vocês vão continuar oferecendo as músicas para quem quiser baixar de graça? E a segunda: esse jeito que as pessoas têm hoje de ouvir música, tão diferente de como era quando vocês começaram a fazer música, influencia de alguma maneira na forma como os discos e as canções são feitas?
Quando tínhamos repertorio pra gravar o “5”, conversamos muito sobre isso. Tinha uns mano que dizia: “Pô, gravar CD? Que coisa mais antiga, meu! Ultrapassada etc e tal”. Conversamos com muitos amigos sobre isso. Mas concluímos o seguinte: pra nós, é uma questão geracional, cara. Como você diz, quando começamos a fazer nossas músicas, nossa inspiração eram os LPs e CDs das bandas que fizeram nossa cabeça, de maneira que não teria muito sentido a gente seguir outro padrão só pra pagar de moderninho. Mas estamos aprendendo muitos truques novos (streaming, Spotify, essas novas “prataforma”), e tal e coisa. O disco vai estar ali, sim. Hoje em dia, os nossos filhos, e também os fãs mais jovens, nos ensinam muitas coisas, nos dão conselhos muito úteis… E sobre o download gratuito: vai rolar, mas ainda vai levar um tempinho. Por ora vamos vender em shows para levantar uma grana e pagar as contas.

A quem a raiva de “América” é direcionada? Tem muitos alvos ali…
Linari mandou essa: “querido Léo, ‘Anger is an energy!’. E mais: as carapuças são de todos os tamanhos: P, M, G, e até GG, como não? Afinal, com exceção do Eduardo Cunha, ninguém é um poço de virtudes. Nem você. Muito menos nós. É ou não é? Ninguém tá imune ao filhadaputismo institucional…

Aproveitando que estamos falando dessa canção: como andam os “roqueiros adolescentes de Latinamérica”? Quem é, na opinião de vocês, a molecada que vai dar aquela sacudida necessária para a bunda-molice perder a predominância?
Rock’n’roll é uma linguagem universal. Já faz parte da cultura. Ninguém precisa ‘salvar o rock’, porque ele sempre existirá. Temos encontrado bandas incríveis tocando por aí – mesmo sem apoio ou cobertura de imprensa. Se atualmente predomina a “bunda-molice”, como você diz, é porque vivemos tempos difíceis, baby… O Brasil tá uma bosta, o mundo tá uma bosta, todos se segurando como podem… Mas acho que é nessas horas que o rock se faz necessário, em tempos assim é que ele se reinventa, renasce das cinzas. Como diz aquela música do Relespública, “os garotos são espertos”. Quem viver, verá

20 anos, o quinto disco saindo, todos às próprias custas. É justo pegar um dos bordões do disco e perguntar: aonde isso vai dar? E não venham com esse papo de “desconhece o rumo mas se vai”. (risos)
Sei lá. “Deixa acontecer”… (risos)

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Leia também:
– Entrevisata: La Carne (2005): “O nosso público cativo é de 4 ou 5 pessoas! (risos)” (leia)
– O álbum “Granada”, do La Carne, supera até o mesmo o disco de estréia da banda (leia)

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