Entrevista: “Estou bem, mas também não chuta o meu calcanhar que ainda não virei santo!”, avisa Nasi (2015)

por Bruno Capelas

Nasi está menos irado. Não é que Marcos Valadão – nome de batismo do vocalista do Ira! – tenha perdido a sua raiva e o seu jeito selvagem de cantar. Mas, ao longo dos últimos tempos, o cantor parece ter encontrado a temperança. A sensação fica clara em “Egbe”, seu quarto disco solo, lançado recentemente em CD e DVD. “Não gosto de falar em maturidade. Porra, se um disco é maduro, o próximo com certeza vai apodrecer”, brinca o cantor, em entrevista ao Scream & Yell. Mas, apesar da boa fase, ele avisa: “Estou bem, mas também não chuta o meu calcanhar que eu ainda não virei santo!”.

Baseado em boa parte do repertório de “Perigoso”, álbum de estúdio de 2012, “Egbe” é o resultado de um especial que Nasi gravou para o Canal Brasil no Audio Arena, um estúdio que fica dentro do Estádio do Morumbi, em São Paulo. “Estou brincando que a única coisa boa que saiu atualmente do Morumbi foi o estúdio – e o meu disco”, diz o são-paulino Nasi, decepcionado com a fase atual do tricolor paulista.

Entre os destaques do repertório, regravações de “Dois Animais na Selva da Rua” (de Taiguara, mas conhecida pela voz de Erasmo Carlos), “Sol e Chuva” (Alceu Valença) e do hino “Rubro Zorro”, em pegada bluegrass. Além disso, vale a pena prestar atenção na forma como o disco retrata a relação de Nasi com a cultura iorubá – o cantor é iniciado no culto de orixás desde 2009. “É algo que faz parte da minha vida, mas não vou ficar fazendo música com temática de orixás toda hora”, avisa o vocalista do Ira!, que deixa entrever o amor do cantor pelo afrobeat na faixa-título. “No final das contas, acho que saiu mais com cara de Carlos Santana do que de Fela Kuti”, comenta.

Na entrevista a seguir, o cantor fala mais sobre o repertório de “Egbe”, discute sua ligação com a cidade de São Paulo e comenta sobre o atual momento do rap brasileiro – ao lado de André Jung, ele é responsável pela produção de um dos primeiros discos do gênero no país, “Hip Hop Cultura de Rua”, de 1988. “Eu não queria virar cantor de rap. Eu sou um cantor de rock e de blues. O que sempre me atraiu no rap era trabalhar na produção”, diz Nasi, que vê “o funk como um filho bastardo do rap” e revela ser fã de Emicida e Criolo.

Além disso, Nasi diz que os planos para a volta do Ira! não acabaram apenas na turnê que rodou o País nos últimos dois anos. No papo, ele também lembra passagens da carreira da banda – incluindo o polêmico e seminal “Psicoacústica”, de 1988. “O ‘Psicoacústica’ não tocou em rádio nem com todo o jabá da gravadora. É um disco esquisito para o padrão do rock radiofônico brasileiro”, afirma o cantor, que não vê o rock dos anos 1980 como um movimento. “Nós só éramos garotos que tocávamos nos bares e ensaiavam nas garagens”.

O que é o “Egbe”? Por que registrar de novo o repertório do disco “Perigoso”?
Originalmente, esse projeto era um especial para a TV. Fui convidado pelo Canal Brasil para produzir um musical para a faixa de música do canal. O “Perigoso” saiu apenas em CD, em 2012, e eu não tinha feito nenhum registro visual dele. Achei que seria legal que esse repertório fizesse parte do especial de TV, e ao mesmo tempo produzir videoclipes para que essas músicas ganhassem uma sobrevida.

Você gravou “ao vivo” dentro de um estúdio no estádio do Morumbi, o Audio Arena. Imagino que tenha sido algo incrível para um são-paulino…
Foi uma coincidência (risos). Sou um são-paulino conhecido, então pode parecer que é algum arroubo de torcedor, mas não é. Conheci o Audio Arena, que é um camarote nos dias de jogo, quando fiz o último show do Ira! de 2014 em um evento fechado lá. Depois, encontrei o Andreas Kisser, que me contou que tinha tirado um baita som dentro daquele estúdio. Foi uma boa soma, e acabamos fechando uma parceria. Usamos algumas horas no Audio Arena em troca de colocar o nome deles na capa. Esse é o segundo DVD que eu faço nesse formato dentro do estúdio, mas ao vivo [o primeiro foi “Vivo na Cena”, de 2010]. Estou brincando que a única coisa boa que saiu atualmente do Morumbi foi o estúdio – e o meu disco. Dizem que a nossa arena está defasada, mas o são-paulino pode se gabar que o estádio tem um estúdio. Infelizmente, não pudemos utilizar o campo como cenário, por conta das variações de luz ao longo das 12 horas de gravação.

A sua ligação com a cultura iorubá já existe há um bom tempo, mas é a primeira vez que isso aparece escancarado em um disco seu – a começar pela faixa-título. Os orixás são rock’n’roll?
Nem diria que é uma ligação pelo rock’n’roll. Já conversei com outros artistas, como o Kiko Dinucci e a Roberta Sá, e imagino que um dia possa surgir um trabalho que fale sobre orixás. Hoje esse tema entra como mais um dos assuntos que eu posso cantar. As minhas letras são fruto de coisas que eu penso e vivo. Mas é bom explicar: a minha ligação não é nem com a umbanda, nem com o candomblé, mas sim com a origem dos dois. A cultura de orixás é da tradição iorubá, um povo que está entre a Nigéria, o Benin e o Togo. Mais que uma nação, é uma etnia linguística. Esse culto aos orixás é a matriz que gerou o candomblé, que é uma religião brasileira, e também a umbanda, que tem culto a orixás, mas misturado com espiritismo e catolicismo. Na verdade, eu sou iniciado desde 2009 em vários orixás, em uma progressão que vai se aprofundando com o tempo. É algo que faz parte da minha vida, mas não vou ficar fazendo música com temática de orixás toda hora.

Não é uma coisa à la Cat Stevens, que canta sobre Alá desde que se converteu ao islamismo.
[O culto aos orixás] é um tema importante, mas não é central. Uma das coisas bacanas do culto é que não há necessidade nem de conversão nem de pregação. A religião e a cultura são uma coisa só. Você fala de comida, de música, de dança, de plantas, de fenômenos da natureza. É uma religião sobre a vida e não sobre formas de conduta. Agora, tem uma música que é legal nesse disco, que é “Egbe Oniri”, que é uma tentativa minha de fazer um afrobeat. Sou apaixonado por Fela Kuti, o que pode parecer exótico para algumas pessoas, porque isso nunca se manifestou na minha música. Essa música é baseada em um canto de orixás, e a melodia dela me chamou a atenção porque ela sempre pareceu com uma melodia ocidental. No final das contas, acho que saiu mais com cara de Carlos Santana do que de Fela Kuti. Ah, o nosso sangue latino… (risos).

Outra ligação tua que pouca gente conhece é a sua paixão pelo rap – você e o André Jung foram responsáveis pela produção do “Hip Hop Cultura de Rua”, um dos primeiros discos de rap do Brasil. Como é que você vê o rap brasileiro hoje?
Olha… tem algo que eu não gosto: o rap no Brasil acabou gerando uma cultura musical que não me agrada, o funk. O funk é um filho bastardo do rap. Tirando o MC Catra, que eu gosto muito. Depois, fiquei sabendo que ele gosta de rock…

Ele gravou um disco de metal recentemente…
Talvez por isso que sempre o achei diferenciado. (risos). Mas vejo com muitos bons olhos essa nova geração do rap, especialmente o Criolo e o Emicida. O Emicida evoluiu o texto do rap: é fruto não só de um talento poético que ele tem, mas também do freestyle. Ele saiu da escuridão dos assuntos de cadeia. É um baita de um talento. Já o bacana do Criolo é que ele traz o rap para a música popular brasileira. Essa turma veio em um momento muito bom, dando uma guinada em um momento de desgaste do rap nacional. Parecia, antes do surgimento deles, que o rap tinha chegado a uma encruzilhada no Brasil, como o rock e qualquer gênero que tem seu apogeu e sua decadência. E eles trouxeram o rap de volta com muita força. Sem demagogia nenhuma, acho o rap brasileiro o melhor que há no mundo hoje em dia. Sério mesmo. Sou fã da velha guarda do rap americano: Curtis Blow, Grandmaster Flash, De La Soul, A Tribe Called Quest, até o final dessa geração old school. Depois, o rap americano ficou um lixo, virou um rap ostentação. No Brasil, o rap ainda tem essa urgência de ser uma música que fala sobre a periferia sem transformá-la em fetiche intelectual. O rap ainda é uma ponte muito importante de ser porta-voz do que acontece, dos anseios, da periferia das grandes cidades. Sem falar na parte musical: no Brasil, o rap é influenciado pelo samba. O Thaíde, o D2, o Rappin Hood, todos eles têm um suíngue diferente que é fruto da nossa música. Quando eu trabalhei com rap, muita gente achava que eu ia virar cantor de rap, que o Ira! ia virar rap.

Ainda mais porque na época vocês tinham uma música que chamava… “Farto do Rock’n’Roll”.
Eu não queria virar cantor de rap. Eu sou um cantor de rock e de blues. O que sempre me atraiu no rap era trabalhar na produção. Era trabalhar com a possibilidade de fazer músicas com pedaços de músicas antigas, com samplers, e o DJ que pega o pedaço de uma música do Cartola e transforma numa batida. Isso era o que me chamava a atenção, e é isso que eu acho bacana no Brasil, de tantas possibilidades. Eu acho o rap brasileiro maravilhoso, de Racionais a Criolo.

Voltando a falar do “Egbe”, uma coisa que me chamou a atenção foi que você gravou, de novo, “Dois Animais na Selva da Rua”, do Taiguara. É a segunda música do “Carlos, Erasmo…” [disco de 1971 de Erasmo Carlos, um dos melhores de sua carreira] que você grava. Qual é a tua ligação com esse disco?
“Dois Animais” foi a única música não autoral que eu trouxe do “Perigoso”. Eu me identifico tanto com a letra que até sinto como se ela fosse minha. “Carlos, Erasmo…”, para mim, é “o” disco. É um dos melhores da MPB e, para mim, é o melhor disco do Erasmo Carlos. Se eu pudesse, gravaria todas as músicas desse disco. Quase gravei “Não Te Quero Santa”, que tem uma coisa meio psicodélica incrível, meio britânica. Gostaria muito que algum dia, uma curadoria me chamasse para cantar esse disco em algum projeto. Não se surpreenda se eu gravar mais uma música dele em algum momento, seja no meu trabalho solo ou em alguma música para o Ira!. A gente fala muito sobre os anos 1960, mas a grande década musical para mim é a de 1970. Nos anos 1970, a gente teve o rock progressivo, o heavy metal, o funk, o punk rock, o glam, a disco music… eu devo estar até esquecendo alguma coisa. São muitos subgêneros dentro da música pop que foram incríveis. Os anos 1960 tiveram um sonho de liberdade incrível, mas os anos 1970 são incomparáveis. Mas, voltando à “Dois Animais”: eu só acho que vale a pena fazer uma regravação quando eu tiver algo a acrescentar. Como o que eu fiz agora com “Rubro Zorro”…

Era a minha próxima pergunta…
Para eu regravar alguma coisa do Ira!, eu teria que trazer uma nova proposta. Gosto muito de country americano, de bluegrass, coisas a la Johnny Cash. “Rubro Zorro” fala sobre bandidos e anti-heróis, e aquele verso do “faroeste do Terceiro Mundo” sempre me fez pensar que ela tinha uma cara de trilha de filme do Velho Oeste. Criei uma levada para ela de bluegrass, para ficar mais com cara de Ennio Morriconne, das trilhas do Sérgio Leone e do Tarantino.

Certa vez, li em uma entrevista sua, uma frase que dizia que “o melhor disco do Ira! é o que a gente não gravou em 1984”. Como assim?
Isso foi uma frase meio superdimensionada… O que eu quis dizer foi que o Ira! teve uma fase muito bacana influenciada pelo pós-punk e pela dissonância do Gang of Four em 1984. Foi a época que a cozinha do Ira! tinha o Charles Gavin na bateria e o Dino [Nascimento] no baixo. Tínhamos um contrato com uma gravadora na época, mas estávamos na gaveta, que nem time de futebol que contrata jogador e não sabe o que fazer com ele. Foi uma época em que nós tocávamos muito no underground paulistano, uma época intensa com Mercenárias, Smack, Voluntários da Pátria. A gente criou um pós-punk paulistano muito legal, mas que nem chegou ao vinil. Todo mundo lançou seus discos, menos a gente. Já o Ira! ficou naquele limbo, e quando nos livramos da gravadora, já estávamos numa fase mais solar, com uma influência mod. Essa fase pós-punk do Ira! infelizmente não teve registro, embora algumas músicas daquela fase acabaram entrando em outros discos para completar repertório. Separadas daquele contexto, no entanto, elas perderam sentido. O que eu queria dizer é que a gente teria feito um disco diferente em 1984, que mudaria a nossa carreira.

Os críticos e os fãs do Ira! se dividem entre o “Psicoacústica” (1988) e o “Vivendo Não Aprendendo” (1986) como o melhor disco da banda. Queria saber qual é o seu disco favorito da banda.
O “Vivendo”, em termos de repertório, é de fato um dos melhores discos da banda. Particularmente, não gosto do som dele. O Edgard gosta muito da sonoridade, mas o “Vivendo” foi um disco que teve muitos problemas: começamos gravando no Rio de Janeiro com o Liminha, não nos demos bem e o Liminha mandou a gente acabar o disco sozinhos. Aí voltamos para São Paulo com a master, tivemos reduções na qualidade da fita, que prejudicaram o som dos pratos no disco. Gosto das músicas, mas não gosto do som, que é inferior até ao “Mudança de Comportamento” (1985), que foi gravado e mixado em uma semana, e é bem superior. Por isso, tendo a gostar mais do “Psicoacústica”. É um disco referência no rock nacional. Foi um disco mixado a oito mãos – eu, Edgard, André e o produtor Paulo Junqueiro –, em uma época que não tinha ProTools nem nada. É um disco que não dá mais para fazer de novo daquele jeito. E é legal porque foi um disco anti-clímax para a gravadora: nós tínhamos dois discos que eram praticamente de power-pop, com refrãos, melodias assobiáveis, e fizemos um disco esquisito, cheio de hard rock e psicodelia. O single chamava “Pegue Essa Arma” e não tinha nenhum refrão. O “Psicoacústica” não tocou em rádio nem com todo o jabá da gravadora. É um disco esquisito para o padrão do rock radiofônico brasileiro. Outro disco que eu gosto muito é o “Meninos da Rua Paulo” (1991), que tem um som bem bacana, ali no final da nossa passagem pela Warner.

O Ira! voltou em 2014 para uma série de shows e segue em turnê pelo Brasil. Vocês apresentaram uma música nova, “A-B-C-D”. Vem mais por aí?
Nós [Nasi e Edgard] já começamos a falar sobre lançar material inédito para o Ira! No entanto, aconteceu uma coisa que eu acho positiva: estou lançando agora esse meu trabalho, que surgiu antes da gente oficializar a volta do Ira!, e o Edgard está produzindo um CD que deve sair agora. Nesse momento, a gente não consegue sentar para criar um disco novo, por conta dos nossos compromissos solo. Eu não descartaria que o primeiro registro dessa nova fase Ira! seja o show ao vivo do Rock in Rio, com a participação do Rappin’ Hood e do Toni Tornado. Não é um show ao vivo qualquer – até porque a gente tem o “MTV Ao Vivo” e o “Acústico” –, mas um show bacana com boas participações. Isso não está decidido, mas estamos considerando a hipótese desse disco servir como um aperitivo dessa nova formação do Ira!. Naturalmente, quando eu e o Edgard acabarmos de apresentar os nossos trabalhos solo, nossos espíritos criativos vão se encaminhar para fazer coisas novas para o Ira!.

De repente é o caso de gravar o tal disco de 1984, do jeito que vocês queriam…
É que eu não sei se… aquele repertório era mais do que uma coleção de músicas. Era o jeito de tocar bateria do Charles… Há coisas que, se não acontecem num tempo, não acontecem mais. Mas, quando a gente for fazer o próximo disco do Ira!, a gente tem que ter em mente uma coisa: tem que ser o melhor. Pode até não ser, mas a gente quer fazer o melhor disco que a gente já fez. O disco é sempre um retrato seu. Não dá para calcular matematicamente como vai ser o próximo disco.

O “Mudança de Comportamento” fez 30 anos em 1985, e ele faz parte de uma onda de discos entrando nessa fase balzaquiana. Como você vê a sua geração de rock brasileiro? Alguns colegas envelheceram mal?
(Respira)… Olha, acho que foi uma geração importante para o momento que o Brasil viveu. O Brasil precisava de artistas que pudessem ser identificados com a juventude, porque a música popular brasileira da época estava “abolerada”. Os ídolos da MPB, por várias questões, começaram a cantar boleros, e o rock meteu o pé na porta. Mas, como em todo movimento hegemônico, a dominância faz muito mal para a criatividade: para cada banda bacana, há dez porcarias. Na época, todo mundo era do rock, as gravadoras tinham lançamentos de rock em escala industrial, e isso acabou tirando muito a atualidade e a intensidade do rock. 1985 foi um ano incrível: primeiros discos de Ira!, Legião, RPM… foi um ano que, se você olhar a fundo, foi realmente fantástico. Dá até vontade de chorar pensando no que a gente tem de música pop hoje. Mas é difícil falar em geração. Não acho que a geração do rock brasileiro seja um movimento como foi a Tropicália ou a Bossa Nova. Esses movimentos têm artistas articulados entre si, alguns tinham até manifesto. Nós éramos só garotos que tocavam nos bares e ensaiavam nas garagens. Ninguém imaginou que íamos virar fenômenos de mercado. Se houve articulação artística para criar um movimento, foi aqui em São Paulo: Ira!, Mercenárias, Voluntários da Pátria, Akira S, Smack… chegamos até a ter manifesto, alguns dos músicos tocavam na banda do outro, ficávamos trocando figurinhas sobre Joy Division e Gang of Four. Aquilo, sim, foi o nosso movimento, que acabou não tendo repercussão nem virou tendência. É até engraçado, porque hoje, aquele som que a gente fazia influenciado por The Cure, Gang of Four, New Order, viraram o som que as bandas faziam há algum tempo atrás no rádio, como Franz Ferdinand, Kaiser Chiefs, Interpol. Precisou passar 30 anos para aquele som virar pop?

Voltando ao disco novo, “Não Vejo Mais Nada de Você”, é uma música que tem muito a cara de São Paulo. Quando vi o show do Ira! na Virada Cultural, imaginei que não havia ocasião melhor para a banda voltar do que naquele palco específico, na frente da estação Júlio Prestes. O Ira! sempre foi considerada a cara de São Paulo. Como você vê a cidade hoje?
“Não Vejo Mais Nada de Você” foi intencionalmente feita para falar de São Paulo. O Ira! sempre foi muito identificado com São Paulo, mesmo que não intencionalmente. Temos três ou quatro músicas que falam de São Paulo mesmo, como “Meninos da Rua Paulo”, “Envelheço na Cidade”, “Pobre Paulista”. Por outro lado, essa coisa de ser “de São Paulo” começou a incomodar a gente, porque a gente viajava o Brasil inteiro e todo mundo achava que a gente era bairrista. O nosso sotaque também influía bastante nisso, porque ele é um pouco peculiar. Chegou um momento da nossa carreira que a gente sentiu que essa ideia de “paulista” estava virando algo caricatural. “Ah, lá vem os paulistas…”. Não era a nossa intenção fazer uma música que falasse de São Paulo. Só achávamos que não fazia sentido pegarem no nosso pé: o artista baiano faz música sobre a Bahia. O carioca, sobre o Rio de Janeiro, e os gaúchos adoram falar de Porto Alegre. Por que a gente não pode? São Paulo é uma cidade de todos e não é de ninguém. Aí, mais recentemente, quando comecei a compor as músicas do “Perigoso”, lembrei disso e acabei fazendo a “Não Vejo Mais Nada de Você”. A parte engraçada é que os lugares que eu falo na música, como o Riviera e o Cine Belas Artes, acabaram voltando a funcionar agora, então a música ficou meio fora do tempo. Essas coisas ficaram meio anacrônicas, porque a música foi escrita em 2010. A gente tem dois movimentos em São Paulo hoje: um é a perda e a descaracterização de espaços que são tradicionais, e outro movimento de revitalização do centro, que ajudou a salvar algumas coisas. São Paulo é a cidade do futuro, do progresso, mas não pode fazer disso um motivo para perder sua identidade afetiva. Foi isso o que eu procurei falar nessa música. Vai ver que a música fez uma coisa mágica para fazer esses lugares voltarem.

Nos últimos tempos, você parece mais bem humorado, seja na postura no palco, nos discos ou até mesmo nessa conversa. A fase está boa? Qual é a receita disso?
Estou bem sim. Acho que, depois do tanto que vivi, e já vivi momentos bem difíceis, durante a década de 1990 especialmente. Não gosto de falar que é a religião, porque não é só isso. As pessoas às vezes acham que é só a religião que salva, e não é. Acho que tem um conjunto de coisas que eu busquei, administrando coisas que sempre me foram carentes, como paciência, tolerância. Não gosto de falar de maturidade. Detesto essa palavra, especialmente porque usam muito ela na música. “Ah, o disco novo do Ira! mostra a maturidade da banda”. Porra, se esse disco é maduro, o próximo com certeza vai apodrecer, não é mesmo?

Maturidade nem sempre é uma coisa boa…
Precisa muita delicadeza no trato musical, né? Pô, sei lá, fala que o disco tem influências mais amplas, que o disco explora outras coisas… Cheguei num momento da minha vida que eu tive que provar pra mim mesmo um pouco do meu valor, nessa fase solo sem o Ira!. Depois que você passa 30 anos como cantor do Ira!, você fica um pouco limitado como cantor do Ira!. Nesse tempo que fiquei solo, tive que me virar sozinho, e o saldo foi muito positivo: fiz muitos shows, tive um disco indicado ao Grammy Latino, corri todo o País. Isso me deu um upgrade pessoal. Estou num momento muito satisfeito, independentemente de não estar estourado em rádio ou ter discos de ouro, coisas que eu tive, mas talvez não tenha tido o prazer como eu vivo hoje.

O Nasi está menos irado?
(risos). É, mas também não chuta meu calcanhar que eu não virei santo! Hoje, eu já não fico arranjando muita sarna para me coçar.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop

Leia também:
– Entrevista Ira! 2007: A gente sempre acaba descobrindo um terceiro som”, diz Egdard (aqui)
– Entrevista Ira! 2001: “Procuramos fazer justiça com nosso repertório”, diz Edgard (aqui)
– Entrevista Nasi 2010: “Perdemos a oportunidade de dar um tempo”, diz sobre o Ira! (aqui)
– Entrevista Nasi 2013: “Se tem uma pessoa que pode dizer se o Ira! volta ou não, sou eu” (aqui)
– “Vivo na Cena”, Nasi -> “O Ira! está morto, mas Nasi está vivo… e rouco”, por Mac (aqui)
– A volta do Ira! em São Paulo: “O grande show da Virada Cultural de 2014” (aqui)
– Ao vivo no Festival Casarão 2013, Porto Velho, Nasi mostra vigor e lucidez (aqui)

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One thought on “Entrevista: “Estou bem, mas também não chuta o meu calcanhar que ainda não virei santo!”, avisa Nasi (2015)

  1. Lembro quando o Nasi estava nos quebra pau por causa do Ira. Eu até achei que não ia se levantar.
    Mas depois ele começou a participar de vários programas de rádio em ascensão, criando musica nova, disco novo. Acredito que foi a melhor coisa para ele sair do Ira.
    É como ele mesmo disse, é nítida a evolução pessoal dele como cantor e como pessoa também.
    Fui em alguns shows dele e são muito bons, mais que recomendado.

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