Entrevista: Cristiane Ferronato

por Leonardo Vinhas

Para quem não está habituado ao universo da música erudita, a simples menção da palavra “coral” tende a provocar bocejos. A primeira imagem que vem a mente são apresentações natalinas condescendentes, bem afinadas, mas sem nenhuma inspiração musical ou intensidade pessoal. Claro, o público que é consumidor frequente desse tipo de música tem recursos para diferenciar o insosso do inspirado, mas o “leigo” tem razões para entediar-se, visto que costuma ser exposto ao que há de mais comum e maçante na área, já que, como em muitos estilos musicais, nem sempre a produção mais relevante é a mais acessível.

Por isso é perfeitamente compreensível que o nome Meninas Cantoras de Nova Petrópolis provoque resistência ao convite de escutar sua música. Porém, o salto de confiança vale a pena. Acompanhadas de um trio instrumental, as jovens cantoras desfilam um repertório que vai de canções sérvias a Tulipa Ruiz com uma unidade notável. Uma apresentação ao vivo do numeroso combo (são 27 meninas atualmente) pode deixar muita gente de queixo caído – como aconteceu com muitos na última edição do Festival Brasileiro de Música de Rua, em Caxias do Sul. As causas para isso podem ser uma canção folclórica espanhola como “Las Panaderas”, a insuspeita releitura quase kraut rock de “Cada Voz”, de Tulipa Ruiz, uma arrepiante recriação de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben, ou outra das muitas surpresas do repertório.

Fundado em 1999 no pequeno município da Serra Gaúcha famoso por seu turismo de inverno e sua herança alemã, o grupo é mantido pela Associação Cultural de Nova Petrópolis. Como tem função educacional, a formação do grupo muda com frequência, para que novas garotas tenham possibilidade de desenvolver suas habilidades no projeto. No processo de recriação de canções alheias, é notável a maneira como a banda – Alexandre Fritzen (piano e teclado), Ezequiel Duarte (baixo, violão e guitarra) e João Viegas (bateria e percussão) – cuida para que os arranjos não soem como pop travestido de empulhação erudita. Há um conceito musical evidente, que evidentemente valoriza as vozes, mas coloca-as a serviço de uma identidade musical própria,

Cristiane Ferronato, regente das MCNP desde 2010, é uma das principais responsáveis por essa conquista. Ela, que também é professora na Licenciatura de Música na UCS (Universidade de Caxias do Sul) e diretora de outros projetos musicais, vem trabalhando com o objetivo de estabelecer uma personalidade musical para as Meninas Cantoras. Por isso, o Scream & Yell conversou com ela para conhecer mais detalhes do processo de criação e desenvolvimento das peças interpretadas pelo grupo.

Quando se vê o nome “Meninas Cantoras”, a leitura inicial é pensar em um coral mais erudito, e de certa forma mais conservador e um tanto aborrecido. Mas o trabalho é bem mais amplo do que apenas afinar um grupo de jovens para fazer um “repertório eclético”. Então queria que você me explicasse um pouco sobre como se dá a escolha dos temas e, principalmente, a elaboração dos arranjos para eles.
Pois é! Originalmente esse coro foi criado tendo como modelo o trabalho de grupos tradicionais, como o quase xará Meninas Cantoras de Petrópolis, do Rio de Janeiro, bem como outros grupos de estilo mais “comportado” e de conceito estético mais militaresco ou midiático. Não era mesmo um grupo original, por isso entendo teu questionamento com o nome, que é fruto desse “padrão”. O nome não mudou nesses 16 anos de história, mas o conceito do trabalho sim. O que sempre se manteve praticamente igual foi a qualidade na interpretação do repertório e a projeção que essa qualidade deu ao grupo e à cidade de Nova Petrópolis. Desde meu início deixei claro às cantoras que não faríamos nada brega em nosso repertório ou nas cenas para as eventuais coreografias que criamos. Virou um jargão, até. Ao trabalharmos com crianças e adolescentes, estamos instigando a formação de opinião e de gosto. E creio que gosto se discute sempre, pois ele é fruto das experiências que vivenciamos ou deixamos de vivenciar pelo caminho. Com isso em mente fui selecionando temas que achava pertinentes para as idades das meninas e para as suas características vocais. Porém, também pensando em recolorir as possibilidades estéticas delas, dando mais pitadas de música popular brasileira com suingue ali para o povo que tem ascendência alemã, mas que é profundamente brasileiro, e trabalhando mais junto à banda que acompanha as meninas no sentido de potencializar os timbres e originalidade dos arranjos instrumentais. Assim, a escolha dos temas musicais vai desde a necessidade técnica vocal de cada elenco de cantoras (que muda ano a ano), até a concepção de uma coloração musical que resulte interessante no todo. Evito pasteurizar o repertório sempre com mesmos timbres e nuances parecidos. Acho bacana mesclar dinâmicas, andamentos, colorações, estéticas, línguas, estilos… e acho fundamental deixar o corpo presente, potencializar as individualidades de cada cantora ao invés de uniformizá-las como se todas fossem iguais.

O que pesou na sua decisão de assumir o projeto das Meninas Cantoras?
Primeiramente o carinho enorme que eu já tinha pelo grupo desde quando era plateia, e por ser amiga da regente que me antecedeu junto a elas, a Agnes Schmeling. Sempre era um deleite assistir as meninas e estar com elas. Ter a oportunidade de regê-las, desenvolver projetos, repertório, espetáculos, concertos e eventos foi extremamente prazeroso e até hoje. São pessoas muito disponíveis, musicais, engajadas e talentosas. E como não consigo trabalhar sem amor, também devo dizer que tenho muito amor por essas meninas e por esse trabalho. Me sinto emocionalmente muito conectada com as cantoras, e isso às vezes é um perigo. Porque é tão doído dizer adeus quando elas vão embora…

Imagino que muitas das músicas e estéticas que vocês apresentam para as meninas sejam novas para elas. Como elas respondem a essas novidades?
No início, acho que fui um pouco revolucionária. Não propondo a queima dos sutiãs na praça, hehe… Mas propondo de cara um espetáculo que “descomportasse” um pouco o grupo já bastante certinho e comportado pela vida… Que desmontasse um pouco a excessiva autocrítica. Então propus o Entre Elas, um espetáculo sobre as mulheres na música e os potenciais femininos que vinham dali. Simone de Beauvoir estava conosco o tempo inteiro nessa jornada, muito antes do ENEM de 2015 (risos). O espetáculo foi um divisor de águas pelo repertório e conceito propostos, principalmente por seu cunho ideológico. Cantávamos Mercedes Sosa e Janis Joplin, Edith Piaf e Cássia Eller, Chiquinha Gonzaga e Madonna. O coro das meninas usava calças pela primeira vez! Iniciava-se ali a consolidação de uma nova identidade: a de um coro contemporâneo, muito além da proposta tradicional onde nasceu.

E a troca é mútua? Ou seja, acontece de elas também abastecerem você e a banda com informações novas, com coisas que mudam as perspectivas de vocês sobre a música?
Eu me nutro o tempo inteiro da energia dos grupos com quem trabalho. Não consigo criar se não houver esse engajamento energético, essa troca. Procuro sempre ouvir as cantoras, escutar seus anseios e desejos de forma a realizar um ideal musical/artístico mas essencialmente deixá-las contentes com o que estão produzindo, mesmo sabendo ser difícil contentar a tudo e a todos num trabalho sempre composto por tanta gente e tantas opiniões, idades e maturidades divergentes.

Qual é o propósito final de um trabalho desse porte? É formar artistas? Chamar atenção para a produção cultural da região? Consolidar MCNP como um grupo, uma marca?
Ai, que difícil… Mas acho que sim, formar artistas, ou no mínimo, pessoas mais conscientes de si e com possibilidades mais ampliadas de visão sobre si e sua atuação no mundo é um bom objetivo, para pensar de forma bem didática. Já ouvi meninas relatando que a prática coral era pra elas como uma “ilha” em meio à alienação da pequena cidade… Uma ilha de descobertas e possibilidades de interação com o outro, consigo, com a arte de forma mais profunda e intensa. Muitas meninas passam um bom tempo na fase da crisálida, sabe? E vão se abrindo ano após ano, música após música, espetáculo após espetáculo. É muito legal acompanhar esse processo de cada uma. Quase sempre trabalhei em cidades de interior. Ali parece que essas práticas musicais mais sofisticadas tornam-se ainda mais pungentes no processo de transformação do/a cantor/a pela carência de referências de trabalhos de grupos bacanas. E sim, chamar a atenção para a produção local vem muito bem. É bacana ver grupos fazendo trabalhos consistentes e que não são pertencentes às grandes capitais.

Como o próprio nome diz, o projeto forma cantoras, não instrumentistas (ainda que a voz seja um grande instrumento, claro). Mas a banda é essencial na proposta musical. Vocês pensaram em ampliar e incluir formação instrumental no projeto? Existe chance disso acontecer?
Não temos essa intenção de ampliar. Primeiro porque estamos muito bem servidos com o trio instrumental que atua junto ao grupo: são músicos profissionais, versáteis, eficientes e disponíveis ao trabalho, que colaboram com ideias também. Conseguimos variar timbres com relativa facilidade e assim dinamizar a execução do repertório. Não vejo como poderia ser melhor do que já é com frente ao grupo. Mas momentos de interlúdios instrumentais junto à prática vocal, estes sim, sempre poderão surgir. O que pode acontecer também é termos convites para cantar junto a orquestras ou outros grupos instrumentais. Daí vamos e fazemos pontualmente. Nesse ano mesmo faremos a abertura do natal em Nova Petrópolis junto à Orquestra de Sopros de lá.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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