O rock nacional anos 80 e a Censura

por Marcelo Costa

Em um momento de polarização social e política do país, com minorias buscando seus direitos, para desespero do status quo, que adoraria manter tudo como era há 100 anos, é importante saudar a liberdade de expressão, afinal houve um tempo (não tão distante) em que o Estado, através de uma repressão intimidante, censurava manifestações de opinião (na grande letra de “Metrô Linha 743”, de 1984, Raul Seixas diria que era proibido até pensar).

O start foi dado com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que criou a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), por onde deveriam previamente passar todas as obras artísticas (filmes, peças de teatro, músicas, discos) antes de executadas nos meios públicos. Desta forma, um grupo de pessoas (orientadas pela Ditadura Militar vigente) decidia o que o povo brasileiro deveria consumir.

São famosos os casos de artistas perseguidos pela Ditadura nos anos 70 (Caetano Veloso, Chico Buarque, Jards Macalé, Rita Lee, Belchior, Odair José e até Adoniran Barbosa, que teve sua “Tiro ao Álvaro” vetada pela Censura Federal porque a censora considerou “falta de gosto” de Adoniran usar as palavras “tauba”, “revorve” e “artormove”), mas até sua extinção, com a Constituição de 1988, a DCDP atuou ativamente e arbitrariamente sobre a música brasileira.

Neste momento de (um aguardado e bem-vindo) ajuste social, em que as placas tectônicas da sociedade vão pra lá e pra cá na busca por um convívio mais justo para todos (esperamos), é interessante lembrar-se de algumas manifestações artísticas que foram proibidas pela Divisão de Censura de Diversões Públicas nos anos 80, e agradecer por vivermos em um país em que somos livres para discordar e discutir (sem que o Estado nos proíba de pensar).

1982 – “Cruel Cruel Esquizofrenético Blues” / “Ela Quer Morar Comigo na Lua”, Blitz
“As Aventuras da Blitz”, o álbum que deu o pontapé no rock nacional (com o hit “Você Não Soube Me Amar”), lançado em 1982, teve suas duas últimas canções proibidas pela Censura, porém a master do vinil já estava pronta, e a saída encontrada pela gravadora foi inutilizar as duas faixas vetadas (escancarando assim o ato censor): desta forma, 30 mil vinis foram prensados com um risco feito com prego pela própria banda para que o público não ouvisse a frase “ela diz que eu ando bundando”, da música “Ela Quer Morar Comigo na Lua”, e o duplo sentido da palavra “peru” além de um palavrão em “Cruel, Cruel Esquizofrênico Blues”. Hoje liberadas, as duas canções integram a reedição do álbum em CD.

1983 – “Sônia” e “Cobra Venenosa”, Leo Jaime
Mais “perigoso” do que a Blitz, porém, era Leo Jaime, que transformou “Sunny”, uma balada blues romântica e inocente composta por Bobby Hebb em 1966, em “Sônia”, uma suruba com direito a masturbação, sexo anal e trenzinho (“Sônia, vamos nessa festa fazer um trenzinho / Você na frente e eu atrás / E atrás de mim um outro rapaz”). A Censura não perdoou e o disco, “proibido para menores de 18 anos”, só podia ser vendido lacrado. Leo Jaime voltaria a ser censurado no álbum “Vida Difícil”: a marchinha “Cobra Venenosa” foi vetada pelo duplo sentido da letra: “Eu sou uma cobra venenosa, que pica, que pica”…

1983 – “Miséria e Fome”, Inocentes
A Ditadura não queria apenas proibir que o povo ouvisse palavrões e músicas sobre orgias, mas também manifestações sobre a difícil situação do povo brasileiro – e suas instituições. Em 1983, os Inocentes gravaram 13 canções para seu primeiro álbum, porém apenas quatro foram liberadas pela Censura, e lançadas em um compacto no mesmo ano. A Censura vetou canções como “Tortura, Medo e Repressão”, “Maldita Polícia”, “Não à Religião” e “Vida Submissa”, entre outras, mas, com o fim do órgão federal, o álbum foi relançado com 11 canções em 1988 pela Devil Discos, incluindo sete daquelas canções proibidas pela Censura cinco anos antes.

1984 – “Teoria da Relatividade”, Lobão e os Ronaldos
Sim, Lobão já foi vetado pela Censura. Foi em seu segundo disco, quando ainda era acompanhado pela banda Os Ronaldos. Lançado em 1984, do álbum “Ronaldo Foi Pra Guerra” (que trazia os hits “Me Chama” e “Corações Psicodélicos”) constava a faixa “Teoria da Relatividade”, parceria com Guto Barros que versava sobre um triangulo amoroso (que a TFP não aprova): “Livros na minha cabeceira / E ela na cama com outro rapaz (…) / Por mais que eu fique frio na sala de estar / Eu sei que a cama é pequena demais”.

1985 – “Marylou” e “Prisioneiro”, Ultraje a Rigor
Sim, Roger Rocha Moreira também já foi censurado. E por mais que tenha usado seu enorme QI para que a história da galinha “Marylou” fosse aceita pela Censura (na letra final, Marylou bota “ovo pelo sul”), acabou barrado. Porém o veto não impediu que a canção, presente em um disco praticamente “greatest hits” (“Nós Vamos Invadir Sua Praia”, de 1985), chegasse aos ouvidos do público, e também se tornasse um sucesso. O Ultraje voltou a ser “perseguido” no disco seguinte: “Prisioneiro”, cantada pelo baixista Maurício e que contava a história de um ladrão (de colarinho branco, desses que trafegam no meio político) que vive “bem com o tráfico e com a corrupção”, não foi bem recebida na Censura.

1986 – “Viva”, Camisa de Vênus
A abertura política caminhava a passos largos, com manifestações sociais por eleições diretas ecoando pelo país. Marcelo Nova, que já tinha sido agraciado pela Censura com um veto (“Bete Morreu”, do álbum de estreia da banda, havia sido proibida), decidiu não enviar o álbum à apreciação da Censura. Quando já se encontrava com cerca de 40 mil cópias vendidas, “Viva” foi recolhido pela Polícia Federal por ordens da Censura. O próprio Marcelo Nova presenciaria a ação da Polícia Federal enquanto olhava as novidades em uma loja de discos de São Paulo. “Eu vi meus discos serem levados no camburão. Parecia loucura, mas era verdade”, relatou Nova a uma reportagem especial do Correio Brasiliense sobre a Censura publicada em abril de 2010. “Viva” voltou às lojas com oito músicas vetadas.

1986 – “Veraneio Vascaína”, Capital Inicial
Parceria de Flavio Lemos e Renato Russo ainda dos tempos do Aborto Elétrico, o poderoso ataque a Policia Militar (“assassinos armados, uniformizados”, diz a letra) registrado no lado A do primeiro disco do Capital Inicial não passou impune pela Censura, que não só vetou a canção como proibiu a venda do disco para menores de 18 anos. O tiro, porém, saiu pela culatra. O marketing que a banda ganhou com o veto da Censura atraiu a atenção do público, e mais de 100 mil compradores foram às lojas, rendendo ao Capital Inicial seu primeiro disco de ouro. Essa é daquelas que continuam bastante atuais…

1986 – “Grande Coisa”, Premê
Nessa época, o irreverente Premeditando o Breque (nome reduzido para Premê), egresso da Vanguarda Paulista, já era um veterano na cena, com alguns hits nacionais (as hilárias “São Paulo, São Paulo” e “Lua de Mel em Cubatão”) e quatro discos nas costas. Produzido por Lulu Santos, o quinto álbum da banda, “Grande Coisa”, teve três músicas censuradas: “Espinha” (que versava sobre masturbação), “Império dos Sentidos” (sobre visitas a casas de massagem e adultérios – com final feliz) e “Rubens” (sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo), que acabou sendo regravada por Cássia Eller em seu álbum de estreia.

1986 – “Ro Que Se Da Ne”, Lulu Santos
Em sua estreia na RCA, depois de quatro álbuns (e muitos sucessos) na WEA, Lulu Santos voltou a cravar um punhado de hits nas rádios (o lado A inteiro do vinil frequentou, e muito, os dials entre 1986 e 1987: “Casa”, “Condição”, “Minha Vida”, “Pé Atrás” e “Um Pro Outro”). Porém, no lado B do disco estava a canção que, provavelmente, é a responsável por “Lulu”, o disco de 1986, nunca ter sido reeditado em CD: “Ro Que Se Da Ne”, vetada pela Censura, narra a história de um diretor de gravadora “Que se amarrou no visual / O contrato tá no papo / Se o talento for igual”. Porém, o diretor marca uma reunião em seu apartamento, e Lulu conta: “O cara fuma, bebe e cheira / Fuma e quer pegar no meu pau / Cheira a noite inteira / Fala sem parar / E quando chega o dia / Não quer mais me contratar”. Ficou decidido que o público não podia ouvir isso.

1987 – “Faroeste Caboclo”, Legião Urbana
Essa  canção e “Conexão Amazônica”, ambas do terceiro álbum da Legião, “Que Pais é Este?” (1987) foram vetadas pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (já com seu poder abalado, mas ainda atuante), mas as rádios e gravadora deram um jeitinho de toca-la sem serem autuadas pelo Estado: “Faroeste Caboclo” invadiu as rádios numa versão editada (pela própria gravadora) que “embrulhava” os palavrões de forma que eles não fossem entendidos. Para quem queria tocar a canção em rádios que não tinham a versão editada da gravadora, havia as artimanhas de silenciar os trechos de palavrões ou mesmo editar o trecho no próprio vinil, riscando-o. Ouça abaixo a versão que foi para as rádios nos 80.

1987 – “Censura”, Plebe Rude
A repórter (na revista Bizz) pergunta: “Censura” ainda é uma música atual?”. E a Plebe Rude responde: “Muito. Tanto que foi censurada”. Até então, a Plebe Rude já tinha sofrido muito com a Censura Federal, tendo sido inclusive presa (junto com a Legião Urbana) em 1982 em um festival em Patos de Minas por ter tocado ao vivo a música “Vote em Branco” (a canção só foi lançada oficialmente em 2006, no álbum “R ao Contrário”). “Censura” está presente no segundo disco da Plebe Rude, “Nunca Fomos Tão Brasileiros”, de 1987. A letra é direta, e encerra um ciclo que, esperamos, nunca seja reaberto no país:

“A censura, a censura
Única entidade que ninguém censura

Hora pra dormir, hora pra pensar
Porra meu papai, deixa me falar

Contra a nossa arte está a censura
abaixo a cultura, viva a ditadura
Jardel com travesti, censor com bisturi
corta toda música que você não vai ouvir

Nada para ouvir, nada para ler
nada para mim, nada pra você
nada no cinema, nada na TV
nada para mim, nada pra você”

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4 thoughts on “O rock nacional anos 80 e a Censura

  1. Li uma história que “Rock das Aranhas” do Raul também foi censurada por menções ao lesbianismo. E ele, sarcástico do jeito que era, foi ao Chacrinha e não podendo tocar ela tocou outra música mas com uma aranha enorme pendurada no pescoço.

  2. Belo texto, Marcelo, só algumas observações:

    – Salvo engano meu, ‘Viva’ é o mesmo disco do Camisa que foi relançado em 1988 como “Liberou Geral”, título que fazia alusão ao fim oficial da Censura

    – “Ro Que Se Da Ne” tinha um subtítulo que eu jamais entendi: “(Junte as sílabas e forme novas palavrinhas)

    – “Faroeste Caboclo” saiu censurada sim no LP “Que País é Este 1978/1987”. As rádios a princípio tocavam só a faixa-título. Na época eu trabalhava numa papelaria, no setor de discos, e deixávamos habitualmente rodando no som da loja os principais lançamentos. No alto da rebeldia dos meus então 16, 17 anos (rs), quando chegava a hora de ‘Faroeste Caboclo’ eu colocava o som também para a caixa de som da frente da loja, na calçada. A rádio da cidade (Bento Gonçalves, RS) comprava os discos nesta loja onde eu trabalhava, e em poucos dias já estava rodando também ‘Faroeste…’ na versão do disco original (eu nem sabia que houve uma versão editada para as rádios). Apesar de o anúncio de proibição ser bem visível, até onde lembro a rádio não foi incomodada pelos “homi”.

    – Lembro sim de uma versão editada, a de “Filha da Puta”, do Ultraje a Rigor, segunda faixa do LP ‘Crescendo’, de 1989. Mesmo não havendo mais Censura, a WEA editou a faixa, fazendo uma versão alternativa, que recebeu o título de “Filha Daquilo” – na hora do refrão (“Filha da puta/ é tudo filho da puta”), uma guitarra distorcida substituía a palavra “puta”. Só essa versão tocou nas rádios.

    1. Bons comentários e correções, Fábio. A “Filha Daquilo” numa coletânea dupla de raridades chamada “E-Collection”, que é bem legal.

  3. Roque se Dane do Lulu Santos é uma paródia do Ultraje a Rigor. Quando escutei ela pela primeira vez em um programa de rock nacional na Kiss FM lá em 2002, na hora pensei se tratar de uma música do Ultraje, parecia até o Roger cantando. Anos depois descobri no youtube essa música. Acho que o Lulu fez essa música sacaneando o André Midani(na época diretor da WEA) talvez pelo fato dele dar mais atenção ao Ultraje do que ao Lulu. Sei lá o que pode ter sido, já ouvi várias teorias. hahahaha

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