CD: “Depression Cherry”, Beach House

por Gabriel Innocentini

O dream-pop é um gênero encharcado de nostalgia e saudade. A vida que poderia ter sido e não foi, o futuro outrora tão promissor, vocais longínquos vindos do que parecem outras existências, riffs de guitarra entorpecidos, a cama de teclados e sintetizadores numa cascata de arpejos, um sentimento indefinido entre o abandono e o desejo de voltar ao que é impossível, aquele andar às cegas pelas paisagens interiores. Ah, e letras enigmáticas.

Certas bandas parecem criar e habitar um tempo próprio. Existe um tempo Mazzy Star, existe um tempo My Bloody Valentine, existe um tempo Portishead. E já podemos dizer após cinco álbuns: existe um tempo Beach House.

Não faz sentido ouvir “Depression Cherry”, o novo disco do duo de Baltimore, procurando novidades ou avanços no som do Beach House. Lá pelo meio dos anos 60 a cultura pop adotou a curiosa ideia de que os artistas precisam sempre se reinventar. Não basta criar “Love Me Do”, é preciso se trancar no estúdio e usar todos os canais possíveis, editar ruídos e mixar o vocal de trás pra frente. Não basta compor “Blowin’ the Wind”, é preciso escrever canções de 11 minutos. Os críticos também entram na dança: “bom trabalho, mas quero ver o que vão aprontar na próxima”.

Bem, quem conhece Beach House pode ficar tranquilo: “Depression Cherry” é o Beach House de sempre. Terreno conhecido, o que não significa confortável. O timbre profundo e robusto de Victoria Legrand, como os vinhos, melhora com o passar do tempo. Mas há uma nota de amargor nessa voz, nesse disco específico. Uma dor controlada, cujo transe bem medido também é uma forma de lição.

“Levitation”, logo de início, realiza o transporte para o tempo Beach House: “There’s a place I want to take you / when the unknown will surround you”. O meio minuto final, quando a bateria entra em fade out, a letra termina e o órgão cheio de reverb resta pairando no ar, é talvez o mais belo momento musical do ano até aqui. Esse pulo no desconhecido, óbvio, será o amor.

O shoegaze entra em campo com “Sparks”, canção repleta de tentáculos: “And it goes dark again / just like sparks”. Shoegaze à moda Beach House, bem entendido. Apenas uns poucos ruídos e uma guitarra mais suja do que o habitual. A camada sonora do órgão, afogada em drone, nessa e em outras faixas lembra o Rocketship, banda de Sacramento dos anos 90, cujo “A Certain Smile, a Certain Sadness” poderia também servir de título para o álbum de Victoria Legrand e Alex Scally.

“Space Song” tem uma letra banal adornada por voos de slide guitar. Esta talvez seja a canção mais imediatamente Beach House de todo o disco, um exemplo perfeito da aparente magia sem esforço dessa banda.

A introdução de “Beyond Love” dá o tom da melhor canção do disco: a nota mi é seguida por ré sustenido. Esse intervalo de apenas meio tom como que estabelece a distância impossível entre os amantes. Repetida ao longo da canção essa sequência descendente adquire um som fantasmagórico, inalcançável. Meio tom a mais e teríamos uma oitava perfeita: duas notas iguais, com uma escala de separação. As outras duas notas da guitarra são si bemol e si. Essa dissonância vai se espraiando por toda canção, que mal termina, parece interrompida abruptamente porque não pode durar para sempre. O que há além do amor?

Outras canções, é claro. Seguindo o disco a resposta seria “10:37”, mais uma daquelas músicas Beach House a que todo fã já está mais do que acostumado, embora a parte percussiva seja o ingrediente principal para criar o senso de dramaticidade e dinamismo dessa faixa.

Nem nos céus se canta o tempo todo, disse o poeta, e “Days of Candy” parece contradizer tal afirmação: do paraíso perdido também se fazem canções. Um fecho que seria grandioso não fosse a contenção presente em todo o disco – não há explosão de microfonia, mergulho no oceano da wall of sound, apenas a habitação de um outro tempo, o agora conhecido tempo Beach House.

A capa de “Depression Cherry” é da cor vinho, pura e discreta como as capas da lendária gravadora de jazz ECM, cujo lema durante certa época era “o som mais belo depois do silêncio”. Aqui seria melhor inverter a ordem do título do Rocketship: “A Certain Sadness, A Certain Smile”. No seu melhor, é assim que habitamos o tempo Beach House: possuídos pela nostalgia – e possuídos pela beleza.

– Gabriel Innocentini (@eduardomarciano) é jornalista e dissecou a discografia completa de Bob Dylan no Scream & Yell. Confira aqui.

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