Show: Emicida ao vivo em São Paulo

Texto por Marcelo Costa
Fotos por Liliane Callegari (Galeria)

Num fim de semana de três noites sold out consagradoras, com os 700 lugares do teatro Paulo Autran totalmente ocupados, Emicida deu o start na turnê de seu novo disco, o emblemático “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, com um show poderoso que inicia extremamente pesado (graves batendo no peito, riffs de guitarra cortando o ar e a percussão encorpando a batida) para, ao longo da noite, fazer um passeio (praticamente educativo) por diversas sonoridades, como que defendendo: samba, rap, rock, reggae, tudo é música.

Apesar do teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, estar totalmente tomado por fãs, com ingressos esgotados antecipadamente, quem chegasse ao show nos primeiros segundos iria ver centenas de cadeiras vazias. Isso porque bastou o primeiro som de grave ecoar no recinto para que a galera levantasse das cadeiras e fosse para a frente do palco, um recorde, como se um jogador fizesse um gol com dois segundos de jogo. No palco, baixo, duas guitarras, dois percussionistas e o velho parceiro DJ Nyack são responsáveis pelo embalo. E, claro, Emicida.

O show é totalmente focado nos dois álbuns cheios do músico, “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” (2013) e o novo “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (2015), com rápidos acenos para as mixtapes “Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe…” (2009), com “Triunfo”, e “Emicídio” (2010), representada por “Rinha”, mais “Zica, Vai Lá…”, uma das canções mais festejadas e cantadas da noite, presente no excelente EP “Doozicabraba e a Revolução Silenciosa”, de 2011.

O ataque, no entanto, começa com “8”, do disco novo, que abre o show envolta num arranjo pesadíssimo – e aqueles que dizem que o rap é o novo rock, sorriem, afinal o peso todo está aqui, batendo no peito, ecoando nos ouvidos, e o discurso afiado faz confiar na aposta: entre Banda Malta e Emicida, caso tivesse vivo, Joe Strummer sem nenhuma dúvida escolheria o rapper. O verso, então, ecoa: “Sangue índio, suor preto e as igreja branca / Jogando na retranca, querendo que os mano respeita / Os professor que a polícia espanca”.

“Boa Esperança”, que ganhou um clipe forte que mostra a revolta de um grupo de empregados domésticos que resolvem se vingar dos patrões após uma série de maus tratos, é a primeira a ser cantada em coro na noite. A sonoridade abraça a África e a aninha nos braços enquanto Emicida manda o recado: “Vocês sabem, eu sei, que até Bin Laden é Made in USA”, e atiça: “Cês diz que nosso pau é grande / Espera até ver nosso ódio”. A arrepiante “Bang!”, do disco anterior, é o primeiro momento antológico da noite. Devia ser transmitida em horário nobre.

Entre os momentos especiais, “Mãe”, do disco novo, com Dona Jacira no palco, emociona. “Hoje Cedo” surge arrasadora. Eis a canção que coloca Emicida num posto de destaque no momento atual da música brasileira, um discurso revoltado, raivoso e urgente que, sozinho, oferece mais ao Brasil atual do que Caetano, Gil e Chico e o rock nacional juntos ofereceram nos últimos 10 anos. “E vou por aí, Taleban, vendo os boy beber dois mês de salário da minha irmã”, diz a letra, que ainda crava: “A sociedade vende Jesus, por que não ia vender rap”.

Ainda assim, a ligação com as gerações anteriores (incluindo Caetano) é um dos temas do novo show. Em certo momento, ele puxa o “Rap Da Felicidade”, de MC Cidinho e MC Doca, que em 1994 cantavam que só queriam ser felizes andando tranquilamente na favela em que nasceram (20 anos depois andar tranquilamente ainda é um sonho impossível: “Quando 18 pessoas morrem em uma cidade e ninguém fala nada, essa cidade também está morta”, dispara Emicida no meio do show, sobre a série de atentados em Osasco e Barueri).

“Preciso Me Encontrar”, samba clássico de Candeia gravado por Cartola, faz a ponte de ligação para o meio do show, mais sambista, africano e brasileiro, que ainda traz “Baiana”, que no novo disco conta com a participação de Caetano, e “Haiti”, que lançada por Gil e Caetano no álbum “Tropicália 2”, de 1993, soa urgentíssima agora, num momento em que haitianos refugiados no país sofrem discriminação e atentados. A apropriação da canção por Emicida é importante, ainda que quem torça o nariz para a Máfia do Dendê ouse recusar.

Num momento em que as listas de músicas mais tocadas são dominadas por escapismo, seja o sertanejo universitário pregando a farra (o caipira de “Sapequinha” está mais preocupado em não dar mole para a garota; enquanto isso, políticos, pastores, racistas e gente pedindo a volta da ditadura agem), breganejo ou bregarock (lamentando as dores de corações partidos, dor que Caetano compactua em seus últimos três discos), o rap (samba, reggae, rock, maracatu) de Emicida se destaca por olhar os problemas de frente, buscando discuti-los.

Desta forma, o show segue com canções novas (“Mufete”, “Casa”, “Passarinhos”), estocadas no amago da sociedade (“Essa é dedicada aos nordestinos que construíram São Paulo. Os paulistanos esquecem, mas a gente lembra”) e a belíssima declamação de “Súplica”, da poetisa moçambicana Noémia de Sousa: “Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música!”. Eis um dos grandes momentos de um dos shows mais importantes de 2015 (quiça “o” show mais importante) que leva a sério a frase “arte é fazer parte, não ser dono”. No Sesc Pinheiros, o show foi (simbolicamente) de 700 pessoas na plateia e 6 no palco. Um povo unido. Palmas.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Liliane Callegari (@licallegari) é fotógrafa e arquiteta. Veja galeria de fotos do show aqui

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