Entrevista: Projeto Ponte

por Leonardo Vinhas

O processo de ouvir música mudou, amigo. Você já sabe disso e merece ser poupado da recapitulação histórica que vai do fonógrafo e te traz até os dias de hoje. Portanto, é mais importante dizer que o Projeto Ponte se dedica a encontrar outras maneiras de fazer você prestar atenção nas canções – e não só nelas.

Os italianos Giovanni Pirelli e Ludovico Schilling e os irmãos brasileiros Helena e Caio Guerra, em parceria com o Selo Risco, conceberam o Ponte como uma forma de estimular o diálogo entre o público brasileiro que se interessa por artistas autorais e o inglês que tem apreço pela eletrônica. A premissa em si é simples: uma canção de um novo artista brasileiro vai para a Inglaterra, é remixada e volta para se transformar em uma nova experiência em vídeo. A execução, por sua vez, é mais complexa, e nesse primeiro momento foi viável somente porque os quatro envolvidos abdicaram de qualquer pretensão de lucro.

O projeto nasceu da vontade que os quatro amigos tinham de criar algo que aproximasse os universos nos quais transitam ou pelos quais têm apreço. Caio e Helena têm uma produtora de cinema, Irmãos Guerra, enquanto Giovanni é produtor cultural, todos residentes em São Paulo. Ludovico vive em Londres, onde atua como produtor musical, e sua relação com a cena eletrônica de lá permitiu que ele envolvesse os artistas do coletivo londrino Doomy em um projeto de remixes de faixas de artistas selecionados pelo coletivo e selo fonográfico Risco, que traz em seu elenco nomes como Luiza Lian, O Terno, Charlie & Os Marretas e outros.

Uma vez remixadas, as faixas retornavam ao Brasil para ganharem um vídeo (“Não exatamente um clipe”, como diz Helena) concebido e executado por artistas locais – cuja curadoria ficou a cargo de Helena e Caio. Os próprios irmãos Guerra dirigiram os dois primeiros filmes: “Me Tema”, de Luiza Lian, e “Quimpassi”, de Charlie & Os Marretas. O terceiro, “Afrodite” (de Caio Falcão e o Bando), foi dirigido por Valentina Sutti, e o quarto, “Sino”, do Memórias de um Caramujo, traz a assinatura de Victor Pardinho.

“A gente fez sem dinheiro nem nada. Os músicos, as pessoas envolvidas nos vídeos – equipe, atores – também não tiveram nenhuma verba. Para os próximos, seria bem legal se a gente conseguisse patrocínio ou captar verba, mas isso é outro processo, mais para frente”, diz Helena. “Até porque precisávamos ter algo concreto para mostrar”. O que tudo isso tem a ver com uma nova forma de prestar atenção na música, mais detalhes sobre a gênese e o conceito do Ponte, estão na entrevista a seguir, realizada via Skype com Giovanni e os Irmãos Guerra (abaixo os quatro vídeos lançados até o momento; as novidades sobre o projeto podem ser encontradas no Facebook: https://www.facebook.com/projetoponte2015).

O projeto Ponte está em seu quarto mês. Como tem sido a divulgação até agora?
Giovanni: Já divulgamos aqui no Brasil, saiu em alguns poucos lugares. Na Europa está rolando. Estávamos esperando chegar à metade do projeto para divulgar mais, não podíamos mostrar tudo logo de cara, e também quisemos criar um pouco de hype, era parte de nossa estratégia. Agora já temos um pouco mais de atenção, a repercussão está sendo legal. As bandas brasileiras não são conhecidas lá, e estão ganhando atenção.

Como o Selo Risco entrou no projeto?
Giovanni: Conheci o Guilherme Giraldi e o Gui Jesus Toledo (sócios do estúdio Canoa, em São Paulo, e gestores do coletivo) em 2013, quando vim pela primeira vez ao Brasil. A gente viu que tinha muita ligação em comum com a forma como vemos a música, e ficamos com vontade de fazer algumas coisas juntos. O Risco entrou como curador musical na parte brasileira, e o Ludovico Schilling, meu amigo de longa data e também produtor musical, se ocupou da parte dos artistas da eletrônica na Europa. O Risco escolheu as bandas que podiam ter mais potencial para fazer o diálogo com música eletrônica.

Curioso você dizer isso, porque os artistas dessa primeira etapa não tem nenhum elemento eletrônico identificável em sua música. O que me leva a perguntar: qual é a ambição do projeto musicalmente? É apresentar artistas novos a públicos que não os conhecem? Promover um diálogo entre a produção artística dos países? Ou nada disso?
Giovanni: O que eu queria desde o começo é levar pra Itália e pra Europa sonoridades que eles não conhecem [por lá], e com isso ajudar um pouquinho a cena independente de São Paulo. Ao mesmo tempo, queria introduzir as sonoridades eletrônicas mais ecléticas no Brasil, algo de que pessoalmente sinto muita falta. Tem o [Coletivo] Metanol, tem algumas coisas, mas ainda acho que falta mais pesquisa, trazer um material diferente. E vem daí o nome do projeto: o intuito é ser uma ponte, e as pontes são atravessadas de um lado ao outro. Elas não são de mão única.

E com o vídeo, onde se pretende chegar? A gente sabe que videoclipe é elemento fundamental de divulgação hoje, mas parece claro que a ideia do projeto não é apenas fazer um clip para divulgar o remix.
Caio: O vídeo seria um terceiro passo do projeto: A música vai até a Europa e volta com um som totalmente novo, o texto [da canção] desestruturado, fica com outro significado. O vídeo entra para dar uma nova significação. A gente pega essas novas ferramentas musicais do remix, e compõe com a imagem. Não é exatamente um videoclipe, não queremos ilustrar as falas do que aparece. É um arranjo estético, e um experimento também.

Helena: A gente convidou as pessoas para fazer um vídeo-arte, e as deixou bem livres para isso. Não é mesmo um videoclipe, porque a ideia é que seja outro produto. O Doomy nunca conversou com as bandas sobre qual a pretensão deles com aquela canção – a gente até traduziu a ideia geral da letra, mas eles não perguntaram para os artistas brasileiros o que esperavam do remix, [os caras do Doomy] simplesmente foram e se jogaram. Eles fizeram um produto novo, e acho que deu muito certo. Esses primeiros vídeos são muito diferentes uns dos outros. O da Luíza Lian é um videodança, o do Charlie & Os Marretas é uma pesquisa de imagens que eu e o Caio temos há anos – a gente se filma e filma as coisas o tempo todo – e o do Caio Falcão é mais convencional, tem uma narrativa explícita. O do Memórias de Um Caramujo – remixado pelo Doomy, claro – foi feito pelo VPardinho, que é um artista de videomapping, e está bem experimental. A gente abriu o leque, chamou diferentes artistas. Porque tanto o Risco como o Doomy são referência de grupos restritos de fãs e a gente quer expandir os universos de ambos.

Vocês já divulgaram que esse capítulo tem seis partes, que são esses seis vídeos. Como vocês imaginam o Ponte a longo prazo? Ele vai manter o formato?
Giovanni: Esse projeto pretende se transformar bastante com o tempo, e não ficar contido em um formato fixo. Trabalhamos por capítulos, e este primeiro é música, eletrônica e vídeo. O capitulo B está em pré-produção, deve continuar abordando o diálogo com artistas internacionais, mas talvez em outra arte. A gente quer ver como as referências desenvolvidas ao longo da vida de cada artista, que foram desenvolvidas e entendidas de forma individual, podem entrar em conflito ou estabelecer diálogo com outras mídias. Nesse capítulo, você vê que os artistas brasileiros são muito diferentes entre si, assim como os estrangeiros e os diretores de cinema. Então, o Ponte estabelece encontros entre artistas, mas sem perder a tensão, um “shaker” de vários ingredientes, e queremos que siga assim. O capítulo B pode não ser em seis partes, pode ser mais ou menos extenso. A música e o vídeo vão ter um espaço privilegiado, porque são as linguagens com as quais temos mais intimidade, mas eu gostaria de introduzir novas artes.

E incluir outros países também? Por exemplo, a América Latina?
Giovanni: Sim, eu gostaria muito de poder abrir um diálogo interno à América Latina, mas não fecho a possibilidade de ir ainda mais longe. Com a tecnologia de comunicação de hoje, não tem porque se limitar.

Como já são quatro meses em andamento, queria saber se tiveram algum retorno dos meios – de artistas que gostaram e querem participar, por exemplo.
Giovanni: Ainda não tivemos esse tipo de retorno, só de nossos amigos artistas, e alguns deles se mostraram interessados em participar.

Helena: Até mesmo uns nada a ver, tipo designer (risos).

Giovanni: Mas realmente ainda não tivemos um grande retorno.

Caio: A gente ainda não conseguiu sair do nosso meio.

Isso toca num ponto sobre o qual eu penso e pesquiso muito: o artista independente muitas vezes parece se contentar em ficar restrito a um microuniverso de conhecidos. Toca nos mesmos lugares, para as mesmas pessoas, ganha os mesmos aplausos e likes… E tem muita gente com trabalho sólido, que pode ir muito mais longe que isso. Mas parece que não acontece essa comunicação para fora da “bolha”. Por que vocês acham que o artista – não só o músico – tem tanta dificuldade em romper essa barreira?
Giovanni: Pessoalmente, acho que são dois fatores: as pessoas são estimuladas o dia inteiro por muita coisa. É banal, mas acho que é verdade. A outra… (hesita) Vou tentar superar a barreira da língua para dizer o mais claro possível: acho que os artistas têm uma facilidade muito grande de se acomodar. Com essa coisa das curtidas em redes sociais, cria-se uma espécie de autossatisfação: os amigos te reconhecem, você vai ao show e vê que há um retorno de um pouquinho de público… e você perde a visão de que há um público infinitamente maior. Acho que a culpa disso é uma real falta de um sistema cultural. Conheço pouco do Brasil, moro aqui apenas há dois anos, mas me parece que o mercado independente não reconhece a importância do mediador entre artista e público. Tem um produtor que contrata o show, mas de maneira geral não existe uma real curadoria para o contato com o público. Ter um social media manager é o mínimo, ter um amigo que posta no Facebook ou postar eles mesmos não é o suficiente. Não é isso! É necessário ir onde o público está, tocar na rua, em casas diferentes. Os artistas fazem um disco, um vídeo clipe e se dão por satisfeitos. O trabalho tem que ser em várias frentes, juntando-se com outros artistas. Os meios mudam, o que não mudou é a arte. Você sabe que tem que reter a atenção das pessoas, e talvez hoje o disco não seja a maneira mais adequada de fazer isso. Se você é um músico, o importante é fazer música; o formato no qual a música sai é irrelevante. É um produto como qualquer outro. A TV se renovou, as séries eram consideradas cafonas, ultrapassadas, e olha o que elas são hoje. Até o livro está mudando de suporte.

Então vocês entendem que o Ponte pode ser um processo para mudar essa relação autocentrada?
Caio: É um dos objetivos. A gente não pode dizer que vai reinventar o mundo, mas pode ser um começo. O papel da arte é criar uma discussão com as pessoas, ou rever sob outro olhar uma discussão, mesmo que pareça banal. Se ela não gerar alguma coisa, nem que seja um sentimento estético, ela não tem nem por que existir. Precisa chegar às pessoas. A gente tem tantas linguagens diferentes no Projeto: são técnicas de remixagens, composições, vídeos, públicos, tudo tão diferente um do outro… Imagino que isso leve as pessoas a pegar algo que normalmente não teriam interesse de assistir ou ouvir, e acabem se interessando. Você não precisa ouvir o original para ouvir o remix, por exemplo, mas acreditamos que conseguimos fisgar as pessoas por vários elementos, que não necessariamente precisam ser aqueles com os quais elas estão mais acostumadas, aquilo que elas sempre ouvem. As pessoas podem vir procurando um tipo específico de música, mas acabar se identificando com estilos completamente diferentes.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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