Entrevista: Judas

por Leonardo Vinhas

“Pois então peço essa licença de abdicar dessa herança / de ser de quem me criou imagem e semelhança”. Quem canta isso é Judas, não o personagem bíblico, mas o imaginado por Adalberto Rabelo Filho, ex-Numismata, um paulista radicado em Brasília que encontrou na moda de viola uma estética para fazer a música pop que lhe apetecia fazer. “É um som caipira tocado por quem cresceu dentro do rock, por quem tem outras influências que não a moda de viola”, diz Adalberto, por telefone. Ele conta que teve “uma epifania” ao chegar à capital federal, levando-o a repensar suas composições. Como letrista, Adalberto compôs para Vespas Mandarinas (quase todas as canções do disco de estreia dos paulistas), Cérebros Eletrônicos, Banzé e Vivendo do Ócio.

Embora se note seu estilo nos trabalhos “terceirizados”, o universo do Judas é muito claro e bastante específico em sua delimitação: solidão, tomada de decisões difíceis e obstinação são uma constante e, seja como for, cada um é responsável por seus atos e pelas consequências. É assim que o nome Judas faz especial sentido, especialmente sem versos como “o bem não está no céu / o mal também não está na serpente / os dois estão é dentro da gente / destilando o seu fel”, de “Cobra Criada”, faixa que conta com Pio Lobato Dillo Araújo nas guitarras (Siba toca rabeca em “Lugar Público”) e presente no álbum “Nonada”, de 2014 (ouça no Soundcloud).

A sonoridade da banda acaba ecoando essa temática, com a viola caipira de Fábio Miranda determinando a dinâmica instrumental que permite que o pop da banda soe tão agreste e rústico quanto roqueiro. Há ecos de blues e até um skazinho aparece incidentalmente, mas a linguagem é claramente rural – a partir de uma perspectiva urbana. Além de Adalberto e Fabio, a formação conta com Bruno Cesar Araújo e Carlos Beleza (guitarra), Pedro Souto (baixo), Augusto Coaracy (bateria), Hélio Miranda (teclado) e Pedro Vaz (percussão). Mas foi com Adalberto que conversamos para que Judas tivesse outra oportunidade de se explicar.

Sendo paulistano, de onde veio essa opção pela música caipira como estética da música que você faz agora?
Em São Paulo eu tinha uma banda chamada Numismata, que tinha elementos de samba, e nenhuma relação com o que faço hoje. Quando vim para Brasília, rolou essa epifania, porque aqui tem os lugares vastos, sertão e tal, e esse cenário me resgatou para uma coisa mais rural, mais paulista até, que é a música caipira. Foi só aqui que eu vi as intersecções que ela tem, principalmente com o blues, que também é uma música rural. E as paisagens e o entorno trazem essa coisa da solidão…

(interrompendo) Inclusive a solidão é algo recorrente, o narrador das letras sempre traz isso à tona… é o fio condutor de muitas delas, inclusive.
Esse personagem aparece bastante no disco. É daí que vem o nome da banda. A associação é de Judas com o homem comum. Pegando a Bíblia como parâmetro temos Jesus, que é o cara que todo mundo tenta ser, mas não consegue. É o perfeito. Judas personifica a falha. Tem também a malhação do Judas: [na brincadeira popular] antes do Judas teatral ser escolhido, ele fala todas as verdades na cara da galera, saca? Uma coisa que também está ligada à literatura de cordel. Se você pegar o ponto de vista do marginalizado, ele pode falar todas as verdades, porque vai ser morto. Essa figura se apresentou muito nas letras, e houve uma grande parcela de experiência pessoal colocada nela, já que eu mesmo passei por um período difícil de adaptação quando vim para cá.

Então dá para dizer que a escolha do nome não é por negar Deus, e sim negar a perfeição?
Sim, é isso. Mas negar a perfeição intencionalmente.

Uma coisa iconoclasta.
Totalmente iconoclasta. Não tem como ser mais iconoclasta do que escolher se chamar Judas (risos). Mas isso também vem um pouco da base do Bob Dylan, que é uma referência essencial para a banda. Nele havia essa auto-ironia. Não a auto-ironia idiota, tola, mas intelectual, de iconoclastia. A escolha do nome, além da questão bíblica, também teve a ver com o Dylan: quando ele passou do acústico para o elétrico foi chamado de Judas pelos puristas. O Judas tem mais que uma parcela de dívida com o Dylan. Da mesma maneira, muitos fizeram isso, trazer a música pop na sua estética folk. O Bob Marley foi pra Inglaterra, o Fela Kuti foi pra Inglaterra. Então isso que fazemos não é uma concepção original, mas segue muito como arquétipo.

Na linguagem musical da banda vem essas referências da sua formação roqueira, mas percebe-se muito de gente que já trilhou esses caminhos no Brasil: Raul Seixas, Zé Ramalho, o Alceu Valença do começo… E já nos anos 90 veio um pessoal, como vem até agora, trazendo essa releitura: Jorge Cabeleira, Tagore… É algo que te interessa também, ou esse pessoal mais contemporâneo não tá no teu radar?
Eu estou Interessado pra caramba. Acho Tagore muito foda! Mas acho que é uma coisa de sincronicidade generacional. Compus as canções do “Nonada” antes de escutar as músicas do Tagore. E também tenho uma ligação com uma galera que não tem essas referências no som, mas tem uma preocupação muito grande com a letra, com a força da palavra. Wado, Ronei Jorge e Os Ladrões da Bicicleta, Mestre Ambrósio, artistas que são contemporâneos e com quem sinto essa afinidade.

Siba, inclusive, está no disco, tocando rabeca.
Siba tinha que participar (risos).

Você falou do pessoal da sua geração, que tem uma preocupação forte com a palavra, e isso é uma coisa que, guardadas as óbvias exceções, sempre esteve presente na música brasileira, independentemente do gênero. O rock dos anos 80 tinha isso também, de modo geral, mas era uma estética derivativa, em letra e som, de coisas gringas. Você acha que de lá para cá, e em especial nos tempos mais recentes, as letras do rock brasileiro, mainstream ou não, ganharam uma identidade mais particular, mais sólida?
(hesita) Não sei dizer. (hesita novamente) Correndo o risco de parecer muito pretensioso, acho que não existe tanta preocupação coma letra. Existe uma preocupação com a autenticidade do sentimento, e acaba sendo algo conduzido como catarse. Não tem uma edição, uma lapidação, não tira as arestas que poderiam deixar aquilo melhor acabado. Veja, não estou dizendo que elas não têm valor, mas sim que predomina essa tendência de preferir a autenticidade em detrimento de estruturar melhor a letra. A música popular cantada tem peso igual ao música instrumental em que ela tá inserida. Um exemplo besta até: a Anitta vai lá e fala das “preparadas” e consegue uma relação com seu público, que compreende e se identifica. Então até nessa música mais comercial, de espaço pago, a letra tem um papel importante e fundamental. Eu acho que a letra deve ter um trabalho mais estrutural, mas seria pedante exigir que todo mundo queira a mesma coisa.

É curioso te ouvir falando de estrutura, porque em algumas canções do Judas a letra extrapola um pouco a métrica, quase como um cantador que usa a viola para contar sua história mais narrando que cantando.
Isso não aparece tanto, mas toda vez que a letra é um pouco maior vem por causa de algo do Judas que não é muito óbvio: a influência do rap. O rap e o hip hop tem letristas muito capazes. Mano Brown é um gênio na construção das palavras. Mas em geral eu costumo tentar respeitar a métrica, para ficar mais palatavelmente pop.

Isso também me chama a atenção, porque o Judas não é pop. Quer dizer, não é inacessível, não é hermético, mas é de assimilação imediata.
Eu digo isso considerando que The Who, Kinks, Beatles, Rolling Stones, são pop. Hoje em dia o pop é visto como uma coisa chiclete, de vida breve. Mas acho que a galera meio que subestima a inteligência do ouvinte hoje em dia. Não deveria ser surpresa que um cara como Kendrick Lamar faça sucesso, ele é foda. Mas a galera se surpreende: “nossa, um cara bom, e que conseguiu fazer sucesso”. A boa música pop consegue ser transgressora e acessível ao mesmo tempo. Não sei se a gente teve capacidade de conseguir isso com o “Nonada”, mas é o que gente quer. Todo mundo faz música para ser ouvido, ninguém faz só para si. Como disse, não sei se já temos isso agora. Quem sabe no próximo disco (risos)…

Por falar nisso, vocês não viajaram muito com o “Nonada”, não é? O plano é seguir trabalhando com ele, ou já pensar no sucessor?
A banda mudou de formação. Dos integrantes do disco, alguns viajaram, outros se mudaram… Atualmente, estamos tocando bastante em Brasília, Goiânia e Anapólis. Estamos tentando ir para São Paulo, o “Nonada” ainda nos qualifica para o Prata da Casa lá no SESC Pompéia, estamos buscando também o circuito de festivais, mas parece que nesse ano houve uma retraída. Fora São Paulo, parece que o país todo está vivendo um ano esquisito. Se é que podemos dizer assim, pretendemos ter 80% de trabalho com o “Nonada” e 20% de novas canções. A banda está com toda essa galera nova, com uma informação musical muito rica, e temos que ter uma “fotografia” dela agora, ou seja, um disco. A gente tá pensando em um EPzinho, ou mesmo um compacto, para poder com essa nova formação.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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