Entrevista: Luiza Lian (2015)

por Leonardo Vinhas

Quando havia destaque onipresente no cenário independente para bandas umbiguistas, sem muita vocação para inovação ou para a intensidade, muita gente dizia que “faltava testosterona”. Machistas que somos, parece não ter ocorrido a ninguém que podiam ser outros os hormônios necessários. Mas o insight teria vindo se a paulista Luiza Lian já tivesse lançado seu disco de estreia, que leva seu nome e ganhou vida neste ano pelo selo Risco.

Na verdade, o cenário musical hoje está bem mais variado e interessante do que aquele descrito acima, que talvez retratasse a realidade de alguns anos atrás. Como integrante dessa cena, Luiza não só está interessada no que fazem seus pares, de São Paulo ou de outros Estados, como também tem vários deles na banda que a acompanha e que foi fundamental na gênese do seu disco. A sua trupe conta com o guitarrista Martim Bernardes (O Terno), o violonista Juliano Abramovay (Grand Bazaar, Noite Torta e Orkestra Bandida), o baixista Guilherme d’ Almeida (O Terno e Grand Bazaar), o baterista Charles Tixier (Charlie & os Marretas) e o tecladista Tomás de Souza (Charlie & os Marretas e Grand Bazaar). Sim, é um sintoma de uma cena interdependente, mas não por isso menos versátil ou interessante.

“Luiza Lian”, o disco (baixe aqui), é tão rock quanto MPB, tão tropicalista quanto psicodélico. Não dá sossego nem quando diminui o andamento ou abaixa o volume. Olha assumidamente para o passado, mas não é revivalista. Como bem define sua autora: “estou fazendo minhas músicas no presente, com as pessoas do presente, mas tem essa influência forte [do que me formou musicalmente]”. O alcance vocal da moça ajuda a personalizar e potencializar as composições, podendo soar infantil (no bom sentido), mântrico ou cheio de entrega roqueira. “Chororô” é a melhor faixa para guiar o passeio, pois apresenta um pouco de tudo o que você vai encontrar no disco: um balanço poderoso, com guitarras altas, versos em tom de oração e vozes do refrão brincando entre a cabrochada e o rock’n’roll. Essa sonoridade e outros assuntos foram abordados com um pouco mais de atenção na entrevista que se segue.

Queria saber um pouco mais do seu passado pré-música. Você foi criada na Bahia, né?
Morei em Trancoso na minha primeira infância. Quando Trancoso ainda não era esse super hype (risos), minha tia e meu pai foram para lá para montar restaurantes. Era uma comunidade hippie mesmo, uma tentativa de viver as coisas de um jeito diferente, de sair da cidade. Era todo mundo muito próximo, todos os eventos que aconteciam todo mundo ia. Tive o privilégio de ter uma infância num lugar paradisíaco. Ainda criança vim para São Paulo, mas voltei muitas vezes para lá.

Dá para ver que muita coisa desse ideário aparece muito na sua música. Inclusive há algumas questões espirituais que aparecem explicitamente em algumas letras.
Sim, eu tenho essa vivência. É uma parte muito significativa da minha vida. Minha vivência espiritual aponta para muitos lados, e eu tenho uma visão mais ritualística que religiosa. É inevitável que isso apareça nas letras, mas porque é minha maneira de enxergar o mundo, e não porque eu quero passar determinada mensagem para alguém. É algo que faz parte da minha vida e consequentemente vai estar de um jeito natural na forma como eu me relaciono, na linguagem poética, na música.

Seus parceiros de composição também parecem ter isso. Imagino que foi uma ligação também consequente dessa tua vivência, associar-se às pessoas assim. As canções do Gê Marques são muito emblemáticas nesse sentido.
As músicas dele já existem independentemente das minhas escolhas. Meu pai é muito ligado a isso…

(interrompendo) Gê Marques é o seu pai? (risos)
É, Gê Marques é meu pai (risos). “A Luz da Vela” (nota: que, assim como “Gula”, é uma parceria de Marques com Beto Bianchi) e “Ônibus Lotado” são dessa época da Bahia. “Escuta Zé” é um poema que eu musiquei. “Protetora” já é um hino do [Santo] Daime. Meu pai é dirigente de um grupo espiritual, e eu peguei essa canção do hinário desse grupo, mas eu mudei o nome.

Falando de música agora: eu vejo que no exterior tem um pessoal que olha para trás e recupera vários elementos que gosta para fazer música com elementos e olhar atuais. Gente como Jack White e todo o pessoal do selo dele, Third Man Records, por exemplo. Então me corrija se eu estiver falando bobagem, mas tenho a impressão que sua música tem esse caráter de trazer coisas do passado, só que com um filtro muito pessoal, muito moderno. E o período para o qual você olha é o final dos 60 e começo dos 70, Novos Baianos, o Gil do começo, aquela Gal mais ousada…
Não é bobagem, não. É bem isso. Inclusive me dei conta disso respondendo uma outra entrevista quando perguntaram quais foram minhas bases no começo. Um dos discos que mudou minha vida foi o “White Album”, dos Beatles. Inclusive o Juliano, que toca comigo desde sei lá quando (risos), descobriu junto comigo e éramos os dois fissurados pelos Beatles e também Caetano, Gil, as coisas deles dessa época. É uma época que amo artisticamente, no Brasil e fora. Também ouvi muito Led Zeppelin e Gal Costa, principalmente os dois primeiros discos. E sempre senti muita afinidade com essa ideia do tropicalismo, da antropofagia: ter uma ideia que vem do exterior e engoli-la e assimilá-la como algo seu. A própria instrumentação dessa época… Não tento ser exatamente aquilo, mas também não tento ser tão diferente [dessas referências]. Estou fazendo minhas músicas no presente, com as pessoas do presente, mas tem essa influência.

E como isso tudo se cria? Como funciona o processo de composição?
Comecei a ensaiar primeiro com o Juliano e o Tomás, e encasquetei que queria fazer um projeto solo, gravar as músicas do meu pai que sabia que minha mãe [Fabiana Lian, também produtora cultural] não gravaria, e também fazer um projeto meu – não no sentido de fazer sozinha, mas de ter a liberdade de dirigir. Ao mesmo tempo os meninos foram chegando junto, falando que queriam participar. E no fim se formou uma banda, foi uma coisa muito especial. Eu estudei piano, entendo música e tal, mas não toco nenhum instrumento, eu componho cantando. Então eu juntava os meninos e cantava para eles, que iam então encontrando o caminho. Foi tudo uma jam, não foi nada colocado no papel. Mesmo os arranjos foram feitos nesse processo. E eles, com todo o conhecimento que têm, sendo os grandes músicos que são, foram interpretando as músicas também. São grandes intérpretes (risos).

Eu tinha ouvido você comentar algo sobre uma possível turnê europeia. Como vai ser isso?
Na verdade eu estou tentando arrumar um show na Espanha, mas provavelmente não será com os meninos. É uma viagem que estou fazendo e que talvez possa incluir alguns shows em voz e violão ou voz e acordeão. Mas ainda estou definindo.

Independentemente de rádio, a gente tem um cenário musical muito legal no Brasil. Pode não ser o desejado, mas não é um inferno: tem bandas de qualidade conseguindo tocar em alguns lugares, um circuito voltando a se formar. Por outro lado, isso ainda é algo pequeno, e os grandes espaços seguem reproduzindo aquilo que chega de mais industrial e “marquetado”. Assim, a questão é onde a música autoral se encaixa? Em especial a sua: ela cabe num circuito que já existe? Onde estão os palcos para esse público? Como chegar às pessoas além da internet?
Menino… eu estou tentando descobrir também! (risos) Agora estou tendo um feedback das minhas músicas que está vindo de além do meu nicho. Esse processo de lançar meu disco está sendo incrível, canto há um tempão, e acho que quando você canta suas composições, você está ali para defendê-las. Em São Paulo eu sempre toquei nas casas autorais: Serralheria, Puxadinho da Praça, Casa do Mancha. E deve ter um público Brasil afora que quer ouvir música autoral… (pausa) Não sei! (risos) Imagino que eu possa agradar tanto ao público do rock quanto ao público da MPB, mas não sei se isso é porque essas são duas referências que eu tenho fortes dentro de mim. De certa maneira, me relaciono com o que tá sendo feito pelo Metá Metá, pelo próprio Criolo… Quando ouvi o disco dele, senti uma afinidade mais poética do que musical, até. Acho que tem gente querendo ouvir esse tipo de coisa, sim. Se é que eu entendi sua pergunta (risos).

Foi mais uma colocação que uma pergunta. Porque não dá para você dizer: “ah, tem uma geração de artistas fazendo um trabalho X…”. O que tem são várias gerações fazendo muitos trabalhos muito bons. O que talvez exista é uma situação formada pelo fato de que dificilmente o artista vai estourar hoje tal como se entendia e desejava antigamente, e possivelmente isso o deixa mais à vontade para fazer a música que quer fazer. E se não tem o sucesso imediato, por outro lado ele forma um público mais interessado e interessante, que a longo prazo se mostra mais fiel, e que divulga intensamente no boca a boca ou no “clique a clique”. E isso começa a unir artistas e públicos de cidades diferentes. As coisas começam a acontecer, e se não oferecem a possibilidade de viver exclusivamente da música, pelo menos abrem caminhos para ir muito além daquele mesmo grupo de 20 ou 30 amigos.
Com certeza! Eu estou com muita dificuldade de tocar, e estou tentando identificar as casas autorais fora de São Paulo. Estou muito a fim de tocar em Belo Horizonte, todo mundo fala super bem de lá. Quero muito tocar em Goiânia, na Bahia, no Rio… Fui percebendo que essa música [do disco] está muito dentro de mim, porém até entrar nas pessoas leva seu tempo. Então, na música independente é passinho de formiga mesmo, desbravando espaços… Eu tenho recebido respostas muito positivas desse disco vindas de lugares diferentes do Brasil, então quem sabe é desse público que já está se formando. As pessoas têm sede de cultura. Eu já fiz show no interior com todo mundo ali muito focado, muito interessado em coisas novas.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Tommaso Protti. Baixe o disco “Luiza Lian” em www.luizalian.com.br

2 thoughts on “Entrevista: Luiza Lian (2015)

  1. É isso!!! Quem vive no interior e é ligado em música e em aquisição cultural em geral é muito carente de shows e eventos interessantes. Quando tem um, é um puta acontecimento.

    Gostei demais do disco dessa moça. “Escuta Zé” é especialmente destacável, mas o instrumental de todas as faixas é ótimo.

  2. De fato, Gabriel. Recentemente, cobrimos o Festival Brasileiro de Música de Rua, na Serra Gaúcha, e falamos do vindouro Paraíso do Rock, no interior do Paraná, e ficou claro o quanto tem gente no interior muito interessada em boa música autoral. O difícil (e alguns estão conseguindo vencer essa dificuldade) é criar um espaço viável para esses artistas mostrarem seu trabalho. Porque vontade há, sim 🙂

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