Cinema: “Cobain: Montage of Heck” exibe algumas teses bastante questionáveis

por Marcelo Costa

Primeiro documentário sobre Kurt Cobain feito com a cooperação de sua família – o que inclui liberação de diários, vídeos, fotos e gravações nunca ouvidas pelo público –, “Cobain: Montage of Heck” (2015) estreou em janeiro (de 2015) no Festival de Sundance e passou rapidamente por cinemas nos Estados Unidos em abril (as exibições no Brasil acontecem de 18 a 20 de junho em oito cidades brasileiras), mas seu foco é a exibição na HBO, uma das produtoras do filme.

Indicado ao Oscar pelo documentário “On the Ropes”, em 2010, o diretor Brett Morgen segue uma linha cronológica que parte da formação da família Cobain (com a mãe, Wendy, falando do casamento com Don Cobain – “Me diziam para esperar, mas eu era muito acelerada” – e pai e madrasta explicando sua relação com o filho), passa pelo nascimento e crescimento de Kurt até a explosão de raiva que o tomou a partir da separação dos pais, aos 9 anos.

Documentários com chancela familiar tendem a pieguice e a chapa branca, mas Brett Morgen consegue desviar-se de situações bregas com destreza enquanto constrói uma interessante figura de um anjo errático. O trabalho de animação de Stefan Nadelman e Hisko Hulsing é excelente, mas “Cobain: Montage of Heck” deixa certa pulga atrás da orelha por sofrer da velha síndrome dos documentários que tentam induzir o espectador a acreditar em teses.

A primeira delas é vilanizar a figura do pai. “Ele desprezava e ridicularizava Kurt, que se sentia humilhado”, diz a mãe. Don conta: “Ela não conseguia suportá-lo, então fiquei com ele. Eu gostava de tê-lo aqui comigo, por perto”. A espinha dorsal do roteiro é provar que humilhação era o maior temor de Kurt, tendo, inclusive, o levado ao suicídio, e nessa argumentação de “defesa materna”, o trauma que será carregado por toda uma vida começa com o pai.

Don se sente pouco à vontade na tela, e não coopera em sua defesa: fala pouco enquanto Jenny, a madrasta, explica a dificuldade de enquadrar Kurt na nova realidade familiar (além da madrasta, Kurt “ganhou” dois meio irmãos): “Nossa vida familiar não era o que ele imaginava, então ele decidiu não fazer nada do que a gente pedisse”, diz Jenny, completando. “E ele queria ser o mais amado”. Nesse momento, foco nas mãos do pai, nervoso.

Há reforço no tema humilhação por parte de Krist Novoselic, baixista do Nirvana (“Se ele pensava que estava sendo humilhado, então você veria a fúria surgir. Eu podia ser humilhado, e eu me humilhava. Mas o Kurt não, nem pensar”), que ainda induz a uma segunda tese: a de que Kurt só teria casado com Courtney porque “eu tinha uma relação com uma pessoa e queria construir uma família para mim, porque a minha se desfez. Acho que Kurt também”.

Kurt, por sua vez, surge contando (em áudio) de sua primeira (e traumática) experiência sexual (tentar o suicídio já era um desejo real, mas ele queria transar ao menos uma vez antes de morrer), de como a maconha o aliviou da complicada rotina de família de pais separados por algum tempo, até a descoberta do punk rock, gênero que ele abraçou com intensidade e que, com seus lemas, deu um sentido novo a sua vida.

Boa parte das histórias não é novidade para fãs que leram “Mais Pesado Que o Céu” (2002), de Charles R. Cross, como a fase em que Kurt viveu com a namorada Tracy Marander (ainda que não deixe de ser interessante conhece-la e ouvi-la) e o caos que se transformou a vida do casal Kurt e Courtney após a violenta reportagem da Vanity Fair, que os acusava de continuar usando heroína enquanto Courtney estava grávida de Frances Bean.

O trecho final de “Cobain: Montage of Heck” é lotado de vídeos caseiros de Kurt e Courtney, muitos deles com a pequena Frances, humanizando (e até bobalizando) o rock star: “Johnny Rotten, Leonard Cohen, Led Zeppelin, The Beatles e você”, lista em certo momento Courtney com Frances numa banheira. “Você disse Bob Dylan?”, Kurt pergunta. “Você não conta histórias como ele, mas…”. E Kurt parte numa imitação canhestra do bardo de Minnesota.

Retomando a espinha dorsal do roteiro na tentativa de provar a tese, Courtney conta que Kurt “era tão sensível que a única vez que eu pensei em traí-lo, ele deve ter lido a minha mente, ou algo, eu pensei nisso, mas não consegui fazer. Não passou de um plano. E a resposta dele foi tomar 67 Rohypnols (num hotel em Roma). E acabou em coma, porque eu pensei em traí-lo. Quer dizer, só pode estar brincando”.

Na sequencia, a edição corta para Kurt interpretando, no Acústico MTV, “Where Did You Sleep Last Night?”, clássico de Leadbelly sobre um homem ciumento que quer saber onde sua menina dormiu na noite passada. “Acho que ele via mais como uma traição do que propriamente rejeição”, observa Courtney sobre a tentativa de suicídio em Roma motivada por ciúmes. Sobe a legenda: “Um mês depois de voltar de Roma, Kurt Cobain cometeu suicídio”.

Tal qual “Control” (2007), filme de Anton Corbijn que defende que Ian Curtis (Joy Division) se suicídou pela inabilidade de lidar com um casamento fracassado e uma amante, “Cobain: Montage of Heck” aposta suas fichas no suicídio por ciúmes e humilhação (importante lembrar que, na época, Courtney não estava em casa porque estava finalizando “Live Through This”, segundo disco do Hole, lançado oficialmente uma semana após o suicídio de Cobain).

O que Corbijn e Morgen parecem ignorar é que tanto Ian Curtis (que se enforcou aos 23 anos) quanto Cobain eram bombas-relógio repletas de frustração e problemas de saúde. No caso de Kurt, há o agravante do avassalador sucesso do Nirvana, aquele tipo de popularidade que impede a pessoa de ter uma vida normal. “Cobain: Montage of Heck” até fala da dor no estomago, da dificuldade de lidar com o sucesso e do vício em heroína, mas acaba baixando o pano com uma solução questionável.

Apresentado como o documentário definitivo sobre o mito, “Cobain: Montage of Heck” exibe algumas teses questionáveis, mas tem um vasto material artístico nunca visto de Kurt, uma edição de imagens caprichada e aquelas músicas sensacionais que detonaram um movimento. Torna-se imprescindível uma sessão em sala grande, com som e imagem de qualidade: o caos, a poesia e a confusão de Kurt Cobain permanecem. Porém, é preciso amplificar o olhar sobre o mito, não reduzi-lo. “Cobain: Montage of Heck” o reduz desavergonhadamente. Pena.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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