Livros: Dora Bruder, de Patrick Modiano

por Renata Arruda

No longa polonês “Ida”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, a jovem personagem-título está prestes a fazer seus votos para se tornar freira quando a madre superiora do convento lhe informa que ela tem uma tia, da qual nunca ouvira falar, e informa a Ida que ela terá que passar algum tempo com a tia, quase como torcendo para que a menina não volte.

Ao conhecer sua única parente, uma revelação: além de tomar ciência de seu verdadeiro nome, a jovem também descobre pertencer a uma família judia. E então segue em busca de descobrir onde foram enterrados os corpos de seus pais, a fim de resgatá-los e dispensar a eles um enterro digno – tudo isso enquanto descobre outro universo, além dos muros do convento.

A tarefa não é tão fácil: os judeus perseguidos durante os anos de ocupação nazista simplesmente desapareceram, tendo seus rastros apagados, ou como diz brilhantemente André de Leones em seu prefácio, “aqueles que foram gratuita e brutalmente esvaziados, anulados, despidos de si mesmos”.

O polonês “Ida” consegue ampliar a dimensão do tema tratado pelo escritor francês Patrick Modiano em “Dora Bruder”, livro de 1997 que a editora Rocco lançou no Brasil em 2014: o apagamento de toda uma história e o esquecimento de pessoas de quem fora roubada a dignidade e a humanidade. A inspiração para o livro veio quando o autor, já nos anos 80, se deparou com um anúncio em um jornal de 1941. Dora Bruder estava desaparecida e seus pais procuravam por ela:

“Procura-se uma jovem, Dora Bruder, 15 anos, 1,55cm, rosto oval, olhos marrom acinzentados, casacão cinza, suéter bordô, saia e chapéu azul-marinho,sapatos marrons. Qualquer informação dirigir-se ao Sr. e à Sra. Bruder, bulevar Ornano, 41, Paris”

Tentando imaginar o que poderia ter acontecido com a menina, Modiano ainda tentou transformar a história em ficção, trocando o nome de Dora para Ingrid, mas o romance não foi adiante. Ele decidiu então fazer uma busca para tentar refazer os passos e, quem sabe, descobrir o paradeiro de Dora Bruder e é sobre esta busca que ele baseia seu livro.

Em sua pesquisa de campo, Modiano consegue muito pouco: um endereço, uma certidão de nascimento, algumas fotografias, alguns documentos e menções em relatórios e informações sobre os pais de Dora. Pouco mais de 40 anos depois, Paris não é mais a mesma e, ainda que a geografia não tenha mudado muito, o cenário muitas vezes está diferente: “Foi tudo aniquilado, para que se construísse uma espécie de cidade suíça, da qual não se pudesse colocar em dúvida sua neutralidade” (p. 130).

O autor muitas vezes faz paralelos entre fatos que envolvem a vida de Dora e sua família com a sua própria, principalmente no que diz respeito a seu pai – um judeu que conseguiu fugir da prisão em um golpe de sorte –, com quem perdeu contato para sempre desde a adolescência. Nas palavras de André de Leones, “a partir de um dado momento, a busca pelo outro acaba por se traduzir numa busca por si próprio, mediante sua relação com a memória e com a cidade’.

Mais importante que tentar refazer os passos de Dora Bruder, o que Modiano faz é chamar atenção para o quanto do passado sinistro da França foi varrido para debaixo do tapete, apagando por completo a existência de pessoas que viveram e trabalharam em Paris como se nunca tivessem existido – tema que ele aborda também, de maneira diferente e bem mais sutil em “Uma Rua de Roma” (“Rue des Boutiques Obscures”, de 1978), com seu personagem amnésico que encontra dificuldades para descobrir seu próprio passado. Tudo foi destruído, descartado, esquecido e uma outra história, menos sombria, colocada no lugar: “São pessoas que não deixam vestígios atrás de si. Praticamente anônimas. Não podemos separá-las de certas ruas de Paris, de certas paisagens de subúrbio, onde descobri, por acaso, que moraram. O que sabemos delas se resume, quase sempre, a um endereço apenas. E essa precisão topográfica contrasta com o que vamos ignorar para sempre de suas vidas – esse branco, esse bloco de desconhecimento e silêncio.” (p.25)

“Quando a cada ano se pensa que os bons livros se acabaram, aparece o desconhecido de sempre ganhando o Nobel para nos lembrar de que não é assim”, escreveu Iván Thays no El País. Patrick Modiano era um nome da literatura esquecido fora da França até o ano passado, quando teve seu trabalho reconhecido com um inesperado Prêmio Nobel de Literatura. A editora Rocco, responsável por lançar no Brasil durante os anos 80 a obra de Patrick Modiano, rapidamente relançou três de seus títulos mais emblemáticos: além de “Dora Bruder” (1997), “Ronda da Noite” (1969) e “Uma Rua de Roma” (1978) completam a coleção de romances curtos de um autor com o importante mérito de tentar resgatar algum fragmento de um passado nem sempre conveniente.

– Renata Arruda (@renata_arruda) é jornalista e assina o blog Prosa Espontânea

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