Livro: Middlesex, de Jeffrey Eugenides

por Adriano Costa

No início dos anos 20, dois irmãos fogem desesperados de um pequeno vilarejo da Grécia. A guerra Greco-Turca estava em pleno andamento e estourava confrontos militares em vários pontos da região devido à partilha do Império Otomano após o final da Primeira Guerra Mundial. Esses dois irmãos conseguem encontrar uma embarcação com destino aos EUA e, após uma pequena aventura digna de um filme, conseguem debandar para longe dali deixando o medo para trás, mas também todas as lembranças da terra natal.

Ao entrar no navio para a América, os irmãos Desdêmona e Esquerdinha mal sabiam que seriam capazes de influenciar tanto a vida da neta que nasceria somente dali a 40 anos. Calíope Helen Stephanides nasceu em Detroit no início dos anos 60 e até meados de 1974 foi criada como uma menina comum como qualquer outra – por mais que ela não se achasse assim. Todavia, em 1974, ela fica sabendo que devido a uma alteração em um cromossomo seu, ela é na verdade um hermafrodita e a partir desse ponto passa a se considerar e a viver como um menino.

É como homem que Cal (agora com um nome mais adequado) narra a própria história e a da família, agora já com 41 anos e direto de Berlim, onde vive e trabalha. Uma pessoa que nasceu duas vezes, ele assim se define. “Middlesex” (mesmo nome no original) o usa como narrador e viaja tanto para o passado ainda antes da fuga de Desdêmona e Esquerdinha de uma Grécia em chamas quanto para a vida atual com o personagem já adequado como homem, mas ainda sofrendo todo o tipo de dúvidas e receios em relação ao corpo e sua condição tão peculiar.

“Middlesex” foi o segundo livro do escritor Jeffrey Eugenides, que, assim como Calíope/Cal, também nasceu em Detroit em 1960. Originalmente publicado em 2002, “Middlesex” rendeu a Jeffrey Eugenides o festejado prêmio Pullitzer (em 2003) e foi republicado no Brasil em 2014 pela Companhia Das Letras com 576 páginas e tradução de Christian Schwartz. Jeffrey estreou com o romance “As Virgens Suicidas”, de 1993, livro que marca a estreia da diretora Sofia Coppola no cinema, com sucesso cult, em 1999 (e que ganhou edição nacional em 2013 via Companhia das Letras). Ele é ainda é do autor “A Trama do Casamento”, sua terceira obra publicada aqui em 2012 pela mesma editora.

“Middlesex” é uma história grandiosa que atravessa três gerações destacando alguns momentos bem particulares da história norte-americana, como a depressão de 1929, a instituição da Lei Seca, o fortalecimento da indústria automotiva e os conflitos raciais dos anos 60. Com uma literatura esbelta e o cuidado de expor tanto a parte clínica quanto pessoal do personagem principal, Jeffrey Eugenides forja uma história em que nuances divertidas e trágicas andam quase de mãos dadas podendo tranquilamente dividir um chope na esquina.

Assim como nos outros dois romances (o anterior e o posterior), o autor não deixa de cutucar ideais do seu país e da sociedade norte-americana como um todo no que tange a postura conservadora e reacionária, porém é em “Middlesex” que essa crítica é exposta de maneira mais exuberante e contundente. Em um drama familiar aparentemente comum no seu âmago, o autor retorce, comprime e fantasia os fatos para contar não só a história incomum de algumas pessoas como também a história de um gene que viajou por gerações para causar estardalhaço. Irretocável.

– Adriano Mello Costa (siga @coisapop no Twitter) e assina o blog de cultura Coisa Pop

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