Você fundou uma das mais lendárias bandas do pós-punk inglês. Seu próximo grupo demoliria as barreiras entre o indie rock e o pop eletrônico, influenciando sucessivas gerações. Esteve à frente de uma das casas noturnas que catalisaram a explosão da acid house e da eletrônica dos anos 1990. Finalmente separado dos companheiros, passou a rever o repertório de suas duas bandas em turnês-tributo. Não contente com tudo isso, ainda – com o perdão do clichê – ataca de DJ mundo afora, combinando a experiência acumulada em 40 anos de palco com uma curiosidade voraz sobre novos sons. O que resta?
Se o seu nome é Peter Hook, nem você pode prever. O baixista do Joy Division e do New Order hoje alterna-se entre as excursões com sua banda The Light (com a qual revisita o catálogo das duas bandas), lançamentos de livros (“Unknown Pleasures: Inside Joy Division” foi lançado em 2013 e “The Hacienda: How Not to Run a Club” saiu em 2014) e aparições como disc-jockey . E foi nessa última condição que o músico inglês de 58 anos voltou ao Brasil, meros três meses depois de sua última visita. Discotecando na festa de abertura da Rio Music Conference 2015, no começo de fevereiro, Hook mandou remixes meio estranhos de clássicos como “Love Will Tear Us Apart” e coisas novas de gente como Disclosure e Tinnie Tempah.
Mas antes, participando de um rápido Q&A (Questions and Answers), compartilhou alguns bem-humorados tostões de sua experiência com uma seleta plateiazinha. Falou de tudo: Joy Division, New Order, as rusgas com o (ex)amigo Bernard Sumner, a morte de Ian Curtis, os perrengues como administrador do clube Haçienda, em Manchester, e a nova vida como DJ. E garantiu: encontra-se no melhor momento de sua carreira.
De volta ao Brasil: “A primeira vez em que vim ao Brasil foi espantoso… tocamos aqui em estádios para cinco, dez mil espectadores, enquanto que na Inglaterra tocávamos para 500, mil pessoas…”
Vida de DJ: “Ser pago para tocar minhas próprias músicas é bom. Ser pago para tocar as músicas dos outros é excelente!”
“No começo eu tinha uma atitude meio provocadora. Tocava músicas para desafiar o público – botava Johnny Cash, por exemplo, e aí a pista esvaziava. Um DJ tem muita responsabilidade. Eu frequentemente fico mais tenso antes de me apresentar como DJ, diante de uma pista de dança, do que antes de entrar no palco para tocar ao vivo. Porque num show, o público já sabe o que esperar, e o músico também… mas como DJ, se você começar errado, e não sintonizar com o público, a pista esvazia em 10 minutos.”
“As pessoas esperam que eu toque músicas do New Order e do Joy Division e eu quase nunca as toco. Pelo menos, não as versões originais. Prefiro investir em remixes das coisas antigas. Vejo que a maioria dos DJs prefere se concentrar em sons novos, novidades, mas eu tenho uma grande bagagem como músico e gosto de recorrer a essa herança. Tenho tocado um remix de “Blue Monday” exclusivo, feito por Todd Terry, e também uma versão hard house super-rápida, com os BPMs lá em cima. Toco também um mashup com uma música da Madonna, que ficou muito bom”.
“Eu aprendi com Mani (Stone Roses). Estávamos num festival em Barcelona e ele seria o DJ. Perguntei qual era o segredo e ele disse apenas: ‘Você só precisa ficar lá de pé e parecer bonitão’. Pensei então: ora, isso eu consigo fazer (risos). Aí Mani estava lá fazendo seu set, e estava fazendo scratches num vinil, mas a vitrola estava desligada. Ele estava realmente se esforçando, girando o disco, mas não saía som algum – e ele não conseguia perceber, pois estava usando fones de ouvido. Tentei avisa-lo, mas ele não escutava… A faixa que estava tocando acabou e o público ficou lá, parado, olhando sem entender. Quando ele finalmente notou que ninguém estava dançando, pegou vários discos de seu case e começou a arremessa-los contra o público! E pensei então: ser pago para arremessar LPs nas pessoas… isso eu também posso fazer (gargalhadas).”
Música eletrônica: “Eu vi a eletrônica nascer na Inglaterra, eu estava lá no começo, 1984, 1985. A grande questão com a eletrônica é que as pessoas passaram a poder fazer tudo por conta própria, e isso tem seus prós e seus contras… Os artistas daquela época, que acabaram gerando a acid house, eram muito influenciados pelos sons americanos, os pioneiros do techno e da house. Eu acompanho o cenário da EDM e hoje em dia, creio que aquele tipo de som dos anos 80 continua a ser muito influente; vários artistas novos que tenho acompanhado soam como coisas daquela época.”
A época punk em Manchester: “Pensar em ter uma carreira musical em Manchester, em 1976, era uma ideia completamente alienígena… Na escola, eu disse a meu orientador vocacional que pretendia ser músico e ele me deu um tapa. ‘Não seja burro!’ Ninguém levava a ideia a sério, nem meus pais, nem meus amigos. Mas nós – Bernard e eu – éramos muito teimosos. Acreditávamos na ideia. Quando Johnny Rotten apareceu e mostrou que qualquer um podia fazer também… Ser punk era bem difícil… nós fizemos parte da turma original. Hoje em dia, os adolescentes podem escolher a que tribo pertencem: você pode ser um gótico, um punk, um clubber… Em 1976 não tinha isso, era perigoso andar vestido como um punk.”
Ian Curtis, Joy Division: “Tínhamos um sentimento do tipo ‘nós quatro contra o mundo’. Ian sempre dizia que éramos grandes, os melhores, e aquilo era muito importante. Quando estávamos no palco e eu o observava, dançando e cantando, eu sentia muita verdade e sinceridade nele. Nem me importava com o que ele estava cantando – mas soava verdadeiro. Recentemente, passei a tocar as músicas do Joy Division com minha banda e fui reler as letras para canta-las, e foi como levantar um véu sobre o significado dos versos. Pode-se dizer que ele estava dando várias pistas sobre o que iria acontecer. Ian sentia-se muito infeliz”.
“Muita gente tentou ajuda-lo: seus pais, amigos, a banda, mas ele estava fora de alcance. Foi triste ver alguém ficar doente daquele jeito. Quando ele descobriu que era epilético, a primeira ordem que recebeu dos médicos foi para abandonar a banda… e era justamente a coisa mais importante da vida dele, e estávamos às vésperas de finalmente fazer algum sucesso. Ele lutou o quanto podia, mas não conseguiu vencer. E os remédios que ele tomava – um monte, estimulantes e sedativos – iriam acabar o matando de qualquer maneira, mesmo que ele não se suicidasse. Quando Ian se foi, deixou um verdadeiro vazio. Um buraco que Gillian (Gilbert, tecladista do New Order), lamento dizer, nunca esteve nem perto de preencher”.
“Por muitos anos, nós ignorávamos nosso passado no Joy Division. Simplesmente não falávamos a respeito e focávamos no grupo novo. Então, em algum momento do final dos anos 80, voltamos a tocar algumas músicas do JD, e chegamos até mesmo a fazer um show só com o repertório do Joy Division. Havia a ideia de tocarmos o mesmo repertório, como o New Order, mas Bernard não quis. Disse que as músicas o ‘deixavam pra baixo’. Bem, as músicas do New Order são mais alegres, e são letras dele, ele as escreveu, então é natural que ele se sinta assim… Mas quando eu saí em turnê tocando as músicas do Joy Division, naturalmente que o New Order voltou a toca-las também!”.
O New Order e a eletrônica: “Sempre digo que foi uma mistura de habilidade, talento e sorte. Nós nunca conversamos sobre música, nem na época do Joy Division, nem no New Order… Nunca nos reunimos e dissemos, por exemplo, ‘Vamos fazer uma música tipo Kraftwerk!’ Tudo se resumia à química que nós três, Bernard, Steve (Morris) e eu tínhamos, é o tipo de química que leva um grupo adiante e que, infelizmente, também é a responsável pelo fim de um grupo. É algo que não se pode dominar. Na fase do Joy Division, nós quatro estávamos em pé de igualdade. Ian nunca nos disse o que tocar. Nós nunca desistimos. Minha mãe me ensinou a nunca desistir, a sempre olhar adiante. No momento em que você para, está fodido.”
“Nós voamos para Nova York para trabalhar com Arthur Baker, e não tínhamos ideia alguma pronta – uma atitude bem radical. Hoje, com computadores, em poucos minutos você tem uma base para trabalhar, mas não era assim em 1983. Baker não parecia ter muita noção do que estava fazendo, mas uma vez que ele começava, ninguém conseguia para-lo (risos). Gravamos ‘Confusion’ em uma única sessão de 24 horas no estúdio, trabalhando em turnos. James Brown estava trabalhando no mesmo estúdio naquele dia e cheguei a esbarrar com ele na saída”.
“Talvez tenha sido o ponto em que finalmente deixamos a sombra do Joy Division. Eu mesmo não gostava da ideia de termos colaboradores de fora. Sempre fui visto como o ‘dinossauro’ da banda. ‘Se somos tão bons só nós quatro, por que chamar gente de fora?’, era o que eu sempre dizia. Lembro que em 1983 um famoso DJ de Manchester me procurou. Ele queria fazer um remix de ‘Blue Monday’ e eu mandei o cara se foder. ‘Como ousa?!’ (risos) Hoje, claro, todo mundo lança remixes de tudo.”
O Haçienda: “A ida a New York para trabalhar com Baker nos deu a ideia do clube. Fomos a muitas boates legais lá e parecia um conceito muito simples – uma grande caixa de concreto preta, um sistema de som e um bar. Rob Gretton (empresário do New Order) e Tony Wilson (dono da Factory Records) pegaram dinheiro do New Order para fundar o Haçienda. Era maravilhoso, mas custava uma fortuna. Uma quantia ridiculamente alta de dinheiro. Uma coisa que não entendíamos sobre o negócio de casas noturnas é que tudo se baseia em modismos que vem e vão, e que são muito imprevisíveis. Tony sempre era otimista, dizia que ‘no verão que vem, tocaremos um novo tipo de música e a casa ficará cheia!’ E o verão chegava e… onde estão as pessoas, Tony? Ninguém vinha! E então os prejuízos se acumulavam… Quando as dívidas estavam em 4 milhões de libras, o New Order passou a ter que fazer turnês extras e lançar mais discos para tentar cobrir as contas do Haçienda. E isso foi o começo do fim da banda, por volta de 1987 ou 1988. Bernard era preguiçoso – não gostava de fazer turnês, embora acabasse se divertindo quando estávamos na estrada. Em 1987, ele, Steven e Gillian se desligaram do clube e eu fiquei só com Rob, até fecharmos em 1997.”
“A violência era terrível. O Haçienda virou ponto de encontro de gangues, quatro ou cinco gangues toda noite. Vocês sabem como é, aqui no Rio vocês têm as (brigas entre) favelas – o Haçienda era como cinco ou seis favelas reunidas, só que com todo mundo chapado de ecstasy (risos). A polícia não se importava, na verdade eles gostavam. Nós fazíamos um favor a eles: todo sábado à noite, todos os marginais da cidade estavam reunidos no clube, e o resto da cidade ficava em paz (risos). Minha sorte é que as gangues respeitavam os músicos locais. Então, se eu, Bernard ou Shaun Ryder (Happy Mondays) aparecíamos, tínhamos passe livre entre todas as facções. Chegávamos e todo mundo dizia: ‘Ei, chega mais, tome um E, cheire uma carreira…’ (risos)”
Espírito punk: “Ainda me vejo como um punk. Há 40 anos, queríamos nos livrar dos bodes velhos que dominavam a música. Hoje, EU sou um bode velho, então tenho que dar um jeito de continuar em cena! O punk era apenas um meio de dizer: faça do seu jeito. Você tem que fazer seu próprio caminho, não ser guiado por outra pessoa.”
Um segredinho: “Roubei duas linhas de baixo do Hot Chocolate para fazer músicas do New Order. Espero que ninguém jamais reconheça em quais músicas estão. Sou fã da banda. Um dia encontrei (o vocalista) Errol Brown e confessei o roubo a ele. E ele disse: ‘Ah, que bom!’”
O melhor momento da carreira?: “Agora! Hoje tenho a oportunidade de tocar com meu próprio filho, o que é algo maravilhoso. Só falta eu acertar as pontas com o New Order – legalmente falando – para tudo ficar perfeito.”
– Texto de Marco Antonio Bart (@bartbarbosa), jornalista que assina o blog Telhado de Vidro
Fotos: Divulgação / Rio Music Conference
Leia também:
– “Tocando a Distância”: Deborah Curtis humaniza e mitifica vocalista do Joy Division (aqui)
– Assista na integra: documentário de Grant Gee conta a história do Joy Division (aqui)
– “Low Life”, do New Order: De Manchester para a alma de quem escuta (aqui)
– “Best Of”, coletânea do Joy Division, é apenas para quem descobriu Ian Curtis ontem (aqui)
– Na Colômbia, 2013, New Order faz de seu show uma experiência bastante divertida (aqui)
– Em São Paulo, 2006, quem esperava perfeição do New Order deve ter se frustrado (aqui)
One thought on “Peter Hook: Hoje eu sou o bode velho!”