Entrevista: Márcia Castro e o 3º disco

por Bruno Leonel

Marcia Castro está de volta. Com “Das Coisas Que Surgem”, seu terceiro trabalho de estúdio, a cantora baiana surge incansável na exploração de sonoridades enquanto trilha um caminho próprio que a afasta de “cenas” ou tendências, que parecem imperar (e tornar tudo igual) na música brasileira. Mais coeso e maduro do que “Pecadinho” (2007) e, com mais ousadia do que em “De Pés no Chão” (2012), “Das Coisas Que Surgem” imprime um competente terceiro passo balizado por um verdadeiro caldeirão de sons.

Gui Amabis assina a produção do novo trabalho, que ainda conta com a participação da cantora Mayra Andrade, do saxofonista Thiago França (integrante do Metá Metá) e do poeta Arruda em contribuições mais do que especiais em um disco que apresenta cinco (das onze canções) assinadas por Márcia Castro – algumas escritas há anos e só agora amadurecidas. A intenção do trabalho aparece na sutileza de cada detalhe, e quase como uma narrativa com começo, meio e fim, o disco dá pistas do caminho a ser mostrado.

Desde o título da primeira faixa, “Os Atalhos”, até o doce solo dissonante no lamento de “O Amor Tem Dessas”, passando pela “psicodelia” (com aspas) de “Mau Caminho”, pela ginga inconstante de “Sem Mistério” (da boa frase “Se hoje eu te venero, amanhã já nem te quero”) até o recado final que resume a jornada e explica a busca em “O Que Me Move”, “Das Coisas Que Surgem” não apenas apresenta um corpo coeso, quase geométrico de canções, como busca expandir o leque sonoro em vários momentos.

Se algo surge, sem aviso, tende a gerar mudanças e dessas mudanças, aos poucos, tendem a se formar novas impressões e ideias. Por esse prisma, o disco parece tentar captar a essência desses surgimentos em uma impressão bruta, sem ainda digerir os acontecimentos, o que mantém uma espontaneidade marcante no conjunto. E para falar melhor sobre essas impressões, Marcia Castro atendeu ao Scream & Yell em conversa por e-mail, em que contou que “queria que o disco tivesse um jeito de vida cotidiana, de coisas simples, sentimentos ordinários, coisas minhas bem triviais”. Confira o bate papo.

No novo disco quem assina a produção é Gui Amabis. O disco anterior tinha produção do Guilherme Kastrup e do Rovilson Pascoal. Como foi a diferença de processo de criação entre os dois trabalhos? Os dois tipos de produção influenciaram muito no resultado final?
Foram construções bem diferentes. O “De Pés No Chão” foi um disco que nasceu do palco. Eu já tocava aquele repertório havia algum tempo, estava bem familiarizada com as músicas e com a banda. Nesse sentido, introduzir o universo do palco no estudio foi um processo mais simples. Já o “Das Coisas Que Surgem” foi concebido todo em estúdio. Eu não tinha um repertório fechado quando comecei a trabalhar com Gui. Íamos escolhendo música a música, discutindo aquelas escolhas. Depois ele fazia a pré-produção minunciosamente em casa. Ao passo que ele ia pré-produzindo, eu ia escutando, vendo, me encontrando nas músicas para poder cantar em diálogo com a sonoridade que estava sendo proposta. Com todas as músicas escolhidas e todas as pré-produções feitas, fomos pro estudio gravar com os músicos. E logo em seguida, gravamos as vozes. Adoro o resultado dos dois trabalhos, porque houve uma entrega absoluta e muita competência de quem estava realizando comigo.

É verdade que algumas faixas com o Gui Amabis ficaram engavetadas três anos?
É verdade. Começamos esse processo em 2010. Foi tudo muito rápido. Fomos apresentados pela Patricia Palumbo, propus o trabalho, ele topou, definimos as três primeiras músicas (“Na Menina dos Meus Olhos”, “Três da Madrugada” e “Um Bom Filme”), entramos em estúdio, gravamos… (mas) percebi que eu precisava de um tempo para entender melhor esse novo processo, essa nova sonoridade para existir de modo consistente dentro dela. E também eu tinha um disco pronto nos meus shows, queria registrar aquelas canções, tinha uma banda disposta, a fim de realizar esse álbum. Foi daí que surgiu o “De Pés no Chão”. O projeto com Gui ficou em suspenso por um ano, mas na sequência voltamos a nos encontrar, a conversar. Foi ótimo, pois nesse tempo amadurecemos o nosso processo, o nosso diálogo. Aproveitamos tudo das três faixas que gravamos em 2010 e implementamos algumas coisas nelas.

Como rolou a aproximação com Gui Amabis? Já haviam tocado ou feito algo antes?
Quem nos apresentou foi a Patricia Palumbo. Certo dia fomos almoçar juntas e eu falei do desejo de encontrar alguém de São Paulo para produzir um disco novo e ela sugeriu Gui. Pesquisei o trabalho dele, achei interessante todas as produções, principalmente as trilhas, esse jeito de compor para histórias. Na sequência nos encontramos no lançamento do “Eu Menti pra Você”, de Karina Buhr, no Sesc Pompéia, marcamos um encontro e começou toda a história. Nos conhecemos já trabalhando. Foi tudo uma grande surpresa.

E quanto aos músicos que participaram da gravação? A banda que gravou o “De Pés no Chão” te acompanhava desde 2010, estrearam no show de Montreaux… Mudou muita gente de lá pra cá?
Eu deixei Gui a vontade para escolher os músicos com os quais ele tivesse maior afinidade para a gravação do disco. Queria muito um músico baiano que pudesse imprimir sutilmente esse molho baiano nas camadas de sons. Sugeri o Juninho Costa. Gui tambem curtiu a idéia e trouxemos o Juninho da Bahia. Rolou uma liga muito boa da banda base que gravou o disco: Samuel Fraga (bateria), Regis Damasceno (baixo, violão) e Juninho Costa (guitarra). Da banda que gravou o disco, somente o Samuel Fraga entrou para a banda dos shows. Rovilson Pascoal e Ricardo Prado, parceiros de longa data, continuam na banda e o Lucas Martins entrou no contrabaixo. Mas temos também parceiros novos como o Hugo Carranca (bateria) e o Meno Del Picchia (baixo), que eventualmente tocam com a gente.

Vi uma vez o Siba comentando sobre certas diferenças que existem entre a gravação de um disco e a interpretação que as músicas recebem no palco. Houve essa preocupação durante a produção do “Das Coisas Que Surgem”? Desde o começo tudo foi planejado para poder ser feito ao vivo ou isso apenas foi preocupação em um segundo momento?
Não pensamos nisso, porque eu já percebia que a produção do Gui era enxuta. Muitas camadas do disco vinham dos samplers e era importante manter os samplers como samplers mesmo, no caso dos shows. Isso já me tranquilizava, tanto em termos estéticos, para que o disco tivesse uma unidade, quanto em termos de logística de show, porque hoje é difícil viajar com uma banda muito grande. Isso ou inviabiliza o show ou inviabiliza o som. A maior dificuldade na hora de montar o show foi ver onde podíamos e devíamos manter os samplers, ou onde era mais adequado eliminá-los e usá-los apenas como guia. Acho que encontramos um ponto de equilíbrio.

Pessoalmente achei que o disco tem um tom mais pessoal do que o seu trabalho anterior. Diria que há até um certo clima de confissão em algumas faixas. Músicas como “Beijos de Ar” e “O Amor Tem Dessas” parecem ter um quê de lamento. Foi intencional? Coisas da vida pessoal acabam pesando muito para você na hora de escrever?
Sem dúvida. A minha vida cotidiana é substrato pra tudo que faço. Tem horas que a gente revela isso, tem horas que está implícito. Mas não deixa de existir. O fato de compor as músicas com o Arruda trouxeram muita pessoalidade pro trabalho, porque a gente vinha num fluxo muito gostoso de encontros casuais, conversas, cumplicidade. O discurso em primeira pessoa, vindo de quem compõe e escreve revela esse tom confessional mesmo. Eu queria que o disco tivesse um jeito de vida cotidiana, de coisas simples, sentimentos ordinários, coisas minhas bem triviais. Ficou assim.

Em uma entrevista da época do “De Pés no Chão” você dizia que dificilmente lançaria um disco inteiro de composições suas. O tempo passou e neste terceiro disco seu nome já aparece nos créditos de cinco canções dentre as onze do trabalho…
Na verdade, não foi intencional compor. Na breve pesquisa que fiz com novos compositores, não encontrava nada que eu achasse a minha cara, que tivesse o meu jeito naquele momento. Em contraponto, lia os e-mails/poemas que Arruda me mandava e sentia uma vontade imensa de cantar aquelas palavras, de trazer música para elas, além de me inspirar também a escrever. Então foi assim que surgiu o processo de composição desse disco, que foi além do CD e gerou outras canções. Mas continuo achando difícil cantar um disco inteiro de músicas minhas. Eu me complemento muito no outro. É um processo interessante o de se apropriar da obra de outra pessoa e dar sua vida a ela. Gosto desse desafio. Sou uma artista do fluxo. As coisas que me motivam variam muito. O que tenho certo em mim é que se algo me motiva muito, me comove, eu deixo acontecer, eu faço acontecer. Pode ser algo bem tradicional, ou algo bem diferente. O que importa é o quanto aquilo te mobiliza.

Falando em parcerias, no disco também aparecem a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade e o saxofonista Thiago França. Como foi a aproximação com esse pessoal?
Mayra é amiga de longa data, desde 2009, quando fomos apresentadas por Mariana Aydar. Desde então, ficamos muito próximas. Ela acompanhou o processo desse disco desde o início, ouviu e se encantou pelas três primeiras músicas que produzimos em 2010. Daí, como admiro muito o trabalho dela, convidei-a para participar. Foi uma comunhão, digamos. Gravamos as vozes nessa mesmo época, em 2010. O Thiago eu já conhecia das rodas de amigos em comum de Sampa, como o Kiko Dinucci. Acho-o um músico sensacional, visceral, investigativo. Foram participações realmente especiais.

No último ano, quais artistas (ou bandas) você andou ouvindo? Dos artistas nacionais, muita coisa andou te chamando atenção?
Nossa. Eu ouço muita coisa, mas esse ano foi um ano que pesquisei menos do que geralmente costumo pesquisar. Ouvi muito o novo disco da Nação Zumbi. Muito mesmo. O disco de estréia do conterrâneo Russo Passapusso. Os novos discos de outros dois conterrâneos: Lucas Santtana e Jurema. Ouvi a Academia da Berlinda. O novo disco da Alice Caymmi. Tem um grupo que tenho escutado muito, que é o Hypnotic Brass Ensemble. E nessa semana estou escutando devagarzinho o novo disco do Tom Zé, cheio de participações sensacionais.

Te entrevistei em 2012, quando você falou sobre como a mudança (da Bahia para São Paulo) influenciava no desenvolvimento de ideias artísticas. Estando desde 2008 morando na cidade, esse processo continua? O que você diria que tem de São Paulo nas canções do “Das Coisas Que Surgem”?
Tem muita coisa!! Esse disco é praticamente minha história com São Paulo: as letras que canto, o jeito do som, a relação com Gui, com os músicos. É um disco que sintetiza o encontro transformador com essa cidade, crucial no meu processo artístico. São Paulo é a grande protagonista nesse trabalho. Senti uma necessidade de revelar em música essa minha relação de amor e conflito com Sampa. Agora, estamos resolvidos.

– Bruno Leonel é jornalista e já entrevistou Sergio Dias e Siba para o Scream & Yell.

Leia também:
– Marcia Castro (2012): Para a música independente, a internet foi uma mudança geral (aqui)

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