Um documentário sobre o Big Star

por Bruno Capelas

Era uma vez uma banda de rock cujo nome tinha como inspiração um supermercado de sua cidade, Memphis, nos Estados Unidos, e que era contratada de uma gravadora responsável por grandes hinos da soul music. Apesar de ter gravado algumas das mais belas músicas dos anos 1970 em seu primeiro disco, atraindo aplausos de boa parte da crítica na época, a tal banda nunca chegou ao estrelato – culpa de “problemas de distribuição” e, posteriormente, pela falência do selo a qual pertencia. Entretanto, mesmo escondidas pela poeira do tempo, tais canções fizeram a cabeça de muitos jovens músicos durante as duas décadas seguintes, o que as fez ganhar sobrevida e incluir a tal banda no “Grande Livro da História do Rock”.

Essa é a história que conta “Nothing Can Hurt Me”, documentário que joga luz sobre a vida e a obra do Big Star. Dirigido por Drew DeNicola e Olivia Mori, o filme foi lançado em 2012 nos Estados Unidos, correu o mundo em diversos festivais e agora chega ao Netflix Brasil, legendado, servindo como boa introdução aos não-iniciados no conjunto que fez Paul Westerberg, dos Replacements, cometer um verso como “Eu nunca viajo pra longe sem minha pequena grande estrela”.

Logo de saída, “Nothing Can Hurt Me” procura situar o espectador no ambiente onde as coisas acontecem. Afinal, estamos falando de Memphis, a cidade onde Elvis Presley gravou pela Sun Records e onde surgiu a Stax, casa de nomes como Isaac Hayes, Booker T. & MG’s, Otis Redding e Wilson Pickett. Some esse cenário à invasão britânica do começo dos anos 60 e será fácil entender o ponto de partida do Big Star: garotos tentando fazer um som com guitarras na garagem mais próxima.

Um deles, Alex Chilton, fugiu do colégio para ser um ídolo adolescente com sua primeira banda, os Box Tops: “The Letter”, seu primeiro hit, vendeu cerca de quatro milhões de cópias, enquanto outro deles, Chris Bell, aprendia a gravar o som perfeito brincando nos estúdios Ardent. Depois que Chilton cansou dos Box Tops e voltou à sua cidade, Bell o arregimentou para fazer parte de uma banda que tinha com os amigos Andy Hummel e Jody Stephens. Estava formado o Big Star, que em pouco tempo gravou seu primeiro disco, “#1 Record”, dentro dos mesmos estúdios Ardent, àquela altura transformado em selo pop-rock da Stax.

“Nothing Can Hurt Me” falha em alguns aspectos, especialmente ao descrever com pouca profundidade a relação entre os dois gênios da banda, tanto no campo pessoal como profissional. O documentário tampouco desmistifica os tais “problemas de distribuição” que levaram “#1 Record” a ser um fracasso de vendas em 1972, impedindo musicófilos de todas as partes dos EUA de conhecer a banda que a crítica elogiava tanto à época.

Além disso, o filme perde tempo com algumas histórias interessantes, mas que fogem ao que realmente importa para o espectador, como a vida do produtor Jim Dickinson (um dos grandes responsáveis pela porrada melancólica que é o álbum “Third”, gravado em 1974/1975 já sem Bell e o baixista Hummel, e lançado oficialmente apenas em 1992, junto com “I Am The Cosmus”, o disco solo de Chris Bell gravado no mesmo período – o documentário não fala dos lançamentos, o que pode confundir neófitos), ou a porralouquice da cena de Memphis nos anos 70 (há, entretanto, que se dar o devido desconto ao longa-metragem, cuja realização não pode contar com entrevistas de Bell, morto em 1978, e Chilton, falecido em março de 2010).

Mesmo assim, não se pode dizer que o documentário não cumpra lá sua função. Primeiro porque para os fãs dos riffs e das baladas do Big Star é sempre uma grande emoção ouvir hinos como “September Gurls”, “Thirteen” ou “Ballad of El Goodo”. Segundo, e mais importante, porque nos faz questionar uma meia dúzia de coisinhas sobre o negócio da música, e suas transformações entre a época da banda e os dias de hoje. E, por fim, terceiro porque reúne opiniões de um grupo expressivo de admiradores da banda como Lenny Kaye, Mike Mills, Norman Blake, Robyn Hitchcock além de integrantes do Flaming Lips, Jesus and Mary Chain e Posies, entre outros.

Alegada razão para o insucesso do Big Star, a falta de distribuição é um problema que pouco atinge (ou não deveria atingir) os artistas do nosso tempo, uma vez que a música deixou de ser física para ser facilmente reproduzida em qualquer canto do mundo, a qualquer hora, e, recentemente, de maneira instantânea (alô, Spotify!). Por outro lado, o que garantiu a sobrevivência do Big Star até os dias de hoje (e faz a razão desse texto existir) é justamente a qualidade de gravação e composição de suas músicas. Elas têm um som límpido, bem gravado, e é fácil de enxergar, tanto em letras quanto em melodias, um trabalho feito com esmero, capaz de cativar quem ouve em poucos segundos (duvida? Faça o teste com “In The Street”, que tempos atrás era a trilha de abertura do seriado That 70’s Show numa versão do Cheap Trick).

Pode parecer presunçoso, mas um dos grandes problemas de 90% da música produzida nesses dias que correm é justamente esse: além de muita coisa ser mal gravada (algo alegado por muitos artistas brasileiros nos últimos tempos, como aqui e aqui), boa parte dela é produzida além do necessário, artificialmente, buscando o sucesso fácil, ainda mais em um momento (ou já podemos falar em uma era) que o dinheiro ficou mais curto para a indústria fonográfica e muito mais gente procura as luzes da cidade.

É preciso mais que isso, é preciso, roubando um verso clássico de Vinícius de Moraes, “por um pouco de amor numa cadência / para se ver que ninguém no mundo vence / a beleza que tem um ‘samba'”. Ou, como diz o baixista do Big Star Andy Hummel, em uma das sequências finais de “Nothing Can Hurt Me”: “Eu sempre convivi com dois sonhos. O primeiro era de fazer o melhor disco do mundo, e o segundo era de ter sucesso comercial. Acontece que eu tive o primeiro muito mais vezes”.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop.

Leia também:
– Faixa a faixa: conheça a história de “Third / Sisters Lovers”, do Big Star (aqui)
– Big Star ao vivo em Londres, 2009 (aqui) Londres, 2012 (aqui) Barcelona, 2012 (aqui)

5 thoughts on “Um documentário sobre o Big Star

  1. a lenda diz que a CBS rompeu o contrato de distribuição com a Stax pouco antes do lançamento do #1 record (junho de 72) pra rever as porcentagens do lucro e “sem querer” dar uma ajudinha pra motown que competia diretamente pelo mercado da música negra da época. Também tem o lance que as lojas não sabiam o que fazer com o disco de “rock” gravado pela stax, rolava um apartheid nas lojas entre música pop feita por brancos e negros e o big star se perdeu nessa confusão de onde vender os discos. O contrario também acontecia, cês já ouviram falar e chamber brothers?

  2. Eu não tinha ouvido falar do Chamber Brothers não, Gian.

    De resto, o documentário pincela tudo isso, mas não aprofunda essas questões. É tudo muito sutil, às vezes sutil até demais.

  3. é chambers brothers, uns negões (olha o politicamente correto) que faziam rock psicodelico com soul em 1966 e 72. O problema que o selo deles era o folkways que basicamente gravava música de raiz, folk, etc – o que gerava o mesmo problema que o Bigstar teve. Mas eles tiveram um sucesso “time has come” que está numa destas coletâneas de Nuggets.

  4. “Time Has Come Today”, Gian, que os Ramones regravaram (em versão inferior, diga-se). Mas nao sabia dessa história da banda. Bom saber!

  5. O Big Star parece-se mais uma lenda ou mito do que precisamente uma banda.É o tipo de coisa que raramente acontece no mundo.

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