O Punk que sobreviveu à segregação

por Guilherme Olhier

Quando se fala em punk rock, logo se pensa em Londres, Nova York, CBGB’s, Ramones, Sex Pistols, The Clash e por aí vai, certo? Mas o lema “Faça você mesmo” também se espalhou para outros cantos do mundo e foi parar na África. Isso mesmo: a cena punk africana nasceu na mesma época do resto do mundo e teve suas particularidades. Se no Reino Unido o problema dos punks era com a monarquia, na África a luta era contra o Apartheid.

O Apartheid, (estado de separação em africano) foi implantado na África do Sul nas eleições de 1948 pelo Partido Nacional, liderado por Daniel François Malan, um clérigo da Igreja Reformada Holandesa, e foi um dos maiores regimes de segregação racial no mundo por longos 46 anos.

Nessa época, a discriminação racial já era uma realidade e grande parte dos 2,5 milhões de sul-africanos brancos queria segregar o país entre “brancos” e “não brancos”, o que levou o governo a classificar os habitantes em quatro grupos (“brancos”, “negros”, “de cor” e “indianos”) e criar inúmeras privações, como o casamento entre duas pessoas de raças diferentes, que era ilegal. Praias, praças, ônibus e serviços públicos como educação e saúde foram segregados e os que eram oferecidos aos negros tinham qualidade muito inferior àqueles prestados aos brancos.

As divisões se sucederam e inúmeras leis deste tipo eram criadas, tornando a vida, principalmente dos negros, cada vez mais difícil. Até o fim do Apartheid no país em 1994, cerca de 300 leis foram criadas com esse propósito. A resistência veio e a música não poderia ficar de fora. É difícil imaginar que com tanta opressão e violência tomando o país pudesse haver alguém com colhões suficientes para fazer música de protesto, mas muitas bandas punks surgiram na metade da década de 1970 e começo dos anos 80 na África e entraram em uma batalha contra as infinitas restrições impostas, de forma que o “Faça você mesmo” (DIY) talvez fosse o único caminho a ser seguido.

Em 16 de junho de 1976 ocorreu um dos mais sangrentos episódios da rebelião negra no país. No Levante de Soweto (Soweto Uprising), como a data ficou conhecida, cerca de 20 mil jovens estudantes negros protestavam contra a inferioridade das “escolas negras”, com salas superlotadas e professores mal qualificados. Além disso, um ano antes o governo obrigara o ensino na língua africâner, o que revoltou os estudantes que teriam ser fluentes em uma nova língua, além do inglês. Planejada para ser uma marcha pacífica, a confusão surgiu quando a polícia cercou os estudantes, lançou bombas de gás lacrimogêneo e atirou contra crianças. 176 pessoas morreram, entre elas, Hector Pieterson, um garoto de apenas 13 anos, que se tornou um símbolo do Levante de Soweto.

No mesmo período, o punk rock começava a mostrar a sua força no resto do mundo e a África do Sul parecia o local perfeito para abraçar a rebeldia, que vinha junto com a agressividade sonora e toda a estética envolvida no estilo. Após o Levante de Soweto, todos os ingredientes para se formar uma revolução estavam borbulhando e uma nova cena underground começava a nascer. Os jovens viram uma oportunidade para poder expressar toda sua frustração sofrida no país e sair da vida apática e tediosa que tomava conta da sociedade africana. As universidades tiveram um papel importante nesse contexto por unirem públicos multirraciais em pequenos shows. Além disso, as lojas de disco conseguiam importar LPs das bandas do resto do mundo, o que fez muitos jovens começarem a ouvir coisas como o Stooges e Ramones e decidirem montar suas próprias bandas.

Uma das primeiras bandas de destaque no país foi o Wild Youth, de Durban, terceira maior cidade do país em número de habitantes após Joanesburgo e a Cidade do Cabo. Eles lançaram seu primeiro e único compacto, “Wot About Me”, em 1979 com uma tiragem de apenas 300 cópias, que se tornou instantaneamente um item de colecionador. No mesmo ano, o Wild Youth se apresentou no Majestic, um cinema que ficava em uma área de asiáticos. A banda foi recebida com garrafas e tomates atirados no palco. O clima era tenso, mas o Wild Youth conseguiu atrair a atenção de alguns presentes. Meses depois, a banda voltou a tocar no mesmo lugar e os jovens já adoravam o novo estilo. Um jornal local da época abriu a matéria sobre o show dizendo: “Por conta da lei, negros e brancos não podem dançar juntos, mas não há nada que diga que não podem curtir música”.

Porém, a banda com mais representatividade na cena punk africana (e fora da África) foi, sem dúvida, o National Wake. Liderada por Ivan Kaye, juntamente com os irmãos Gary e Punka Khoza na “cozinha” e o guitarrista Steve Moni, a banda foi formada em Joanesburgo por volta de 1977, e, apesar de ter durado poucos anos, deixou sua marca para a história da música africana. O National Wake foi a primeira banda multirracial da África, o que já é notável tendo em vista a situação imposta pelo governo racista da época. Isso já bastava para “insultar” as autoridades e a banda sofreu inúmeras perseguições da polícia, que fazia batidas frequentes na casa onde os integrantes moravam.

Mesmo assim, o quarteto desafiou as leis raciais tocando em diversos pequenos clubes e universidades até conseguir prensar 700 cópias do que seria seu único LP “(Self Titled)”, de 1981. Uma das músicas que acabou se tornando mais conhecida foi “International News”, que criticava a censura na imprensa sul-africana e o controle da informação pelo governo, mais especificamente o envio de tropas para Angola.

Um fato curioso é que o álbum também foi lançado no Reino Unido e chegou às mãos de John Peel, um dos Dj’s mais influentes da cena inglesa e que dava espaço para bandas underground no seu programa de rádio Peel Sessions, na BBC Radio 1. Após “International News” tocar no programa, o fundador da Atlantic Records, Ahmet Ertegun, demonstrou grande interesse na banda, mas as negociações acabaram não resultando em nada.

Depois do lançamento do álbum, a pressão da polícia aumentou e a situação foi ficando cada vez mais complicada para o National Wake. Com o controle do governo sobre rádios e leis de distribuição restritas não havia como se sustentar, fazendo com que a casa em que os integrantes viviam fosse tomada, certamente um dos pontos decisivos para o fim do grupo. Mesmo assim, o National Wake abriu muitas portas e serviu de grande influência para as gerações futuras do punk no país.

Um parêntese. Na mesma época, outros artistas também contribuíram com o movimento pela independência africana e também não tiveram vida fácil. Seria injusto falar de música na África sem citar Fela Kuti: entre os inúmeros gêneros musicais africanos, talvez o mais conhecido seja o afrobeat, criado pelo nigeriano. Fela Amikulapo Ransome Kuti era o porta-voz da classe operária; o “Working Class Hero” africano.

Assim como muitos artistas da época, Fela tinha uma veia contestatória extremamente pulsante e acabou sofrendo as consequências. O episódio mais cruel dessa perseguição aconteceu em 1977, quando Fela e sua banda Afrika 70 lançaram o disco “Zombie”, que atacava o exército nigeriano, referindo-se aos soldados como zumbis. Com o enorme sucesso do disco, o governo não deixou barato. Por conta do disco, o músico foi brutalmente espancado e sua mãe idosa foi arremessada de uma janela, causando ferimentos fatais. A República Kalakuta, uma comuna formada pelo músico na cidade de Lagos, foi incendiada, o estúdio e os instrumentos da banda foram todos destruídos. Como resposta, Fela escreveu as músicas “Coffin for Head of State” e “Unknown Soldier”, referindo-se ao inquérito policial, que afirmava que a destruição havia sido feita por um soldado desconhecido.

Voltando ao punk rock, outro nome que se destacou no início dos anos 80 foi o Power Age. A banda só engrenou após a entrada do ex-baterista do Wild Youth, Rubin Rose, em 1982. O EP mais conhecido é “Protest to Survive”, de 1985, e praticamente todas as letras protestavam contra o Apartheid, como o próprio título sugere. O compacto ficou conhecido como “Stop Apartheid EP”, por conter a música de mesmo nome. O refrão pedia “Pare o Apartheid” e um dos versos é: “Saiam de suas conchas, parem com o ódio racial, vamos esquecer o passado e nos unir para o futuro”.

O compacto foi lançado apenas na França e a banda começou a se preocupar com a possibilidade de serem presos a qualquer momento. A paranoia e o medo constante vivido especialmente pelo baterista Rubin Rose culminou com a separação da banda pouco tempo depois.

Os anos mais violentos do Apartheid aconteceram entre 1985 e 1988, com campanhas para eliminar opositores, resultando na morte de centenas de negros, além do endurecimento da censura nos meios de comunicação. O cenário era altamente desfavorável, mas de alguma maneira as bandas conseguiram dar o seu recado.

Em 11 de fevereiro de 1990, um dos maiores líderes sul-africanos, Nelson Mandela, era solto da prisão após 27 anos. Quatro anos depois, nas eleições de abril de 1994, se tornaria o primeiro presidente negro do país, o que foi também o primeiro passo no longo processo de transição para a democracia multirracial na África do Sul. As ruas foram tomadas por multidões e o sentimento era de reconstrução.

A música continuava representando os desejos políticos e o espírito do punk ainda não estava morto. Assim como aconteceu nos Estados Unidos durante a metade dos anos 90, o ska-punk começava a crescer. Nascido na Jamaica, o conversava diretamente com os estilos de música tocados na África. Bandas como Hog Hoggidy Hog e Fuzigish foram algumas que formaram uma nova cena do ska-punk na África do Sul e que não ficam devendo para nenhuma das bandas norte-americanas do período.

Se nos anos 70 o National Wake enfrentou problemas por ser uma banda com integrantes negros e brancos, com o fim do Apartheid isso se tornou comum em quase todas as bandas sul-africanas. A África do Sul formava uma nova identidade multirracial e começava a viver em uma “nação arco-íris”.

O interessante é perceber que, apesar de grande parte da nova geração não ter vivido durante os anos de Apartheid, o discurso ainda é muito politizado e muitos problemas antigos permanecem. Como em qualquer lugar do mundo, muitas bandas ainda produzem música de forma independente por falta de apoio ou dinheiro. Apesar disso, as raízes da música e cultura africana no geral não se perderam no caminho.

“Na África, a música não pode ser entretenimento, tem que ser revolução”. É com essa célebre frase do próprio Fela Kuti que o documentário “Punk in Africa” (2012) começa. O filme, dirigido por Keith Jones, traz toda a história do movimento punk na África do Sul, Zimbábue e Moçambique, do fim dos anos 70 até a atualidade. Mais do que isso, o documentário traça um panorama da situação política durante e depois do Apartheid e a relação dessas bandas em cada década.

Com imagens raras de shows da época e diversas entrevistas com os ex-integrantes das bandas, além de bandas atuais, “Punk in Africa” é o registro mais importante sobre a cena punk africana que se tem notícia. Para quem é fã de punk rock é um prato cheio para expandir o leque de bandas. A procura pelo som não é tão fácil, mas certamente vale todo o esforço, pois a revolução precisa continuar!

 

– Guilherme Olhier (@guilhermeolhier) é, segundo descrição no Twitter, um jornalista saudosista

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