Charles R. Cross e o Mito Kurt Cobain

por Juliana Torres

Kurt Cobain foi a voz de uma geração e, talvez, uma das últimas pessoas a causar algum impacto importante em várias áreas da cultura. 20 anos depois, não apenas sua morte, mas sua vida ainda importa para grande parte dos jovens que tenta entrar para o mundo da música. No dia 5 de abril de 1994, Cobain tirou sua própria vida em sua casa, em Seattle. Seu corpo só foi encontrado três dias depois em um cenário que ainda tinha sua carteira, uma caixinha onde guardava seringas e apetrechos para preparar heroína – droga que o acompanhou por quase toda a vida adulta –, uma carta de despedida e “Automatic for the People”, do R.E.M., tocando na vitrola. A última banda a fazer companhia a Kurt agora estará na cerimônia que introduzirá o Nirvana ao Rock and Roll Hall of Fame.

Duas décadas depois de viver o terror daquela manhã de 8 de abril, quando a notícia da morte do vocalista do Nirvana estava sendo espalhada por emissoras de rádio e TV pela cidade, Charles R. Cross, jornalista e biógrafo, lança outro livro, dessa vez para mostrar a influência e o impacto de Kurt em toda a cultura pop – desde a presença mais clara em bandas que vieram depois de sua morte até sua presença nas tendências de moda, artes e em gêneros musicais raramente ligadas ao grunge, como o hip-hop. Autor de livros como “Mais Pesado que o Céu”, biografia definitiva sobre a vida de Kurt, “Cobain Unseen”, com fotos, manuscritos e documentos até então inéditos do músico, e outras publicações sobre Bruce Springsteen, Jimi Hendrix e Led Zeppelin, Charles R. Cross estudou Kurt Cobain como poucos para escrever “Kurt Cobain, a Construção do Mito”, que acaba de ganhar edição nacional via Nova Fronteira.

Enquanto escrevia “Mais Pesado que o Céu”, Cross encontrou diversas caixas com pinturas, fotografias e objetos criados por Kurt, que além de músico era artista plástico – e também se lançou ao mundo do cinema. Ou quase isso: em 1984, ele gravou junto com Krist Novoselic um filme caseiro chamado “Kurt’s Bloody Suicide”, com aproximadamente 10 minutos de imagens randômicas de pessoas sendo esfaqueadas e sangue rolando.

A marca que Kurt Cobain deixou depois de sua morte pode ser vista em todos os lugares. Nos estilos musicais, nas camisas de flanela e calças rasgadas, no apreço pelo grotesco, na busca dos direitos das mulheres e dos homossexuais e na forma como vemos a fama, o suicídio, as gravadoras e o abuso de drogas. Embora o mundo tenha mudado muito desde que o Nirvana assinou com a Sub Pop e entrou no Reciprocal Records, em Seattle, para gravar “Bleach”, seu disco de estreia, o impacto de Kurt é imutável e “Nevermind” continua sendo um ponto de mudança para a música pop. 25 anos depois de lançar seu primeiro single, o Nirvana ainda é o rito de passagem da adolescência de jovens pelo mundo e sua música ainda conversa com problemas e questões atuais de jovens de várias idades.

Kurt Cobain mudou permanentemente o que conhecíamos sobre o pop e ajudou a colocar Seattle no centro de uma efervescência cultural que moldou os anos 90. Em sua breve vida, sua singularidade o transformou em um ícone que ainda vive nas prateleiras de discos e desperta interesse. Mas, por que, 20 anos depois de sua morte, Kurt Cobain ainda parece tão contemporâneo em uma época onde muitas bandas sofreram por composições e produções datadas? Charles R. Cross, em conversa exclusiva com o Scream & Yell, conta como Cobain segue fazendo história 20 anos depois de decidir colocar um fim à sua própria.

Como surgiu a ideia para o “Kurt Cobain , a Construção do Mito”? Você já tinha algo na cabeça desde o “Mais Pesado que o Céu”?
A maioria dos livros de não-ficção são o resultado de conversas entre autores, agentes, editores e esse não foi diferente. Meu editor na Harper Collins me perguntou se ainda havia algo a dizer sobre Kurt Cobain e no início eu disse “não”, porque a minha primeira biografia estava bem completa. Mas conforme começamos a conversar sobre o impacto que ele teve em vários aspectos da nossa cultura, pareceu que havia mais a dizer. E contar essa história em primeira pessoa me permitiu levantar pontos que não pude fazer na primeira biografia. Em “Mais Pesado que o Céu” eu pensei que tinha dito tudo, mas por fim eu tinha mais a dizer.

Não foram muitos músicos modernos que inspiraram tanta curiosidade e interesse quando Kurt Cobain. Há certa mística em torno de sua vida e morte que mantém as pessoas sempre interessadas em novas informações sobre o Nirvana. O que nós podemos esperar desse novo livro?
Realmente poucas figuras na história da música moderna tiveram tanto impacto quanto Kurt, e eu consigo ouvir influencias do Nirvana em todas as rádios hoje em dia. Mas o que achei particularmente interessante foi tentar medir os aspectos de seu impacto em outros cantos particulares da cultura – como hip-hop e fashion – que não eram tão óbvios.

Kurt Cobain pode ter sido o último grande superstar. Ele mudou tudo que veio depois dele. Você acredita que o fato dele ter nascido e vivido em Aberdeen, e não LA ou Seattle, ajudou a torná-lo o músico que foi?
Nascer e crescer em Aberdeen o fez não ter nenhuma atração por tendências pops. De alguma forma, ele existia em um vácuo e então era lívre para criar seu próprio ângulo artístico. Acho que por isso ele é tão único, ele não estava – ao contrário de outros – tentando ser outra pessoa.

Kurt viveu em Seattle por um ano e meio. Ele passou grande parte de sua vida em Aberdeen e a cidade foi uma influência em sua personalidade. Aberdeen demorou a reconhecer suas qualidades?
Eu não tenho certeza se eles conseguiam reconhecer isso. Aberdeen é uma cidade que, ao mesmo tempo em que algumas pessoas são orgulhosas por Kurt, outras não têm muita certeza de qual foi realmente o seu legado. E isso é uma vergonha, na verdade.

Visitando a exposição “Taking Punk to the Masses”, em Seattle, é possível entender que o Nirvana realmente veio do nada até chegar a “Nevermind”, um álbum clássico que mudou tudo. Mas há outras influências que Kurt misturou ao seu próprio estilo, como metal, punk, hardcore e o estilo dos trabalhadores de Aberdeen. Você acha que essa despretensão, de alguma forma, o ajudou?
Com certeza que sim. Kurt tinha mais ou menos uns 100 discos. Se ele tivesse 5 mil ou um acesso ao ITunes ele com certeza teria mais consciência das coisas (e talvez tudo fosse diferente). Mas ele estava livre para encontrar seu próprio caminho no meio daquilo tudo que gostava.

Kurt tinha “sangue suicída” nos dois lados de sua família. Sua dor de estômago o acompanhou durante toda a sua vida, o que contribuiu para que usasse heroína como se fosse um remédio, uma salvação. Você acredita que naquela época os fãs do Nirvana sabiam que ele era uma bomba-relógio?
As razões para alguém usar heroína são muito complicadas. Não existem respostas fáceis e claras para isso. Vício em alguma droga não deve ser o motivo para gostar ou não de algum estilo de música ou algum rock star. As raízes do vício são variadas e podem vir da genética, da família, algum trauma de infância ou até facilidade no acesso. Eu estava lendo um artigo sobre Aberdeen e fiquei muito triste em saber que muitas pessoas que cresceram ao redor do Kurt se tornaram viciados em drogas e alguns de seus amigos de infância cometeram suicídio ou sofreram overdose. Eles não era famosos, mas de alguma forma viviam a mesma luta. Abuso de heroína sempre foi um problema nos Estados Unidos e parte da culpa pertence às empresas de medicamentos, que empurravam receitas de analgésicos baseados em ópio até que as pessoas viciassem e se voltassem para opções mais baratas, que eram as drogas na rua. Nós precisamos olhar para o problema do vício em drogas como uma questão de saúde pública, e não uma falha moral.

Seattle mudou muito desde 1994, mas o impacto de Kurt e de todo o movimento grunge ainda é respeitado e as pessoas parecem saber tudo sobre o assunto. Muitos dos músicos da cidade hoje eram apenas crianças quando Kurt morreu: você acredita que ele influenciou essa geração mais nova?
Acredito mesmo que Kurt tenha sido uma influência, mas ao mesmo tempo acho que a maioria dos músicos novos da cidade estão tentando se separar e separar sua música do grunge. Macklemore, por exemplo, não tem quase nada a ver com o Kurt, mas ao mesmo tempo ele também tem uma voz e um talento único.

Seattle foi o centro daquela explosão cultural nos anos 90. Por que você acha que isso aconteceu na cidade?
O que fez Seattle ser tão única e fez com que tudo aquilo acontecesse aqui foi o fato de sermos extremamente isolados, afastados de tudo. Assim como Kurt em Aberdeen, os músicos de Seattle tiveram a chance de ser autênticos. E foram, e ainda são.

Soundgarden e Alice in Chains vieram antes do Nirvana. E ainda hoje temos Pearl Jam e Mudhoney gravando discos e fazendo shows. Mas mesmo assim notamos um impacto diferente quando o assunto é Kurt e Nirvana. Há algum motivo especial?
Acho que Kurt Cobain estava um passo a frente quando o assunto era composição. Absolutamente é esse o motivo que faz o Nirvana ser tão importante. Kurt realmente escrevia ótimas canções.

Você achou muitas coisas e pertences do Kurt enquanto estava escrevendo sua biografia, certo? Por que você acha que ele era tão fascinado pelo grotesco?
Eu não posso te falar isso agora, mas apenas posso falar que ele realmente era.

O Mudhoney tem uma música de 1992 que diz “everybody loves us/ everybody loves our town / that’s why I’m thinking lately / the time for leaving is now” (“todo mundo nos ama / todo mundo ama nossa cidade / é por isso que estou pensando, ultimamente / que a hora de partir é agora”). Era nessa época que tudo acontecia. Você pode falar um pouco sobre essa época?
Era uma loucura e realmente parecia que aquilo nunca iria acabar. Ao mesmo tempo, é claro, nós sabíamos que chegaria ao fim. O que acho na verdade é que naquela época achávamos que todo mundo estava dando muita atenção ao grunge quando na verdade havia muitos outros músicos fazendo todos os tipos de música.

Um tempo depois do suicídio de Kurt, as taxas de suicídio caíram na cidade. Você acha que sua morte teve também um impacto em como as pessoas estavam vivendo suas vidas?
A morte de Kurt Cobain foi uma coisa terrível em 1994. Mas, ao mesmo tempo, muitas pessoas acordaram e perceberam seus próprios vícios e dificuldades, a realidade daquilo tudo e qual poderia ser o fim. Algumas pessoas realmente melhoraram. Vários amigos do Kurt estão vivos e sóbrios hoje por causa de sua morte.

Qual você acredita ter sido a maior contribuição do Kurt para a música hoje?
Acho que ele tornou possível e ok que as músicas fossem sobre emoções fortes e principalmente sobre dor. A própria natureza da música pop mudou completamente depois de “Nevermind”. Com certeza esse foi o maior impacto do Kurt.

– Juliana Torres (@jukiddo) é jornalista e assina o http://jukiddo.tumblr.com/

Leia também:
– Charles Cross em 2002: “Eu segui a carreira do Nirvana desde o início” (aqui)
– Bruce Pavitt: “Houve um profundo sentimento de camaradagem nos anos 80? (aqui)
– Indústria ganha sobrevida investindo em reedições de deixar fã sem dormir (aqui)
– “Nevermind” é, ainda hoje, um disco atual e sensacional, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevista com Steve Albini, por Elson Barbosa (aqui)
– O box “With The Lights Out” e “Nevermind Classic Albums”, por por Marcelo Costa (aqui)
– Duas são as maneiras de se ver a coletânea “Nirvana”, por Marcelo Costa (aqui)
– “Bleach – Deluxe Edition”, Nirvana, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevista: Marcelo Orozco fala sobre o livro “Fragmentos de Uma Autobiografia” (aqui)
– Um grupo de votantes aponta “Nevermind” como o Melhor Álbum dos anos 90 (aqui)

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