Disco de estreia dos Smiths, lançado em 1984, é o mais urgente da banda

por Bruno Leonel

O mundo costumava ser um lugar diferente no começo dos anos 80. Pra começo de conversa, não havia milhares de redes compartilhando informação como hoje. Música não era algo tão acessível e disponível por aí. Para conhecer novas bandas – além de passar fitinhas k-7 para os amigos –, as pessoas dependiam de publicações como tabloides e revistas especializadas, que, além de não chegarem com facilidade no Brasil (coloque uns dois meses de atraso, no mínimo), muitas vezes só jogavam seus holofotes sob um grupo restrito de nomes que, não raro, tinham espaço somente por estarem associados às grandes gravadoras e toda uma “máfia” que gerava demanda em torno deles mesmos (naquela época era assim, hoje isso não acontece mais sabe? – ironia, ironia). Ser banda independente então, era tarefa para poucos.

Na Inglaterra não era diferente. Em meio a um cenário tão plural quanto concorrido, que ao mesmo tempo acomodava destroços do punk, excessos da New Wave e o glamour dos New Romantics, algo novo precisava acontecer. E aconteceu. O tédio e o marasmo pós-anos 70, pouco a pouco, começaram a empurrar as coisas para outro lado. Pequenos selos (entre eles, Factory e Rough Trade) pareciam timidamente voltar sua atenção para novos artistas e um novo circuito de clubes e bares abria as portas para bandas emergentes e pouco conhecidas. Contrariando várias tendências da época, um jovem quarteto dos subúrbios de Manchester começava a chamar atenção. Pouca produção visual, princípios de abstinência, aversão aos grandes clichês do rock e uma sensibilidade melódica de rara beleza eram alguns de seus trunfos. Na contramão do hedonismo da disco music e do peso de chumbo da nova onda do heavy metal britânico, surgiram os Smiths.

Quando não se tem muita expectativa de algo, talvez seja mais fácil surpreender, e foi o que ocorreu. Sem grandes alardes, a banda acabou cravando na história um respeitável disco de estreia – ainda que seu devido reconhecimento demorasse alguns anos para acontecer. Antecipado pelos singles “Hand In Glove” (05/1983), “This Charming Man” (11/1983) e “What Difference Does It Make?” (01/1984), o álbum “The Smiths” foi lançado em 20 de fevereiro de 1984 e é o disco mais urgente da banda. Nele podemos conferir um momento especial de um grupo ainda em franca ascensão (embora a aparente insegurança do quarteto, em alguns momentos, deixe lacunas no registro). Nem de longe é o melhor trabalho dos Smiths, mas é notório pela espontaneidade e por marcar o começo de uma nova fase na produção musical dos anos 80, com menos excentricidades e mais preocupações quanto ao conteúdo.

Musicalmente, “The Smiths” une referências do folk e do rockabilly dos anos 50 à uma roupagem mais lírica e introspectiva, próxima do pós-punk, com baixo e bateria destacados. As chaves para se entender o som estão nos arpejos de Johnny Marr, que deveria sonhar ter integrado o Byrds ou acompanhado Eddie Cochran nos anos 50. Com apenas 20 anos, Marr já chamava atenção como um dos músicos mais inventivos de sua geração usando pouca distorção, quase nenhum solo e riffs extremamente melódicos e envolventes, um fundo musical ideal para a voz de Steven Patrick Morrissey, um jovem fortemente inspirado pelo escritor Oscar Wilde, e que escrevia letras com visões bastante pessimistas sobre o amor e as relações humanas. Surgia mais uma voz que deixava de lado os vencedores, campeões e heróis para cantar sobre perdedores, desiludidos e abandonados, personagens comuns do dia-a-dia, mas desta vez de uma forma bastante peculiar.

https://www.youtube.com/watch?v=dpi6G9oUcTQ

A gravação do disco foi um processo tumultuoso e bastante difícil. Foram registradas 14 faixas com o produtor Troy Tate (da banda Teardrop Explodes), que, de início, deixaram a banda satisfeita. O chefão do selo Rough Trade, Geoff Travis, não gostou do resultado e mostrou algumas fitas das gravações ao produtor John Porter (que a banda conheceu durante uma sessão para a BBC). Travis tinha esperança que o material pudesse ser remasterizado por Porter, mas este achou o registro sujo e fora de tempo. No entanto, se ofereceu para gravar novamente o disco com a banda.

Mesmo tendo elogiado o trabalho de Tate apenas algumas semanas antes, a banda acabou reconsiderando e abandonou o disco inteiro, abortando seu lançamento (essas versões se tornaram lendárias e circularam – e ainda hoje circulam – em versões piratas; algumas delas até figuraram em lançamentos oficiais como “Pretty Girls Make Graves”, “Jeane” e “Reel Around the Fountain” – a última pode ser ouvida acima e comparada com a versão final lançada abaixo). Embora tenham alegado que o motivo era unicamente profissional, o antigo produtor não aceitou bem a ideia e rompeu totalmente relações com o quarteto. Os Smiths resolveram gravar o álbum novamente, desta vez sobre o comando de John Porter, o que resultaria em uma sonoridade mais cristalina e suave em confronto às gravações abandonadas de Troy, com arranjos mais pastosos e repletos de ruídos. Interessante pensar em como teria sido a história do grupo se o álbum descartado tivesse sido o oficialmente lançado.

Martelo batido com Porter, o trabalho foi novamente gravado em quatro estúdios diferentes situados em Londres e Manchester durante o inverno de 1983. As sessões, no enanto, não foram nada tranquilas. Morrissey e Marr discutiam com o produtor sobre a sonoridade o tempo todo. Apesar da relutância da banda em aceitar músicos contratados nas gravações, o produtor conseguiu convence-los a aceitar contribuições do tecladista Paul Carrack e da cantora Annalisa Jablonska cantando em faixas como “Suffer Little Children” – uma das primeiras canções compostas pela banda. A letra foi inspirada na saga dos “Moors Murders”, um casal de psicopatas que sequestrou e matou várias crianças na região de Manchester durante os anos 60. As gravações foram completadas em cerca de três meses e, mesmo com o novo produtor, Morrissey continuou descontente com o produto final, não tendo achado-o bom o suficiente. No entanto, devido à despesa final de mais de 6 mil libras com a produção, não houve volta, e a gravadora afirmou que o mesmo seria lançado (Sr. Moz, desde sempre difícil de agradar). Em fevereiro de 1984, o disco chegava às lojas.

A melancólica “Reel Around the Fountain” abre o disco com sonoridade assumidamente inspirada em Joy Division. O primeiro verso do disco – “It’s time to tale a told…” – manifesta o quanto a banda talvez soubesse que começava ali uma grande história, ainda que de forma sutil. Não muito longa, de fato, mas que seria lembrada por muitos anos. Uma inusitada batida acelerada (quase um hardcore tocado pelo baterista Mike Joyce) misturada à vocais em falsete marca a canção “Miserable Lie”. Faixa excêntrica, difícil até, mas que mostra grande personalidade de uma banda disposta a experimentar. A letra, com referências a Whalley Range, bairro de Manchester notório pelo número de hotéis e alojamentos, frequentemente ocupados por pessoas solitárias e recém-separados, é a mais ácida do disco, versando sobre um rompimento do eu-lírico com alguém: “Corrompeu minha mente inocente” e “Arruinou minha vida – duas vezes”.

Clima fúnebre e uma estrutura elaborada aparecem na bela “Pretty Girl Makes Graves”, cuja letra subverte papéis colocando o homem como alguém passivo perante os impulsos vorazes de uma mulher (a segunda voz que se ouve entre os versos é da cantora contratada Annalisa). O envolvente “outro” da música é um dos grandes momentos do disco. No trecho final, Morrissey ainda encaixa um verso da letra de “Hand in Glove”, o primeiro e injustiçado single do grupo – vendeu bem, mas a banda esperava que ele realmente tivesse sido um enorme hit, o que nunca ocorreu (chegou “apenas” ao número 6 da parada britânica).

“The Hand That Rocks That Cradle” é arrastada e com guitarra repetitiva. Na letra, uma citação de “Sonny Boy”, famosa na voz do cantor norte-americano Al Jolson. A politizada “Still Ill”, uma das mais urgentes canções do disco, exibe um bom desempenho do baixista Andy Rourke e uma frase marcante de Morrissey: “O corpo que domina a mente ou a mente que domina o corpo? Eu não sei”. A música sempre funcionou bem ao vivo (há uma versão bastante pesada presente no disco “Rank” assim como outra, mais suave e conduzida por gaita, no álbum “Hatful of Hollow”), não por acaso é uma das poucas faixas do início da banda que continuou sendo tocada durante toda a carreira.

“What Difference Does it Make?”, único single oficial do álbum, exibe riff truncado em uma das introduções mais conhecidas dos Smiths. Johnny Marr certa vez disse que a melodia é uma adaptação pessoal inspirada em guitarristas do punk do fim dos anos 70. A dolorida “I Don’t Owe You Anything” destaca guitarra dedilhada e baixo melódico em conjunto com um órgão (tocado por Paul Carrack) no arranjo. A letra, tristíssima, retrata um momento de decepção com uma suposta pessoa amada. Os vocais soam quase como um lamento embora transmitam certo conforto, quase como um grande abraço que saí dos alto-falantes. O baterista Mike Joyce costumava dizer que era uma das faixas mais fortes que Morrissey já havia escrito. A versão norte-americana ainda inclui a clássica “This Charming Man” – segundo single da banda, lançado em outubro de 1983 e que não apareceu no disco original.

“The Smiths” bateu no número 2 da parada britânica e recebeu muitos elogios pela personalidade e sonoridade que trazia. Quase tudo nele parece contrário aos maneirismos da época, desde o pessimismo das letras e a falta de refrões de arena até a foto da capa, o ícone gay Joe Dalessandro (tirado do filme “Flesh”, de 1968, de Paul Morrissey). Embora ainda se tratasse de uma banda inexperiente, o álbum é hoje lembrado como um marco para a produção musical da década e que, junto a trabalhos de grupos como o R.E.M. e o Violent Femmes, trilhou verdadeiras clareiras para o caminho de centenas de bandas independentes que apareceriam nos anos seguintes. Dá até pra pensar que o disco (junto a outros importantes) ajudou a preparar terreno para o estouro do rock alternativo dos anos 90.

Mesmo não sendo o disco mais bem produzido da banda (“Meat is Murder” e, principalmente, ”Strangeways Here it Comes” são bem mais merecedores do título), “The Smiths” brilha por, talvez, sua sinceridade, em um contexto onde a produção das grandes gravadoras soava meio artificial e plástica. O prestígio do disco, no entanto, melhorou com os anos, e frequentemente ele aparece citado em listas de melhores discos dos anos 80 e até em posições modestas em listas do tipo “Melhores Álbuns de Todos os Tempos” (como em uma votação do Guardian, em 1997, quando o disco ficou na posição de número 73).

O mundo costumava ser um lugar diferente no começo dos anos 80, mas isso não impediu que aquele disco lançado há 35 anos continuasse sendo descoberto por várias gerações, e continuasse sendo ouvido mesmo depois do fim da banda. É quase como se as canções tivessem vida própria. Um sintoma disso é o número de memórias e lembranças que essas músicas ainda são capazes de ativar em pessoas mais velhas, mesmo depois de tanto tempo. Após 2002 (ano de comemoração de 20 anos da formação da banda), uma série de filmes e livros relembrando a historia do quarteto parece ter reacendido o interesse pelo grupo. Destaque para o excelente “Songs That Saved Your Life”, do escritor Simon Goddard (autor também da “Mozipedia”), guia caprichado que tem comentários extensos de praticamente todas as faixas de estúdio da banda – o título do livro é tirado da letra de “Rubber Ring”, canção bastante emotiva, tida como um desabafo de Morrissey, sobre uma época derradeira do grupo em que começaram a sentir que sua história não demoraria muito para se encerrar.

Em 2005, um simpósio na cidade de Manchester reuniu diversos intelectuais para discutir o impacto que a música do grupo representava para a cultura popular. Na época chegaram a dizer que o conjunto da obra dos Smiths era quase tão importante quanto a obra de grandes escritores e intelectuais. “A música dos Smiths tinha uma profundidade emocional que chegava às pessoas de uma forma que até então nenhuma banda tinha conseguido”, afirmou Justin O`Connor, especialista na música e cultura de Manchester na época do simpósio.

Após o debute, o quarteto seguiu um processo de evolução notável e trouxe ao público clássicos como “The Queen is Dead”, um registro muito superior ao álbum de estreia, destacando sonoridades mais ecléticas e produção de primeira (cortesia do produtor Stephen Street). Porém, a inocência e o espírito de urgência que “The Smiths” exala são elementos gravados em um momento único e nunca atingidos com a mesma intensidade nos álbuns seguintes. O fim repentino da banda em 1987 ocorreu em uma época na qual o futuro da banda estava prejudicado por interesses pessoais, ciúmes, brigas e mesquinharia dos integrantes. O conjunto da obra continuará tocando pelos lugares e quartos de adolescentes ainda por muitos e muitos anos, e enquanto as pessoas ainda derem valor às coisas que realmente importam, eles serão lembrados não só em dias especiais como hoje, mas em tardes cinzentas, noites vazias e dias solitários. “You’ve Got Everything Now”.

Bruno Leonel é jornalista e já entrevistou Márcia Castro e Siba para o Scream & Yell

Leia também:
– “Rank”, Smiths: um milésimo de segundo antes do declínio, por JAL (aqui)
– Discografia comentada: todos os discos de Morrissey, por Mac (aqui)
– “The Sound of Smiths”: a mais extensa coletânea dos Smiths, por Mac (aqui)
– Morrissey ao vivo em Benicassim, na Espanha, por Marcelo Costa (aqui)
– “Mozipedia”: enciclopédia sobre Morrissey e os Smiths, por Marco Antonio Bart (aqui)
– “Ringleader Of The Tormentors”, de Morrissey: um Deus da música pop adulta (aqui)
– Morrissey e o Brasil da Copa de 82, por Marcelo Costa (aqui)
– “You Are The Quarry – Special Edition”, Morrissey, por Marcelo Costa (aqui)
– Matérias Antológicas: “Morrissey, o maior inglês vivo”, The Guardian (aqui)

9 thoughts on “Disco de estreia dos Smiths, lançado em 1984, é o mais urgente da banda

  1. Que texto! Uma viagem à produção do disco e história da banda – que poderia ser bem sintetizada por uma brilhante frase do texto: “O primeiro verso do disco – “It’s time to tale a told…” – manifesta o quanto a banda talvez soubesse que começava ali uma grande história, ainda que de forma sutil.”
    Isso é Smiths.

  2. Texto inspirado, traduz exatamente a essência desse disco que mudou a vida de muitos, inclusive a minha. Tive que comprar meu vinil em Curitiba, pois ele não chegou à minha cidade, pequena e litorânea. Para mim, inesquecível foi o momento em que sentei em frente ao meu toca discos, e fiquei ali, quietinha, ouvindo cada música, e pensando, no meu mundo adolescente, como aquilo tudo tinha a ver comigo. Foi uma paixão devastadora, e hoje, é um amor calmo e sereno, que vai durar para sempre.

  3. Maravilhoso texto sobre a estreia da banda. Rico e envolvente, destacando detalhes sobre a gravação do disco e inspiração das canções. Grande disco, que não é o meu preferido da banda, mas que tem três canções que estão no meu Top Ten canções Smiths: What Difference Does it Make, Still Ill e Hand in Glove, injustamente um não hit, como falado no texto. Certeza de que será ouvido por mais gerações, não só para aquelas que têm a mesma idade do disco, como a minha.

  4. Ótimo texto! Embora eu prefira “Strangeways, Here We Come” e “The Queen is Dead” (e, dentre as compilações de singles e b-sides, “Louder than Bombs”), é inegável que o disco de estréia dos Smiths já traz todos os elementos que caracterizam a banda: letras fortes, os vocais peculiares de Morrissey, as belas melodias da guitarra de Marr e a competentíssima “cozinha” de baixo e bateria (que, neste disco, alcança seu ápice em “Still Ill”).
    The Smiths é uma banda cuja influência provou-se inesgotável; inspiraram bandas como Wedding Present, Blur, Belle & Sebastian e Radiohead e Legião Urbana, e continuam sendo uma referência lírica e melódica.

  5. Quantos comentários bonitos! Obrigado mesmo, sem dúvida, um disco que já fez (e fará) parte das histórias da vida de muita gente ainda 😉

  6. Johnny Marr tinha um timbre diferente de tudo na guitarra, fazia algo completamente original, pro seu tempo. The Smiths ressducitou as esquecidas e aclamadas “band-guitars”, deixadas quase de lado nos anos 1980!!

  7. Sei que sou minoria, mas reputo este álbum o melhor deles. O ataque sonoro preserva a melancolia que sempre perpassou em suas canções, mas também uma roupagem melódica rica e desafiadora.

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