Literatura: “Dinheiro Queimado”, de Ricardo Piglia

A versão argentina de uma tragédia grega
por Herbert Moura

Ocorrido em setembro de 1965 e chocando a sociedade argentina da época dada a violência do ato, eis o roubo a um banco de Buenos Aires. Ricardo Piglia começou a escrever o livro logo após a ocorrência do fato, ainda na década de sessenta, quando, por um desses acasos incompreensíveis pela razão comum, encontrou, num trem, a amante de um dos homens que realizaram o assalto, e ela lhe deu uma versão dos fatos. Tomou notas e começou logo em seguida a escrever a primeira versão do livro. Teve, no entanto, pouco mais de longos trinta anos para amadurecer suas ideias quanto à narrativa ficcional, uma vez que o esboço inicial do livro ficou engavetado durante todo este tempo, estando a versão final, reescrita, publicada apenas em 1997. Tempo durante o qual o escritor teve acesso a documentos confidenciais, depoimentos de testemunhas e, sobretudo, acompanhado, na condição de espectador atento, toda a repercussão negativa causada pelo roubo na sociedade argentina. Não é em vão o fato de o romance ser narrado sob o ponto de vista de um jornalista jovem e iniciante, Emilio Renzi, que foi espectador direto dos fatos e é personagem recorrente nos livros de Piglia.

“Dinheiro Queimado”, lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 1998, é um romance sobre as consequências funestas da busca incessante e, sobretudo, inebriante pelo dinheiro. Ainda que o mundo da década na qual o livro se passa, os anos sessenta, oferecesse o comunismo como uma opção de ideologia que se contrapusesse à ordem dominante, capitalista, a tirania do dinheiro já se fazia presente do lado de cá, ocidental, e despertava a cobiça tanto dos despossuídos como dos que sempre detiveram o capital. A ambos, uma linha demasiada tênue separava atitudes honestas de ações transgressoras da lei, faltando apenas algo como um leve sopro para que tais ações fossem colocadas em prática. Tanto melhor se este leve sopro se materializasse na forma de informações palatáveis sobre o transporte de uma grande quantia de dinheiro vivo, passível de ser roubado.

Os fatos se baseavam em um típico assalto a banco. Mais precisamente um assalto a um carro-forte que faria o transporte de cerca de 600 mil dólares (lembre-se: 1965) do banco ao prédio da prefeitura. Tratava-se de um assalto nos moldes daqueles empreendidos por Bonnie e Clyde – muito bem retratados no filme de Arthur Penn –, nos quais restaram rajadas de balas aos que atravessaram o caminho do casal fora da lei, tal quais restariam aos que atravessassem o caminho dos assaltantes do banco argentino. Porém, com um único diferencial: a ação empreendida por estes se tratava de um conluio entre eles, políticos e policiais. Ou seja, uma ação “cientificamente” elaborada, até mesmo pelo fato de que, não contando o tempo de fuga, duraria menos que dez minutos.

Ao longo das décadas que divisaram o fato inspirador do livro do ano de sua publicação, Ricardo Piglia fez com que realidade e ficção se fundissem em prol de um único objetivo: demonstrar ao leitor o retrato de um período sombrio aos hermanos, permeado por violência e corrupção, entre idas e vindas de sucessivos governos militares, não muito diferente da situação vivenciada à época pela sociedade brasileira. Os admiráveis anos sessenta eram tempos confusos e difíceis, diferindo dos tempos atuais, talvez, pela produção artística empreendida, pois os que compunham tais sociedades tinham como trilha sonora as contundentes canções de Bob Dylan, muitas vezes consideradas como canções de protesto, mas como uma voz que, embora reflexo da realidade daqueles tempos, dissonava destes ao propor novas formas de interpretação de tal realidade.

A tirania do dinheiro não era, porém, conforme nos dias atuais, quando não há uma corrente ideológica contrapondo-se à ordem dominante e capaz de arrebanhar as massas, fazendo delas um instrumento para alterações paradigmáticas. O capitalismo reina absoluto e soberano, com todas as incongruências que este reinado gera nas características da sociedade contemporânea. Dentre tais incongruências, geradas pela tirania do dinheiro, seja, entretanto, nos anos sessenta ou no momento presente, pode-se destacar a violência. Uma violência que pode ser dividida em duas: a violência metaforizada e a real, aquela originando esta. A violência metaforizada, traduzida no dia a dia, pode ser definida como a forma com que este way of life capitalista, pautado, sobretudo, pela primazia econômica, condiciona as pessoas a buscarem o dinheiro incessantemente, ainda que muitas vezes elas não tenham sucesso neste objetivo. Por conseguinte, como consequência da busca inebriante pelo dinheiro, e como consequência do insucesso em tal busca, tem-se a violência real, também traduzida no cotidiano dos habitantes deste anômalo século XXI, haja vista, ao ligarmos nossos aparelhos de tevê, as reportagens que assolam os noticiários, dando margem à interpretações sensacionalistas, por apresentadores burlescos. Ambas, a violência real, estando como consequência da violência metaforizada, são responsáveis por fazerem como vítimas os mais diversos tipos de pessoas, inocentes ou não, miseráveis ou abastadas, que sofrem, portanto, dobradamente. Diante deste sofrimento contínuo e despótico, dar um passo na direção de ações transgressoras da lei não é uma atitude dificultosa; pelo contrário, é o beco sem saída onde muitos se encontram. Uma vez situados neste beco, há um agravante: as características psicológicas individuais, responsáveis por influenciarem na maneira como cada pessoa depreende a realidade e age. Tais características levaram os personagens cunhados por Ricardo Piglia em “Dinheiro Queimado” a conhecerem minuciosamente este beco sem saída.

Brignone, mais conhecido como Nene, e Dorda, também chamado de Gaúcho Louro, eram inseparáveis, a tal ponto de serem chamados de gêmeos, embora não fossem irmãos nem tivessem características físicas semelhantes, excetuando-se os olhos claros. Pelo contrário, Nene era magro, ágil; Gaúcho Louro, gordo, tranquilo. Os gêmeos eram da alta bandidagem, a despeito de qualquer traço característico que deixasse de evidenciar tal condição, como o titubear de suas ações. Magro também era Cambaio Bazán, terceiro integrante do grupo. A magreza era uma característica marcante tanto neste como em Brignone, fato que os levaram a terem sido interpretados e confundidos pelas testemunhas como uma única pessoa; mas Bazán se diferenciava de Brignone pela esbeltes, levando tais testemunhas a definirem-no como um ator, ainda que um tanto confusas pela adrenalina que toma conta do sangue, diante do presenciamento do ato criminoso cometido pelo bando, liderado pelo inteligentíssimo Malito. Este, o chefe, fora responsável pela feitura dos planos, estabelecendo contatos com os políticos e os policiais, teoricamente destinatários de metade do dinheiro. O quinto integrante era o chofer da quadrilha, Corvo Mereles. Existia ainda a namorada de Mereles, a sedutora Blanca Galeano. E também Nando, o encarregado de levar a todos ao Uruguai, após a realização da ação. Por fim, para fechar a trupe, estava aquele responsável por dar todas as informações necessárias à organização e realização do intento, o “leve sopro”, o dedo-duro Fontán Reyes, um cantor decadente de tango que teve a voz arruinada pelo vício em cocaína. Assim era formada a quadrilha. Aliás, todos, excetuando-se Nando, junkies: usuários de maconha, cocaína, heroína ou barbitúricos.

Se, algumas vezes, o autor do livro peca ao dar a ele demasiada cara de livro-reportagem, afastando-se da literatura ficcional e utilizando-se de muitos artifícios jornalísticos, como as descrições que transcendem o limite entre literatura ficcional e texto jornalístico, sabemos que é pelo fato do livro ser narrado por e sob o ponto de vista de um jovem repórter, Renzi, o qual pode ser interpretado como mais um personagem. Não obstante, é destacável o fato de o autor ter feito investigações pormenorizadas acerca da vida dos assaltantes anterior ao roubo, trabalhando tais descobertas a partir da realidade de cada personagem da obra e segundo as exigências da trama, permitindo ao livro trazer consigo descrições psicológicas aparentemente fidedignas, com destaque ao terceiro capítulo, no qual há um relato detalhado sobre a condição esquizofrênica de Dorda. Uma crítica passível de se fazer, entretanto, reside no fato de que Piglia poderia ter desenvolvido mais a participação de personagens secundários, como a amante de Mereles, e até mesmo do personagem antagonista principal, o policial argentino Silva, assim como poderia ter desenvolvido melhor as características da vida dos personagens protagonistas anterior ao roubo. Certamente, pelo que nos é mostrado na história, a vida dos protagonistas era permeada por outras passagens pela cadeia e outros crimes, levando-nos a inferir tais passados como possíveis origens de especulações pertinentes, por parte do leitor, sobre os motivos que levaram o bando a cometerem tais crimes, se desenvolvidas como Piglia desenvolveu as demais partes do livro, além de renderem algumas páginas a mais do prazer tido ao lermos “Plata Quemada”.

Embora os que de fato empreenderam a ação material se encontrassem foragidos, as autoridades deram o assalto por esclarecido dois dias depois do ocorrido, após efetuarem a prisão de cúmplices e informantes, entre eles Fontán Reyes, a amante de Mereles e Cambaio Bazán. Este último era um informante da polícia. Dizia o narrador, baseando-se nos jornais: “Assim se encerra um acontecimento inaudito em que pessoas aparentemente honestas contrataram assassinos a soldo para cometer um ato de vandalismo.” Mas onde estariam Brignone, Dorda, Mereles e o chefe, Malito?

Corta para o Uruguai. Após decidirem não dividir o dinheiro do assalto com os políticos e policiais integrantes do conluio, é para lá que o bando fugiu. Aliás, o assalto ocorreu conforme os planos. Uma ação rápida, precisa, sucinta – o que não significa que tenha sido fácil –, na qual liquidaram os que faziam a segurança do dinheiro e, durante a fuga, um leve imprevisto quase pôs tudo a perder, mas conseguiram escapar em alta velocidade a bordo de um carro roubado. A vida em Montevidéu transcorria sem maiores sobressaltos. Dorda passava o tempo a se drogar, enquanto Brignone saía todas as noites, à procura de aventuras, fodendo com homens desconhecidos e mulheres enigmáticas, como Margarita, com a qual teve um breve relacionamento, responsável por render uma das poucas passagens adocicadas do livro, entre sexo, baseados e rock-and-roll. À medida que conjecturavam sobre as possibilidades de fuga para outros países sul-americanos, onde pudessem se estabelecer seguramente, gastavam, sem escrúpulos, o dinheiro do assalto. Mas até quando a boa vida duraria? Conseguiriam, eles, escaparem para um lugar onde pudessem viver plenamente, e a história de violência manchada por sangue inocente terminaria, enfim, assim?

Ao leitor questionador, torna-se perfeitamente cabível pensar que a história poderia ter tido seu desfecho em qualquer outro país sul-americano, como, por exemplo, no Brasil, dadas as características semelhantes das sociedades uruguaia e brasileira daquela época, como ficou evidenciado pela maneira de agir dos policiais, jornalistas e curiosos que acompanhavam o local onde o desfecho da história ocorreu. No entanto, quando pensamos acuradamente no desfecho da história fica nítido: ele não poderia ter acontecido em outro lugar ou época, com personagens diferentes, se não naquele apartamento da Montevidéu de meados da década de sessenta, com os atores tecidos por Piglia. Pois se entende o desfecho sanguinolento como consequência de toda a violência empregada pelos assassinos durante toda a história, matando por matar. E entende-se a existência da ação sanguinolenta dos assassinos como, em parte, corroborada por um modo de vida que os condicionam a agirem de tal forma, o que de modo algum justifica, mas, aliado às características psicológicas de cada um, nos faz entender algumas das razões que os levaram a transgredirem as leis.

Não se quer aqui entregar o final, mas o fato mais simbólico da história acontece quando, uma vez encurralados pela polícia num apartamento de Montevidéu, sob tiroteio intermitente, ocorre a presunção tida pelo leitor a partir do primeiro contato com o livro, a leitura do título. Os assassinos se decidem por queimar todo o dinheiro do assalto. É óbvia a impossibilidade dos três, Brignone, Dorda e Mereles, escaparem ilesos daquele cerco. (Nesse momento da história, o leitor atento se perguntará: “e Malito, onde estaria?” Eis a grande incógnita do livro.) Como se apenas dinheiro, e não vontade política e esforços comuns, fosse o necessário para sanar as malezas sociais de um país, os policiais, jornalistas e curiosos se interrogaram, indignados, ao verem o dinheiro queimado cair através das janelas, como era possível os criminosos agirem de tal forma, insensíveis, desumanos; pensavam nas crianças órfãs, nos pobres, nos carentes, como se só o dinheiro fosse capaz de entrincheirar e liquidar os problemas deles.

Vale destacar o símile cunhado por Piglia: “As notas de cem queimavam como mariposas cujas asas são tocadas pelas chamas de uma vela e que ainda adejam um segundo tomadas pelo fogo e voam pelo ar um instante interminável antes de arder e consumir-se.” O ato de queimar o dinheiro representou uma declaração simbólica de guerra contra os valores da sociedade estabelecida, ainda que eles, os assassinos, fossem apenas mais algumas das vítimas do sistema econômico vigente e não tivessem sequer consciência de seu papel enquanto indivíduos transgressores da lei. Encurralados contra uma parede de espinhos de um beco sem saída, sob um tiroteio intenso que já durava horas, queimar o dinheiro do assalto foi uma atitude niilista, no qual a ausência de sentidos corroborava a condição mental dos assassinos: iminente loucura. Embora a ingenuidade do ato seja evidente e os que cometeram-no sequer tivessem consciência disso, a partir da interpretação do que está contido no livro ele pode ser entendido, sim, como um ato de contestação social, carregado de significados.

O despotismo do dinheiro e da razão econômica está para a sociedade contemporânea, sobrepondo-se, irrefutavelmente, a todos os campos da vida, tal qual a tirania da Igreja estava para a Idade Média. Dito isto, é possível conjecturarmos que habitantes de um futuro distante poderão definir a época atual como a Segunda Idade Média, vivida por nós, os quais assistimos, muitas vezes perplexos, os desvãos que guardam em si as características de um tempo obscuro, influenciando a produção artística e cultural, influenciando o ato de pensar política (se é que este ainda existe, haja vista as campanhas eleitorais burguesas que visam somente o voto, e não a discussão política), influenciando descobertas científicas (nas quais, com raras exceções, o objetivo é o lucro, e não o bem comum), ou influenciando até mesmo a vida simples e cotidiana. Trata-se de um tempo permeado por todas as incongruências que são consequências do despotismo da razão econômica.

Entretanto, enquanto a violência promovida pela Igreja a seus opositores e profanadores da ordem era de forma direta, geralmente confluindo nas fogueiras da Inquisição, existia também a violência metaforizada, evidenciada pelo modo como a Igreja não permitia a existência de pensamentos que se opunham a ela, uma das violências promovidas pela tirania do dinheiro é sutil. Quase imperceptível à grande massa – incapaz de pensar criticamente e incapaz de profanar, através do pensamento, a ordem vigente porque é condicionada a buscar o dinheiro incessantemente para sobreviver e iludir-se com o consumo de valores materiais –, a violência metaforizada atinge a todos. E como consequência da violência metaforizada está a violência real, que, diferindo da Idade Média, quando a violência real era restrita aos opositores, mas assim como a violência metaforizada de ambas as épocas, também atinge a todos, como muito bem retratado por Ricardo Piglia em seu romance, no qual queimar o dinheiro representou uma atitude niilista, mas simbolicamente profanadora. Em ambas as épocas a violência real era e é exposta ao público, fosse através dos espetáculos promovidos pela Igreja, nos quais o fogo consumia o homem, seja através da mídia, o rádio, a televisão, a internet, entre outras, nas quais o espetáculo é simultaneamente compartilhado com milhões.

A versão argentina de uma tragédia grega, o thriller tecido por Piglia – e que recebeu uma elogiada versão cinematográfica em 2000 por Marcelo Piñeyro – nos fornece um relato fidedigno daqueles que ousaram profanar a ordem vigente. Homossexuais, drogados, assassinos, à margem, ousaram profanar e pagaram caro. Mas, afinal, “que é roubar um banco comparado com fundá-lo?” A questão cunhada Bertolt Brecht é a epígrafe do livro, responsável por evidenciar, logo de início, sua condição de obra primorosa, tal qual o fim evidenciou. Escapar daquele cerco, como, se não por ajuda de alguma força sobrenatural? É evidente o prenúncio de um fim trágico.

“A arte é o espelho social de uma época”, a frase é atribuída ao saudoso Raul Seixas. Quando uma época é permeada por violência, o espelho refletirá mais violência. Se vivemos a Segunda Idade Média, período no qual ambos os tipos de violência atingem a todos, podemos profanar não como os assassinos argentinos, cometendo assaltos sanguinolentos e queimando dinheiro, infringindo a lei e o bom senso, mas estaremos a profanar, assim como eles, a partir do momento em que nos tornarmos conscientes da importância de estabelecermos um pensamento crítico em relação à realidade que nos cerca. Para tanto, a literatura, como reflexo da realidade, assim como outras expressões artísticas, é fonte inesgotável de substrato para a criação de tal pensamento crítico. No contexto atual, se não há opções ideológicas capazes de arrebanhar as massas e fazer delas um instrumento para alterações paradigmáticas, se a fragmentação das ideias é perene, a reunião do maior número de pensamentos críticos poderá gerar o novo, ou, quem sabe, aquilo que os habitantes de um futuro longínquo poderão definir como o Segundo Renascimento, com todas as benesses que tal época trará consigo.

Por que não?

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