Crítica: “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, é uma porrada atordoante

por Marcelo Costa

“O Lobo de Wall Street” (“The Wolf of Wall Street”, 2013) é o filme mais poderoso de Martin Scorsese desde “Goodfellas” (1990). Simples assim. Ok, a violência romântica velada da sociedade (e, por que não, dos próprios personagens) em “A Época da Inocência” (1993) é majestosa enquanto “Cassino” (1995), ainda que ótimo, escorrega em exageros. O grandioso “Gangues de Nova Iorque” (2002) ainda precisa ser reavaliado, mas mesmo ele, o bom “O Aviador” (2004), o corretíssimo “Os Infiltrados” (2006, que lhe rendeu seu único Oscar) e o bonito “Hugo Cabret” (2011) soam peças menores diante de “O Lobo de Wall Street” por uma simples razão: Scorsese nunca havia ido tão longe ao retratar o lado mais sórdido do mundo.

Duvida? Com apenas 1 minuto em 25 segundos de projeção, Jordan Belfort (DiCaprio em sua melhor atuação na carreira) está oferecendo 25 mil dólares para o “viado que acertar o alvo bem no centro” com um… anão… em pleno local de trabalho. Com dois minutos, uma loura o chupa em uma Ferrari “branca, igual à de Don Johnson, do Miami Vice”, ele se apressa a corrigir, enquanto exibe sua bela esposa, Naomi (Margot Robbie, uma das boas surpresas do elenco), em roupas intimas ao espectador: “Sim, era ela fazendo um boquete em mim na Ferrari. Então guarde seu pinto na calça”. Aos três minutos ele está soprando cocaína no ânus de uma prostituta. E há, ainda, outros 176 minutos deste mundo absurdo pela frente.

A história real, inspirada no livro homônimo do corretor que praticava fraudes de seguro e corrupção em Wall Street na década de 1990, começa com um ambicioso Jordan Belfort chegando ao centro financeiro nova-iorquino para um estagio. Ele tem 22 anos, mas conseguiu se destacar em uma entrevista de emprego, e agora está na L.F. Rothschild, uma instituição em Wall Street desde 1899. Seu chefe direto tenta reduzi-lo à merda assim que ele entra no prédio, mas seu mestre será Mark Hanna (Matthew McConaughey mostrando que sua boa fase não é a toa: é apenas uma ponta, e ele merecia uma indicação ao Oscar de coadjuvante por seu pequeno show), que o ensinará tudo o que ele precisa saber sobre investimentos.

Se o mundo fosse um pouquinho mais inteligente, o monólogo em que Mark Hanna explica como Wall Street funciona teria causado um violento crash na bolsa: “O nome do jogo é tirar o dinheiro do bolso de seus clientes é colocar no seu. Porque ninguém sabe se uma ação vai subir, descer ou se irá andar em círculos, nem os corretores da bolsa. É tudo… fugazi… balela, mito, farsa, um pó de fada: não existe. Esse dinheiro não é real, motherfucker. Então basta que você faça o cliente reinvestir seus lucros infinitamente. Eles vão ficar ricos… no papel, enquanto você ganhará comissão a cada transação e ficará… milionário”, explica o empolgado corretor sênior para um novato que só pensa em colocar as regras do mestre em prática (e há algumas outras também questionáveis, acredite).

Daí em diante, não espere alivio, porque a coisa toda degringola após a famosa Black Monday, uma segunda-feira de outubro de 1987 em que a Bolsa de Nova Iorque caiu mais de 22% – era o primeiro dia do trabalho de Jordan como corretor oficializado. Desempregado após o violento crash, ele acaba se recolocando em um pequeno centro investidor em Long Island especializado em vender ações (que valem centavos – chamadas ‘penny stocks’) de empresas pequenas que não tem capital suficiente para entrar na bolsa. Em certo momento, ele confessa: “Estou vendendo lixo para lixeiros”. E começa, então, sua ascensão.

Martin Scorsese glamoriza Jordan Belfort (como ele havia feito com Henry, o personagem de Ray Liotta em “Goodfellas”, a ponto do espectador ‘desejar’ ter uma vida como a do mafioso), a ponto do próprio, inclusive, fazer uma ponta no filme (introduzindo o personagem interpretado por DiCaprio em uma palestra), mas há um aparente propósito maior por trás da recriação exagerada e, por muitas vezes, sedutora da devassidão perpetrada pelos personagens do filme: Scorsese, tal qual um advogado (embora ele mesmo tenha dito que é apenas um cineasta, não um juiz, é óbvio que tem uma opinião), defende seu lobo acusando o mundo de ter se transformando em uma selva repleta de lobos dispostos a tirar a pele do próximo, se for preciso.

Com o roteiro de Terence Winter em mãos (repetindo a parceria de “Boardwalk Empire”), Scorsese parece esbravejar: por que vocês o culpam se vocês são exatamente iguaizinhos a ele? Qual a diferença? A acusação está estampada em diversas passagens do filme, como quando Jordan compara a Stratton Oakmont (sua empresa especializada em roubar dinheiro de investidores inocentes) aos Estados Unidos, ou na oportunidade em que é apelidado pela Forbes como “O Lobo de Wall Street” e vê seu escritório repleto de jovens querendo ser como ele, ou ainda numa cena muito mais simbólica, em que diante de uma plateia devota, pede para algumas pessoas presentes tentarem lhe vender uma caneta: a câmera focaliza uma sala inteira querendo ser Jordan Belfort.

É isso que nos tornamos?, pisca o olho Scorsese numa provocação que torna risível a posição daqueles que criticam a violência verbal exacerbada (“O Lobo de Wall Street” bateu o recorde de palavrões em um filme de Hollywood), o absurdo uso de drogas dos personagens (Jordan Belfort, em certo momento, diz que consome diariamente drogas suficientes para dopar Manhattan, Long Island e o Queens) e o sexo “gratuito” (há uma educativa explicação sobre os valores financeiros dos três níveis de prostitutas que frequentavam os escritórios de Jordan). Scorsese apenas quis retratar o mundo “depravado”, nas palavras de um personagem, e o fez da única (e melhor) maneira cinematográfica que conhece: a lá Scorsese. Palmas.

É uma pena que mesmo sendo superior a muitos de seus concorrentes (como o insosso “Trapaça”, um sub-Scorsese de quinta categoria filmado em câmera lenta, com trilha sonora óbvia e belas perucas), “O Lobo de Wall Street” tenha poucas chances no Oscar. Porém, a longo prazo (descontando o fato de que o filme já recuperou nas bilheterias norte-americanas seu investimento, e deve lucrar ainda mais), “O Lobo de Wall Street” tende a virar um ícone na carreira de Scorsese – destacando o inebriante trecho em que um DiCaprio chapado de Quaalude Lemmon 714 tenta impedir Johan Hill de falar ao telefone – tal qual seus melhores filmes que nunca lhe renderam Oscar. A vida pode ser injusta, mas não deixe de ver o filme nos cinemas. É uma porrada atordoante.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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7 thoughts on “Crítica: “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, é uma porrada atordoante

  1. Não me lembro em muito tempo de uma cena de briga tão maravilhosa quanto aquela entre Jordan e Johan chapadíssimos na cozinha

  2. Filme apenas regular. Um monte de exageros do filme e da crítica. Se um diretor estreante fosse o autor do filme todos condenariam. Mas como é Scorsese, uma lenda viva, tudo bem.

  3. O filme não é regular, é acima da média, principalmente nos quesitos de roteiro, atuações e edição.Não é exagero nenhum( se você nunca conheceu algum yuppie ou nunca bancou uma festa dentro de um puteiro vai entender o que estou falando).E sim, é o melhor filme de Scorsese após Goodfellas.Com uma menção honrosa para “No Direction Home”, que acredito eu não foi citado pelo Mac por ser um não ficção!

  4. Uma coisa é certa, Scorcese não exagerou nem passou da conta. Li o livro em 2011 e fiquei com o estômago embrulhado de tanta loucura do Jordan Belfort. E o Scorcese ainda suprimiu uns 40 minutos da edição final.

  5. Se o filme já é um pouco longo e repetitivo, fico imaginando como seria com esses 40 minutos cortados!
    Achei o filme excelente, um dos melhores de todos os tempos.
    Mas, na minha humilde opinião, discordo de ser o melhor do mestre Scorsese desde Os Bons Companheiros; acho Os Infiltrados melhor.

    ps: Não vejo a hora de rever esse filme em casa, várias e várias vezes!

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