Cinema: A Grande Beleza

por Marcelo Costa

Jep Gambardella completa 65 anos esta noite. Aos 20, ele escreveu um romance de título pomposo, “O Aparato Humano”, que foi premiado, fez sua fama de escritor e, desde então, nunca mais lançou um segundo livro, dedicando-se ao jornalismo, nas horas vagas, e às festas que acontecem em Roma em tempo quase integral. Ele mora em um luxuoso apartamento, com um terraço de vista soberba para o Coliseu, o famoso anfiteatro construído no período da Roma Antiga, entre 68-79 d.C., e gasta seu tempo caminhando entre as ruínas da cidade e da própria sociedade.

Jep tem mais certezas do que dúvidas, e, em certo ponto, explica: “Eu não queria apenas participar das festas (da alta sociedade). Eu queria ter o dom de fazê-las fracassar”. Pouco antes havia contado ao espectador que a coisa mais importante que ele havia descoberto dias antes de completar 65 anos é de que “não posso perder mais tempo fazendo coisas que eu não quero fazer”. A conclusão surge após dividir a cama com uma bela mulher, que após o sexo conta que seu maior vício é fazer “selfies”: `”Posso te mostrar?”, ela pergunta.

Estes dois primeiros parágrafos já bastam para ligar “A Grande Beleza” (“La Grande Bellezza”, 2013), esplendoroso novo filme do cineasta italiano Paolo Sorrentino, a uma das obras primas de Federico Fellini, mas há muito mais entre “A Grande Beleza” (2013) e “La Dolce Vita” (1960): confiante (e egocêntrico, segundo as línguas ferinas), Sorrentino condensa em pouco mais de 2 horas e 20 minutos um exercício corajoso de influência e homenagem, que vai além e ousa tornar-se um dos momentos mais bonitos do cinema recente.

Da abertura, surpreendente, chocando uma passagem lírica – em que um grupo de orientais admira, embasbacados, a vista de Roma da praça da Fontana dell’Acqua Paola, e um deles, completamente imerso na beleza do lugar, tenta registrar para a eternidade um fragmento dessa grandiosidade em sua câmera fotográfica, embora ele mesmo não o será – com uma festa hedonista que visa homenagear o aniversariante Jep, e serve de retrato absurdo (a la Baz Luhrmann) de um universo de pessoas que dançam sobre escombros da sociedade, até a belíssima cena final (que se estende até o fim dos créditos – se perdeu no cinema, assista no último vídeo), no Castelo de Sant’Angelo, “A Grande Beleza” é grande (sétima) arte.

As duas cenas iniciais e antagônicas, por exemplo, servem para inserir o espectador no mundo de observador de Jep Gambardella, que, deste ponto em diante, dividirá sua vida com o público na forma de episódios, e se há muito de Fellini na forma lírica, por muitas vezes cômica, em que Jep (e Paolo Sorrentino) conta suas histórias (e um pouco do Ettore Scola do tragicismo de “La Terrazza”, 1980), o estilismo da fotografia de Luca Bigazzi remete ao Antonioni da Trilogia da Incomunicabilidade (principalmente “La Notte” e “L’Avventura”, respectivamente 1961 e 1962).

Citações escorrem pela tela como água de chuva na vidraça em dia de tempestade: uma cena em que um aparente médico charlatão cobra 700 euros por consulta é tão surreal quanto o absurdamente genial desfile de moda eclesiástico contido em “Roma” (1972), de Fellini, e assim como Federico mostrava neste mesmo filme as belezas enterradas sobre o asfalto (na bela cena de escavação do túnel do metrô), Sorrentino observa o mundo maravilhoso e intocado – para turistas e cidadãos comuns – dos castelos aristocráticos.

Uma cena maravilhosa (entre tantas outras) em que uma girafa entra em cena remete a “Oito e Meio” (1963), e desemboca no mantra que Sorrentino busca defender com “A Grande Beleza”: a vida é um truque. Aos 65 anos, Jep ainda é assombrado por fantasmas do passado, algo que ele nem sabe que procura, mas que o move toda vez que saí de casa, nas caminhadas solitárias pela Via Veneto de madrugada tentando usar o entretenimento – e a observação do mundo – como salvação. O jornalista sabe o quão é insignificante perante a vida (não só ele, mas todos nós, ele defende numa cena redentora), no entanto, ainda está apegado a histórias que não foram resolvidas na adolescência.

O aniversário de 65 anos, o reencontro com velhos amigos (entre eles o hilário dono de um puteiro cuja filha, de 40 anos, ainda se apresenta como dançarina), a conversa com um padre exorcista e as poucas palavras de uma santa viva além da morte de pessoas próximas colocam Jep Gambardella na berlinda, e ele, sempre ansioso por aplacar o vazio – é deliciosa uma conversa do jornalista com sua empregada: “Está triste?”, ela pergunta; “Estou estranho”, ele responde; “Não gosto disso, prefiro você triste”, encerra ela – se vê obrigado a enfrentar o passado e o envelhecimento.

Desta forma, “A Grande Beleza” soa como uma versão italiana de “Aqui é o Meu Lugar” (“This Must Be The Place”, 2012), estreia em língua inglesa de Sorrentino que flagrava um roqueiro de sucesso (Sean Penn) que sofria com fantasmas e o envelhecimento. Jep, tal qual, é um escritor de sucesso que deixou de lançar livros (assim como o personagem de Sean Penn deixou de gravar discos), mas, mesmo velho e cansado, não abandonou o hedonismo, embora se delicie relembrando no teto do quarto um entardecer marcante numa praia de Nápoles.

Paolo Sorrentino usa o cinema para defender uma volta às raízes (em “A Grande Beleza”, uma personagem declara isso de forma literal), e se essa defesa deixou a desejar em “This Must Be The Place” por corroborar uma visão moralista que defendia que o que é estranho e diferente é imaturo (o personagem de Sean Penn encontra-se consigo mesmo e com seu passado após abandonar a maquiagem de seu alter-ego roqueiro e “transformar-se numa pessoa normal”), em “A Grande Beleza” a opção surge de forma mais sutil, e, por isso, mais funcional, ainda que suscite certeza demasiada sobre “o sentido da vida”.

Por debaixo de uma camada tão efusiva e soberba de imagens e personagens, “A Grande Beleza” se resume a um acerto de contas com fantasmas do passado e a uma valorização das raízes (o local onde cresceu aqui, a família no filme anterior), num formato que rememora livros como “O Macaco e a Essência” (1949), de Aldous Huxley, “Ilusões” (1977), de Richard Bach, e a “tradução enxuta” nacional dos dois, “O Alquimista” (1988), de Paulo Coelho, que partem da premissa de que tudo o que você procura está exatamente no lugar em que você estava, e o trajeto para essa descoberta (esse retorno) é o que transforma a vida em algo valoroso.

A defesa, inclusive, é reforçada na citação de “Viagem ao Fundo da Noite” (1932), de Louis-Ferdinand Celine, que abre o filme: “Viajar é útil, exercita a imaginação. O resto é desilusão e fadiga. A viagem é inteiramente imaginária. Eis a sua força. Vai da vida para a morte. Pessoas, animais, cidades, coisas, é tudo inventado. É um romance, apenas uma história fictícia. Disse Littre, e ele não erra. Porém, qualquer um pode fazer o mesmo. Basta fechar os olhos. E estará do outro lado da vida.”. Viver é pura imaginação, ou como explica de forma “mágica” um amigo de Jep Gambardella, é tudo um truque. Ousamos discordar?

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

Leia também:
– “A Grande Beleza” lidera o Top 25 filmes de 2013 no Brasil, por Marcelo Costa (aqui)
– Filmografia comentada: todos os filmes de Federico Fellini (aqui)
– “A Noite”, de Antonioni: É no não dito que reside o descompasso, por Nuno Manna (aqui)
–  O didatismo visual de “Aqui é Meu Lugar”, de Sorrentino, por Marcelo Costa (aqui)

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7 thoughts on “Cinema: A Grande Beleza

  1. O filme é absurdo de bom mesmo. Eu conversava com minha esposa, depois de um dia pesado de trabalho ou uma noite mal dormida é fácil se deixar levar pelo sono.

    O filme até cita em certo momento do livro que Gustave Flaubert tentou ou escreveu sobre nada. O filme as vezes fica nesse limbo, o nada, porém é mais do que necessário o nada para entender a grande beleza que é o filme.

    Fantástico.

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