O primeiro filme de George Lucas

por Otávio Augusto

Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, bem antes de “American Graffiti” e “Star Wars Episode IV” está “THX 1138”, o primeiro filme dirigido por George Lucas, então com 27 anos, recém-formado na UCLA e com uma mente típica dos gênios precoces. Ainda hoje, “THX 1138” é um filme muito mais comentado do que realmente assistido.

Francis Ford Coppola tinha acabado de lançar a produtora American Zoetrope e montado sua sede longe de Hollywood, na rua Folson n° 87, em São Francisco. Francis mantinha uma parceira conturbada com a ainda rígida administração da Warner Bros, que não queria de jeito algum lançar “THX 1138” no circuito com medo do roteiro nada comercial. Francis comprou o barulho do seu amigo franzino e cauteloso, ou como ele mesmo se referia a George Lucas, “O menino de 70 anos”, e conseguiu 300 mil dólares da Warner para bancar a produção do filme.

Nem mesmo a mulher de George Lucas gostava do roteiro de “THX 1138”. Uma distopia que mostrava um cenário isolado em algum tempo muito depois dos anos 2000, onde as pessoas são controladas por um sistema de produção opressor e doutrinador. O projeto foi baseado em curta de mesmo nome que George Lucas tinha apresentando ainda na época da graduação em cinema na UCLA.

THX (Robert Duvall) vive numa sociedade futura onde todos tomam drogas para suprimir emoções. Os cidadãos vivem para o trabalho e geralmente moram com companheiros de quarto. LUH 3417 (Maggie McOmie) é a companheira de THX, e tem a ideia de alterar alguns dos medicamentos de seu companheiro. Percebe que ele apresentava algum tipo de sensibilidade e emoção ao não ingerir a droga obrigatória, a partir daí os dois cometem o maior crime dentro do tipo de sociedade em que vivem: a paixão.

A pena aplicada a THX é o sumiço de LUH e a normalização da sua vida como funcionário doutrinado a não parar a produção. A partir daí, começa a busca desesperada de THX por LUH e são mostradas as visceras da sociedade de controle na qual estão inseridos.

THX é abordado por um estranho misterioso, SEN 5241 (Donald Pleasence), que observou as mudanças emocionais em THX e quer se tornar o novo companheiro de quarto dele. Por quê? Nós não sabemos. Uma vez que neste futuro tudo é monitorado, o amor entre LUH e THX é observado, e os dois são presos. Como não há governo visível, quem decidiu punir os dois amantes? Nós não sabemos também. Eventualmente THX escapa com a ajuda de SEN e SRT (Don Pedro Colley) que, aparentemente, parece um holograma (simulacro). Por quê? Nós não sabemos. Os três tentam fugir – e escapar do que? E ir para onde? Nós não sabemos.

SEN 5241 está confinado junto com THX e outros “infratores” e mantém um discurso de liderança aos moldes fascistas. Para criticiar a sociedade em que vive decide ser um líder autoritário dentro de seu pequeno grupo, prometendo liberta-los do confinamento atravês de uma liderança e um plano ideológico que se utiliza da força e do preconceito às minorias ditas mais fracas. No diálogo com THX diz: “É preciso falar com força, com verdade na voz, para eles saberem quem é que manda aqui”.

Percebe-se claramente a tentativa de George Lucas de se aproximar de obras literárias distópicas como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Orwel. Porém, a crítica que o diretor parecia ter em mente não buscava mostrar detalhes pelos quais os homens são feitos reféns de um estado opressor. Em “THX 1138” não há estado visível, só há mecanismos pelos quais os homens vivem numa sociedade de controle.

O controle é exercido por conta de um poder culturalmente estabelecido na mente dos homens operários, que não se reconhecem como sujeitos de sua propria história e não tem ideia que vivem doutrinados por drogas. O poder é ao mesmo tempo invisível e está por toda parte. A droga obrigatória serviria para um melhor desempenho da produção e consequentente melhor desempenho social, e quando THX deixa de tomar a droga percebe que seu desempenho é o mesmo de antes, a única coisa diferente que sente é a emoção. A sensibilidade.

Fica claro que o projeto do estado que controla a sociedade tem objetivo de suplantar todas as emoções, já que, dopados os homens produzem mais e não criam problemas, nem débitos. Na nossa sociedade atual cresce o número de “crianças” supostamente portadoras de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Motivo? Não conseguem se concentrar dentro das normas conservadoras e ultrapassadas das instituições de ensino. Medicamentos? Um dopante de tarja preta.

Sociedade de Controle foi um termo criado pelo filósofo francês Gilles Deleuze para caracterizar um tipo de sociedade que vinha se desenvolvendo após a Segunda Guerra Mundial, como uma espécie de derivação, desdobramento da sociedade disciplinar analisada por Michel Focault. Se na nova sociedade continuamos num regime de biopoder, ela, por outro lado, vem instaurar mecanismos qualitativamente diferentes na forma de gerir a vida.

Em “THX 1138” vemos a junção e transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. O mundo em que os homens vivem não é um simples confinamento de trabalhadores em uma fábrica, mas sim o confinamento de todo o corpo social dentro da perspectiva de sociedade vigente. O poder não está atrás dos muros das fábricas, ele é todo o corpo social de uma vez só. A identificação THX 1138 não é um número em série para identificar um dos muitos operários de uma fábrica e sim um código de um sistema operacional para controle em computadores, parecido com o seu código de identificação aí no facebook. Quando THX desrespeita as regras na sua busca por LUH, a pena que recebe não é demissão e sim monetária (“Débitos em 10.000 e aumentando!). Se fizermos um parelelo com o mundo em que vivemos, a mídia como principal arma de manutenção da ordem conservadora deixou de propor um mundo paralelo em prol dos seus interesses, a mídia hoje é o proprio mundo parelelo que faz existir outro ethos social manipulado e totalmente abarcado pelo ideal de um poder hegemônico que consequentemente vende seus “produtos”. Ao chegar do trabalho THX senta em frente ao seu aparelho de entretenimento controlado e consome um tipo de informação nada reflexiva, assiste primeiro a uma cena de dança, totalmente desconexa, depois um show de piadas. Ou seja, informações que em nada ajudam na compreensão da totalidade social na qual está inserido. Qualquer semelhança com programas como “Esquenta” da Rede Globo não é (!) mera coincidência.

Mesmo com todas as questões filosóficas que remetem a filmes mais recentes e de sucesso como a trilogia “Matrix”, “THX 1138” é deixado de lado pela maioria dos fãs de ficção científica e de George Lucas principalmente por se tratar do criador da cultuada série “Star Wars”. Toda obra de ficção científica (literária ou cinematogáfica) demostra certo pessimismo quanto ao futuro, e se existe momento propicio para aplica-lo é o mundo de hoje. “THX 1138” não remete a 1969, ali ainda não estavam estabelecidos todos os mecanismos para uma sociedade de controle tecnológica capitalista plena (em 1969 existia o Muro de Berlim e o mundo vivia a guerra fria e ideológica), ele mostra uma visão pessimista para o século XXI, ele fala para o mundo atual que sofre o projeto controlador neoliberal na pele, que está vendo as emoções e a sensibilidade sendo suplantadas a todo custo em prol do puramente mercadológico, seja na cultura pastiche ou na política neoliberal. Um mundo sem social, um mundo de massas. Onde os homens dopados e sem emoção produzem mais, e se por algum motivo desrepeitam as leis do mercado se tornam controlados e penalizados pelas dívidas. Por isso, cada vez mais, recebemos o seguinte conselho:

“És um verdadeiro crente. Benção do Estado, benção das massas. trabalha arduamente, aumenta a produção, previne os acidentes, e seja feliz”

A distopia de George Lucas certamente pareceu muito apocalíptica e irreal para a maioria dos que viram o filme na época, principalmnente numa sociedade conservadora como os Estados Unidos da América. Porém, “THX 1138” é o tipo de filme que envelhece muito bem e ganhou mais corpo e sentido com o novo século.

Os mais críticos ao filme apontam a sequência final como a parte mais fraca. Depois de procurar loucamente por LUH, THX consegue sair da “caverna” e ver o mundo real, e agora o que tem lá fora? Créditos subindo, o filme terminou. De fato, George Lucas não consegue amarrar todas as estruturas que propõe no filme, apesar de visualmente interessante soa desconexo e sem linearidade. George Lucas culpa a Warner pelos cortes e censuras na fita original, o que se diminui a força do filme, não atenua seu recado, pois o iniciante George Lucas deslizou, mas não errou: “THX 1138” tem muito mais sentido hoje do que quando estreou em 1971.

– Otávio Augusto (siga @otavioacunha) é historiador e fã de cultura pop

Leia também:
– “Stars Wars, O Ataque dos Clones”: mitologia e inteligência, por Mac (aqui)
– Livro: “Como a Geração Sexo-Drogas-e-Rock’n’rRll Salvou Hollywood (aqui)

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