por Marcelo Costa
Nascido em 1932 em Paris, François Roland Truffaut praticamente fez do início de sua vida, seu primeiro filme. Assim como Antoine Doinel em “Os Incompreendidos”, Truffaut foi adotado pelo padrasto, teve um adolescência complicada, com pequenos furtos e prisões, até o período em que se alistou no exército, e foi preso por tentar desertar. Entra em cena André Bazin, que atuará com um guardião de François, retirando-o da prisão militar e colocando-o na redação de sua revista, a mítica Cahiers du Cinéma, local em que Truffaut começaria como crítico (brutal e implacável) e depois passaria a editor.
Seu primeiro filme, o curta-metragem “A Visita” (1955), nunca foi exibido oficialmente, e consta que, hoje em dia, nem a família tem uma cópia dos fotogramas – embora, em 1982, Truffaut tenha reimpresso o curta em 35 milímetros para exibir em sua casa para alguns poucos eleitos. Para efeito de estreia, “Os Pivetes”, curta de 1958, é tomado como o primeiro filme do cineasta francês e um dos precursores da Nouvelle Vague junto a “All the Boys Are Called Patrick”, curta de 21 minutos dirigido por Godard em 1957. Truffaut ainda produziria outro curta, “A História da Água”, em parceria com Godard, antes de sua estreia em longas.
Entre “Os Incompreendidos” (1959) e “De Repente Domingo” (1983), Truffaut assinaria a direção de 21 longas metragens, um curta e uma co-direção (em “Tire-au-flanc 62”, de Claude Givray), sem contar “Acossado”, direção de Godard sobre um argumento de Truffaut e Claude Chabrol, e se transformaria em um dos mestres da Nouvelle Vague francesa, movimento cinematográfico que pregava a experimentação e uma montagem pouco casual que não abria concessões à linearidade narrativa valorizando a autonomia criativa. O resultado eram filmes mais pessoais e baratos em contraponto aos filmes caríssimos encomendados por Hollywood.
Os traumas de adolescência irão perseguir arduamente François Truffaut em sua primeira década, e vários momentos de misoginia podem ser encontrados em seus trabalhos dos anos 60, como se Truffaut usasse o cinema para se vingar de todas as mulheres, em geral, e de uma, sua própria mãe, em particular – o auge dessa revolta acontece em “A Sereia do Mississippi”, de 1969. Já a década de 70 encontra um diretor maduro cinematograficamente e psicologicamente, expurgando seus fantasmas de forma explicita em duas obras tocantes: “O Homem Que Amava as Mulheres” (1977) e “Amor em Fuga” (1980).
A melhor forma de perceber a maturidade cinematográfica do cineasta é acompanhando a trajetória de seu personagem alter-ego, Antoine Doinel (sempre Jean-Pierre Léaud), que irá estrelar quatro ótimos longas e um curta-metragem, mas é impossível não recomendar obras intocáveis como a declaração de amor ao cinema feita em “A Noite Americana” (1972), que lhe rendeu um Oscar, o triângulo amoroso de “Jules e Jim” (1962), o tocante manifesto pelos diretos da criança de “A Idade da Inocência” (1975) e a magnifica crítica ao antissemitismo e, principalmente, a intolerância de “O Último Metrô” (1981).
Nos final dos anos 70 e começo dos 80, Truffaut vivia um dos melhores períodos de sua carreira. Ele planejava lançar 30 filmes e depois se retirar para se dedicar a literatura, mas, um ano após lançar seu 21º longa, “De Repente, Domingo” (1983), Truffaut saia de cena, derrotado por um devastador tumor cerebral, aos 52 anos. Considerado um dos maiores diretores franceses de todos os tempos, Truffaut está enterrado no Cemitério de Montmartre, em Paris, e deixou uma obra admirável e tocante em sua simplicidade. Abaixo, os 25 filmes que ele dirigiu. Vale recomendar, ainda, o livro de entrevistas “Hitchcock / Truffaut”, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, uma aula de cinema de dois mestres.
Titulo Original: Les Mistons, 1958
Titulo nacional: Os Pivetes
Tido como primeiro trabalho oficial de Truffaut, o curta-metragem “Os Pivetes” (26 minutos na primeira versão, 17 na versão final) focaliza um grupo de garotos que se vê seduzido pela jovem Bernadette (Bernadette Lafont em inicio de carreira, lembrando Audrey Hepburn). Da rotina diária dos pivetes consta observar Bernadette pedalar sua bicicleta com uma saia esvoaçante e vê-la jogando tênis com o namorado, o qual é odiado pelos garotos. “O que nos trazia aqui?”, pergunta o moleque narrador atrás de uma cerca da quadra de tênis: “Amor ao jogo, à saia curta ou as pernas descobertas de Bernadette?”. Logo mais, o mesmo narrador irá concluir que, em sua inocência infantil, o grupo de pivetes apaixonado por Bernadette era jovem demais para entender o amor. “Para as crianças, entretanto, os assuntos do amor são desconhecidos, porém ainda assim obsessivos”. Os meninos não desistem e tentam transformar a vida do casal num inferno, como se Bernadette devesse ser culpada pela paixão que eles sentem, embora não soubessem que sentimento estranho era esse. Quase uma introdução para “Os Incompreendidos” e “Antoine e Colette”, o curta-metragem “Os Pivetes” define o estilo que Truffaut seguirá em sua carreira. Curiosidade: Truffaut e Raimundos dividem uma pequena ficção por selins de bicicleta…
Titulo Original: Une histoire d’eau, 1958
Titulo nacional: A História da Água
Curta-metragem de 12 minutos dirigido e escrito em parceria por Godard e Truffaut, “A História da Água” flagra uma jovem (Caroline Dim) que, ao se preparar para ir à escola, percebe que a região está inundada, deixando-a ilhada em sua própria casa. Ela vive em Villeneuve-Saint-Georges, a cerca de meia hora de Paris, e o alagamento aconteceu devido ao derretimento da neve nos Alpes. A garota coloca botas e parte para o ponto de ônibus, e descobre que eles não vão circular devido ao alagamento. Ela decide, então, pegar uma carona com um desconhecido (Jean-Claude Brialy), com quem vive um breve romance. “Eu irei provavelmente dormir em sua casa esta noite, pois a inundação em Paris, para mim, é motivo de felicidade”, diz a moça. Truffaut havia escrito um pequeno romance, que Godard picotou na sala de edição, acrescentou uma dublagem filosófica (narrada por ele mesmo) e incluiu batuques e jazz na trilha sonora. Apresentado oficialmente apenas em 1961, “A História da Água” já traz alguns elementos da Nouvelle Vague, mas está mais para Godard do que da para Truffaut – principalmente na forma.
Titulo Original: Les Quatre Cents Coups, 1959
Titulo nacional: Os Incompreendidos
Após três curtas, Truffaut chega ao seu primeiro filme, “Les Quatre Cents Coups”, expressão francesa semelhante a “Pintar o Sete” ou “Causar Muito” – entre os nomes pensados para o filme, “L’Âge Ingrat” (“A Idade Ingrata”) soa mais representativo. “Les Quatre Cents Coups” conta a história de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), um jovem de 12 anos crescendo na Paris dos anos 50. A dificuldade de se concentrar na sala de aula (com professores rígidos e impacientes) e a inexperiência dos pais em casa (ele é filho de Gilberte, assumido pelo padrasto Julien) confundem a cabeça do menino, que começa a faltar à aula, mentir e fazer pequenos roubos – entre sessões de cinema. Sem saber o que fazer com o garoto, os pais decidem entrega-lo ao Estado, que o coloca em um reformatório juvenil. Escrito a quatro mãos por Truffaut e Marcel Moussy, “Les Quatre Cents Coups” é um dos mais belos filmes feitos sobre a passagem da infância para a adolescência, lançando luz sobre a incompetência de instituições como Família e Escola. É, sobretudo, um filme sobre inocência, que muitos têm como uma autobiografia do próprio cineasta, que afirmou ter vivido várias das situações da história. Filme preferido de Akira Kurosawa, “Les Quatre Cents Coups” deu a Truffaut o prêmio de Melhor Diretor em Cannes e a indicação na categoria Melhor Roteiro do Oscar de 1960. O personagem Antoine Doinel irá retornar algumas vezes na obra de Truffaut.
Titulo Original: Tirez sur le Pianiste, 1960
Titulo Nacional: Atirem no Pianista
Segundo longa-metragem da carreira de François Truffaut, “Atirem no Pianista” conquistou a admiração de muitos – Paul Thomas Anderson incluso. Com roteiro novamente assinado por Truffaut e Marcel Moussy (baseado no romance “Down There”, de David Goodis), a história homenageia (com boa dose de humor) os filmes policiais B norte-americanos, mas a versão do cineasta francês é descontraída e centrada nos dramas e romances (e numa fixação por entender as mulheres) dos personagens (sem abdicar de um leve suspense). O ator e cantor Charles Aznavour interpreta (muito bem) o papel de Eduard Saroyan, um pianista que recusa a fama após ser “abandonado” pela esposa e passa seus dias tocando piano em uma espelunca de quinta categoria enquanto divide suas noites com a vizinha, a bela prostituta Clarisse (Michèle Mercier) e o irmão menor. A vidinha segue esse ritmo até o pianista se apaixonar pela garçonete Lena (Marie Dubois), se envolver em uma briga com o dono da espelunca e ter de fugir de mafiosos que querem a pele de seu irmão. Como tragédia pouca é bobagem e o amor é sempre uma vítima poética, o trecho final de “Atirem no Pianista” – filmado na neve e em preto e branco – soa extremamente lírico (e triste). Financeiramente bem sucedido, o filme desagradou alguns críticos, que esperavam uma obra a altura da estreia. Ela viria dois anos depois…
Titulo Original: Tire-au-flanc 62, 1961
Titulo Nacional: não lançado no Brasil
Adaptação da peça de André Mouëzy-Eon e André Sylvane, que já havia rendido um filme de Jean Renoir em 1928, “Tire-au-flanc 62” traz François Truffaut na posição de co-diretor, auxiliando o amigo Claude Givray, que assina a direção e, futuramente, auxiliaria no roteiro de “Beijos Proibidos” (1968) e “Domicilio Conjugal” (1970). A trama é praticamente um “M.A.S.H.”, de Robert Altman, versão Nouvelle Vague, focando comicamente em um grupo de rapazes que acaba de ser admitido em um quartel. O principal deles, Jean Lerat de la Grinotière (Christian de Tillière), é filho de uma família abastada de Paris, e o choque da cultura refinada do rapaz com o cotidiano hierárquico e sacana do exército rende ótimas gags, em uma época que permitia o bullying. Algumas das piadas funcionam, outras não, mas, para a época, “Tire-au-flanc 62” soava um respiro de originalidade cinematográfica. Há manipulação de tapes, inversão de cenas, sobreposição de fotogramas e pequenos toques de magia cinematográfica em um filme deliciosamente inocente. Um passatempo divertido (principalmente para aqueles que conhecem a rotina de um quartel militar).
Titulo Original: Jules et Jim, 1962
Titulo Nacional: Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois
Uma das obras primas da Nouvelle Vague, “Jules et Jim” é baseado no romance semi autobiográfico de Henri-Pierre Roché sobre sua relação com o escritor Franz Hessel e sua esposa, Helen Grund. Esse romântico e trágico ménage à trois não consumado (em nenhum momento, Jim/Henri e Jules/Franz se deitam ao mesmo tempo com Catharine/Helen) ganhou força com um grupo espetacular de atores e uma inventiva forma de filmar conduzida por Truffaut (a cena das fotografias é, até hoje, admirável). A trama começa em Paris pouco antes da Primeira Grande Guerra. O francês Jim (Henri Serre) e o austríaco Jules (Oskar Werner) se aproximam devido ao gosto pela literatura (ambos são poetas) e pelas mulheres (embora Jules seja tímido, e não consiga acompanhar o número de casos amorosos do amigo). A amizade dos dois é colocada em teste quando surge em cena a encantadora Catherine (Jeanne Moreau), que conquista Jules (sob o olhar apaixonado do amigo). A amizade perpetua, o romance de Jules e Catharine, não, permitindo a Jim mostrar o seu amor (apoiado por Jules). O descompasso poético do primeiro monólogo do filme (Você disse: “Eu te amo” / Eu disse: “Espere” / Eu quase disse: “Sou sua” / Você disse: “Vá”) é quase uma tábua dos mandamentos do amor, que conquistou fãs pelo mundo (apesar de ser ignorado por festivais e pelo Oscar), mas muito pouca gente – através das décadas – prestou atenção ao seu doloroso recado (“2046”, de Wong Kar Wai, é quase uma defesa apaixonada do monólogo). Um clássico.
Titulo Original: Antoine et Colette, 1962
Titulo Nacional: Antoine e Colette
O filme “L’Amour à Vingt Ans” (“Amor aos 20 Anos”) reunia cinco então jovens diretores de cinco países e suas visões pessoais do amor em médias metragens: François Truffaut (França), Renzo Rossellini (Itália), Shintaro Ishihara (Japão), Marcel Ophüls (Alemanha) e Andrzej Wajda (Polônia). Os cinco filmes trazem fotos de Cartier-Bresson e o jazz de Georges Delerue na trilha sonora. “Antoine et Colette” abre a fita, e Truffaut recupera o personagem Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), agora com 17 anos e vivendo uma vida independente em Paris após cumprir pena em um rígido reformatório. Ele trabalha numa gravadora e continua se encontrando com René (Patrick Auffay), seu jovem parceiro de aventuras em “Les Quatre Cents Coups”. Doinel se apaixona por uma bela jovem, Colette, e confunde amizade com romance, enfrentando o descaso da garota. Truffaut expõe a dificuldade de entender o sexo oposto e, por conseguinte, os relacionamentos, fixação que será mais bem desenvolvida em filmes posteriores, e que soa por vezes misógina em suas primeiras obras, como no diálogo dos dois mafiosos ao sequestrarem Charles e Lena em “Atirem no Pianista” (1960) e, principalmente, na cena de “Jules e Jim” em que Jim encontra um amigo num bar, e este apresenta sua nova namorada: “Ela é muda. Oca. Tudo vazio aqui dentro”, diz ao apontar pra cabeça da jovem. “Mas é bela”, diz Jim. “Sim, linda. É só sexo”. Em “Antoine et Colette”, há a sensação de que Colette “deveria” atender aos desejos de Antoine, como se seu pouco caso fosse um crime à sua paixão. Romântico exagerado, o problema de Doinel é ele mesmo. Mas ele terá tempo para aprender (Truffaut irá usar o personagem em mais três filmes). “Antoine e Colette” está disponível na versão em DVD de “Os Incompreendidos”, lançada pela Versátil.
Titulo Original: La Peau Douce, 1964
Titulo Nacional: Um Só Pecado
Pierre Lachenay tem uma família feliz, daquelas que todos sonham ter. Ele vive em Paris e é um escritor de sucesso além de diretor de uma revista literária. Porém, em uma viagem para uma palestra em Lisboa, Lachenay se vê seduzido por uma aeromoça (tipo “Belinda”, de Nick Hornby e Ben Folds, sabe? Mas sem champagne) e inicia um romance extraconjugal. Pierre começa então o decantado ciclo tortuoso de ter uma amante: quer, mas não pode estar com ela em público; a esposa começa a desconfiar; e a própria amante acredita que ele tem vergonha dela. Jean Desailly está ótimo no papel principal e a irmã de Catherine Deneuve, a tão bela quanto Françoise Dorléac (no papel da aeromoça Nicole), brilha no papel de femme fatale inocente. Truffaut parece mais maduro e sério no modo de filmar neste que é seu quarto longa, dispensando invencionices (que, de certa forma, conferiram frescor aos filmes anteriores), mas o roteiro óbvio e moralista (assinado pelo próprio cineasta ao lado de Jean-Louis Richard) não ajuda: o homem trai e precisa lidar com a culpa. Como prêmio pela traição é abandonado pela amante e vingado pela esposa – em um tradicional final trágico como o de centenas de filmes franceses. Dois anos após o imenso sucesso de “Jules e Jim”, Truffaut fracassou nas bilheterias com um filme dramático e banal que tropeça na obviedade.
Titulo Original: Fahrenheit 451, 1966
Titulo Nacional: Fahrenheit 451
Mudança dupla na carreira de Truffaut, “Fahrenheit 451” é o único filme em língua inglesa de toda a carreira do diretor assim como o seu primeiro longa colorido e sua contribuição ao gênero futurista. Baseado no clássico romance de mesmo nome assinado por Ray Bradbury em 1953, “Fahrenheit 451” imagina uma sociedade futurista cuja governo opressor mantém o controle da opinião pública através da televisão enquanto a função dos bombeiros é queimar livros, já que estes são proibidos, pois fazem as pessoas pensarem e as entristecem. Para ambientar a história, Truffaut recorreu a cenários modernistas como o do conjunto habitacional Alton Estate, em Londres, e um bangalô em Edgcumbe Park, em Berkshire, usado como casa do personagem principal, Montag, interpretado por Oskar Werner (o Jules de “Jules et Jim”) – o monotrilho Safege fazia parte de uma pista de testes na França. A trama gira em torno de Montag, um bombeiro especializado em incinerar livros, que, provocado por uma professora, começa a lê-los, despertando sua consciência. Julie Christie interpreta dois papeis no filme (e não convence em nenhum dos dois), o da professora e o da esposa de Montag. Belíssima fábula dramática, “Fahrenheit 451” perde bastante em relação ao livro, e em seu diário de filmagens, Truffaut o descreve como sua “mais triste e difícil” produção. A crítica foi cruel definindo “Fahrenheit 451” como “chato, pretensioso e pedante”, o que é exagero. “Fahrenheit 451” peca por falta de agilidade do roteiro, mas ainda assim tem seus momentos, como a belíssima cena final.
Titulo Original: La Mariée Était en Noir, 1967
Titulo Nacional: A Noiva Estava de Preto
Não se engane: você já assistiu essa história. É mais ou menos assim: noiva vê seu futuro marido ser assassinado na porta da igreja, e com sede de vingança parte atrás de todos os culpados – com um caderninho à mão – para fazer justiça. Sim, é a mesma história de “Kill Bill” só que filmada por François Truffaut 35 anos antes (Quentin Tarantino insiste em dizer que não conhecia o filme de Truffaut quando fez seu elogio à vingança – acredite quem quiser). O diretor francês concentra seu foco no charme encantador de Jeanne Moreau e na trilha sonora (muitas vezes invasiva) de Bernard Hermann (de “Um Corpo que Cai”, 1958, de Hitchcock), e o resultado belisca a comédia muito mais do que o suspense. Hitchcock é influência direta, mas “A Noiva Estava de Preto” não consegue soar uma homenagem à altura do mestre do suspense. Falta ritmo ao roteiro, que é reverente em excesso e entrega ao espectador mais do que deveria impossibilitando o jogo apaixonado da decodificação. A crítica detonou, e Truffaut concordou com o achincalhe tanto que, em 1983, quando perguntado se havia algum filme que ele gostaria de refazer, apontou “A Noiva Estava de Preto” como o patinho feio de sua carreira – muito embora o filme tenha sido um enorme sucesso de bilheteria. Interessante, porém, é perceber aqui passagens de “O Homem Que Amava as Mulheres”… dez anos antes.
Titulo Original: Baisers Volés, 1968
Titulo Nacional: Beijos Proibidos
Terceiro volume da saga Antoine Doinel (sempre com Jean-Pierre Léaud no papel), “Beijos Proibidos” flagra o desajeitado anti-herói no momento em que ele acaba de ser dispensado do quartel por indisciplina, e decide aproveitar a vida nos primeiros minutos em que deixa o exército: vai direto para um puteiro antes mesmo de procurar a garota que ama. Dali ele parte para os braços de sua amada, a violinista Christine Darbon (Claude Jade), enquanto pula de emprego em emprego tentando se acertar na vida. Tropeça na ex-paixão Colette (Marie-France Pisier), agora mãe e acompanhada do marido, que reclama de seu sumiço, e, contratado pelo dono de uma loja para ser um espião no ambiente do trabalho e descobrir o que os outros funcionários falam dele, se apaixona e seduz a esposa do patrão (a bela Delphine Seyrig). Tratando com encantadora leveza as confusões de Doinel, Truffaut (que assina o roteiro junto a Claude de Givray e Bernard Revon) cria uma obra delicada e encharcada de lirismo que ilumina a passagem da adolescência para a vida adulta. “Beijos Proibidos” é absolutamente perfeito como recriação e atualização de “Os Incompreendidos”. Grande sucesso de bilheteria, o filme foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, mas perdeu para o russo “Guerra e Paz”, adaptação da obra clássica de Tolstói dividida em quatro partes – totalizando 431 minutos de projeção. Sem problema, logo Truffaut terá sua estatueta…
Titulo Original: La sirène du Mississippi, 1969
Titulo Nacional: A Sereia do Mississippi
Do mesmo escritor Cornell Woolrich, do qual Truffaut já havia adaptado “A Noiva Estava de Preto” dois anos antes, surge “A Sereia do Mississippi”, uma história que mistura suspense, tragédia, romance, aventura e até comédia – mas não fique tão animado. A trama conta a história de Louis Mahé (Jean-Paul Belmondo), um rico proprietário de plantações de tabaco em uma ilha do Oceano Índico. Após perder o grande amor de sua vida, Mahé não consegue se aproximar de outra mulher, e opta por tentar encontrar uma esposa em anúncios de classificados. Após longa troca de cartas com uma pretendente, o casamento é marcado, porém, quando encontra a noiva no porto, Julie Roussel (Catherine Deneuve) é bem diferente do que aparenta nas fotos – e para melhor. Ainda assim, Louis segue em frente, casa-se com ela e… cai no golpe do baú. Essa é apenas a primeira de uma sequencia de reviravoltas surreais que tentam dar sentido a uma trama tola que desperdiça dois ícones do cinema. Novamente, a mulher é a grande vilã da história e Truffaut aproveitou o personagem de Deneuve, que não merece o belo corpinho que desfila, para despejar sua ira contra as garotas fúteis: “Você é apenas uma numa crescente multidão de garotas que são um tipo de parasita, são galinhas, tolas, com as cabeças cheias de lixo ou ar”. Alguém partiu o coração do cineasta e é uma pena que esse trauma tenha rendido um filme tão fraco, confuso, desleixado e pouco inspirado como “A Sereia do Mississippi”, que Truffaut dedicou a Jean Renoir. O mestre merecia coisa muito melhor.
Titulo Original: L’Enfant Sauvage, 1970
Titulo Nacional: O Garoto Selvagem
Truffaut retorna ao delicado universo de crianças frustradas de “Os Incompreendidos” em seu nono filme, “O Garoto Selvagem”, que conta a história real de um menino de Aveyron, cidade próxima a Toulouse, que foi encontrado em 1800 em uma floresta após ter vivido grande parte de sua infância sozinho no meio da mata (a estimativa dos médicos é que, quando foi encontrado, Victor, como ele viria a ser chamado, já tinha 11 ou 12 anos). O roteiro toma por base os relatos do diário do Dr. Jean Marc Gaspard Itard, que acompanhou o caso, e Truffaut decidiu assumir o papel do médico no filme. O ponto de partida da trama é a captura de Victor na floresta, e sua transferência para uma escola de surdo-mudos em Paris. Sua difícil adaptação faz com que Dr. Itard peça a custódia do menino, e o leve para sua casa começando um processo de educação e acompanhamento minuciosamente detalhado. À frente da câmera, Truffaut deixa de lado invencionices e concentra-se na história (adaptada por ele próprio ao lado de Jean Gruault) resultando em um quase documentário simulado sobre a pesquisa do Doutor Itar e a evolução de Victor, o que, de certa forma, defende que a civilização do garoto selvagem é melhor que sua vida na floresta – um pensamento contrário à teoria do “bom selvagem” que decepcionou alguns fãs de Truffaut, que não entendiam como o garoto rebelde de “Os Incompreendidos” poderia se transformar no ser domesticado de “O Garoto Selvagem”. Imenso sucesso na França no ano de seu lançamento, desde então, o filme (e o caso) suscita(m) diversas discussões.
Titulo Original: Domicile Conjugal, 1970
Titulo Nacional: Domicílio Conjugal
Antoine Doinel está de volta. Dois anos se passaram desde “Beijos Proibidos”, e este quarto capítulo da saga Doinel começa com o anti-herói casado com Christine Darbon. O casal vive em uma vilinha bastante particular em Paris (que remete a Fellini), daquelas que todos sabem um da vida do outro, e que destacam moradores exóticos (em momentos deliciosamente cômicos) como um cantor de ópera e sua esposa, um velho solitário, uma garçonete apaixonada por Doinel e um homem misterioso que carrega o singelo apelido de “O Estrangulador”. Antoine “pinta” flores para a floricultura da esquina enquanto Christine leciona violino. Tudo corre bem, com a vida monótona da classe média se desdobrando em passagens hilárias entre quatro paredes, que se estendem pelo cotidiano da vizinhança, mas o eterno adolescente Doinel parece ainda não ter encontrado seu verdadeiro amor (ou não ter percebido que o encontrou, mesmo ele estando do outro lado da cama), embora Christine esteja prestes a dar a luz ao primeiro filho do casal. Como não poderia deixar de ser, Doinel muda novamente de profissão, e no novo emprego conhece Kyoko, uma bela japonesa com quem vive um (novo) romance. Apaixonado, Doinel tropeça no adultério e coloca toda sua vida futura a perder – de forma romântica, claro. Responsável pelo roteiro ao lado de Claude de Givray e Bernard Revon, Truffaut parece à vontade ao desenhar desventuras para seu personagem incorrigível neste filme que mantém a aura romântica e moleque de Antoine Doinel.
Titulo Original: Les Deux Anglaises et le Continent, 1971
Titulo Nacional: Duas Inglesas e o Amor
Eis um drama de costumes que elenca diferenças pitorescas entre franceses e ingleses enquanto exprime a essência do cinema de Truffaut: da mística do francês que precisa amar todas as mulheres (em uma passagem impagável, a mãe do jovem rapaz fica enfurecida ao pensar que ele pode estar apaixonado apenas por uma das duas inglesas do título, quando ele deveria estar apaixonado pelas duas), nos desencontros românticos (são tantos em “Duas Inglesas e o Amor” que corações fracos podem não resistir), na paixão pela literatura (o filme é uma adaptação do livro “Les Deux Anglaises Et le Continent”, livro de 1956 de Henri-Pierre Roche, também autor do romance “Julie et Jim”) e pela confusão que as mulheres podem fazer na vida de um homem. Em “Julie et Jim”, é uma mulher dividida entre dois homens. Aqui temos um homem dividido entre duas belas mulheres… inglesas. E irmãs. Talvez muitos optassem por decidir na moedinha ou mesmo esquecessem-se da ruiva Muriel (Stacey Tendeter) e se dedicassem à morena Ann (Kika Markham), mas Claude (Jean-Pierre Léaud, ótimo) não vê as coisas de forma tão simples. O roteiro (adaptado por Truffaut e Jean Gruault) brinca masoquistamente (será assim o amor?) compondo um triângulo amoroso entre os três personagens, que se apaixonam, sofrem, se deprimem e carregam a dor e a delícia do romance por quase 20 anos. Sofrer faz parte (mas precisa tanto?). Muitos franceses devem ter atravessado o Canal da Mancha a nado após assistir “Duas Inglesas e o Amor”…
Ps. Tanto as cenas no País de Gales quando no Museu Rodin são belíssimas…
Titulo Original: Une belle fille comme moi, 1972
Titulo Nacional: Uma Jovem Tão Bela Como Eu
Apontado por muitos como o filme mais descompromissado de Truffaut, “Uma Jovem Tão Bela Como Eu” é uma comédia leve repleta de ironia e farsa que narra a história de um sociólogo inocente (André Dussollier) que pretende escrever uma tese sobre mulheres criminosas e, para isso, entrevista uma presidiária (Bernadette Lafont, de “Os Pivetes”) esperta e maliciosa. Mais uma vez o sexo feminino é desenhado de forma misógina por Truffaut, ainda que com uma dose de humor extra, como na hora que o sociólogo Stanislas Prévine chega a penitenciaria e diz que quer começar o estudo pela prostituta Camilla Bliss: “Mas ela é uma putinha desinteressante, Sr. Previne”, avisa a delegada de plantão. “Aqui temos casos muito interessantes como a assassina que viajou 450 quilômetros para matar um homem, outra que cortava homens com uma serra elétrica e uma gigante que estrangulou o marido com a mão esquerda, porque era canhota”. Ah, sempre as mulheres. Ainda assim, o encontro de duas personalidades tão distintas permite a Truffaut brincar com a imaginação do espectador. Camille, a presidiária, conta uma história em off para Stanilas Previne, o sociólogo, mas as imagens em flashback mostram outra situação – com muito humor. Inspirado no livro “Such a Gorgeous Kid Like Me”, de Henry Farrell, “Uma Jovem Tão Bela Como Eu” pode ser um dos filmes mais despretensiosos de Truffaut, mas merece uma espiadela. Vai que alguém encontre uma Bernadette Lafont pelo caminho.
Titulo Original: La Nuit Américaine, 1973
Titulo Nacional: A Noite Americana
Quiseram os deuses da sétima arte que a obra prima de François Truffaut fosse justamente uma declaração de amor ao cinema. “La Nuit Américaine” (nome dado ao efeito que diretores usam para filmar cenas noturnas durante o dia) conta a história metalinguística de uma equipe de cinema trabalhando na produção de um filme, “A Chegada de Pamela”, e o espectador é apresentado a todos os percalços que movem uma grande filmagem. Truffaut convida o público a conhecer a artificialidade do cinema ao mesmo tempo em que faz declarações comoventes sobre a sétima arte, como em uma cena recorrente que exibe um sonho do diretor Ferrand (interpretado pelo próprio Truffaut) que se vê ainda menino roubando fotos de “Cidadão Kane”, ou então outra em que a assistente Joelle (Nathalie Baye em começo de carreira), ao descobrir que uma integrante da equipe tinha fugido com um dublê, desabafa: “Eu abandonaria um cara por um filme, mas nunca abandonaria um filme por um cara”. As cenas antológicas são tantas que se acumulam em 115 minutos absolutamente líricos. Deslumbrante, a norte-americana Jacqueline Bisset aceitou o papel por um salário menor (a produção era modesta) apenas para estrelar um filme de Truffaut e arrebata com seu personagem tanto quanto Valentina Cortese (magnifica como Severine), Jean-Pierre Aumont (Alexandre) e Jean-Pierre Léaud (Alphonse). “A Noite Americana” é daqueles filmes para ver, rever e assistir todos os anos. Filme de maior sucesso de Truffaut na América, “A Noite Americana” ganhou o Oscar de Filme Estrangeiro em 1974, sendo que Truffaut ainda foi indicado na categoria Diretor (perdeu para Francis Coppola, por “O Poderoso Chefão 2”) e Roteirista (Valentina foi indicada em Atriz Coadjuvante). De quebra, Truffaut acerta a mão em sua questão sobre misoginia: “Todo mundo (homens e mulheres) e (ao mesmo tempo) ninguém é mágico”. Clássico.
Titulo Original: L’Histoire d’Adèle H., 1975
Titulo Nacional: A História de Adèle H.
Dois anos após arrebatar um Oscar, Truffaut, inspirado pela facilidade que encontrou ao filmar a história verídica do menino de Aveyron em “O Garoto Selvagem” (1970), retoma o modelo em “A História de Adèle H.”, trama baseada no diário de Adèle Hugo, uma das filhas do lendário escritor e ativista francês Victor Hugo, sobre sua paixão avassaladora por um oficial britânico. O roteiro, escrito a oito mãos, transforma o personagem de Adèle em uma insuportável garota mimada, entregue a um amor doentio e não correspondido, e fecha o cerco na autodestruição de Adèle, que abandona a família na Europa em 1864 e atravessa o oceano em direção aos Estados Unidos atrás daquele que julga ser o homem de sua vida entrando numa espiral de paixão não correspondida e neurose. Truffaut investiga a loucura que a paixão pode proporcionar a uma pessoa (Adèle) ao mesmo tempo em que exibe o descaso da outra (o oficial), numa proposta que remete ao livro de Milan Kundera, “A Insustentável Leveza do Ser”. Isabelle Adjani, então com 20 anos, foi indicada ao Oscar por sua atuação, perfeita, mas o resultado está longe do brilho do Truffaut anterior. O filme e a absoluta loucura do personagem cansam, mas ainda assim é possível sentir compaixão por Adèle (ainda que entre bocejos). Funciona como retrato de época (o amor por dote, a virgindade como honra) e vale ressaltar a grande atuação de Isabelle Adjani, mas (ainda que intenso e perfeito como retrato autodestrutivo do amor) é uma obra menor do cineasta.
Titulo Original: L’argent de Poche, 1975
Titulo Nacional: Na Idade da Inocência
A pequena cidade de Thiers, no interior da França, abriga um filme delicado centrado em pequenas histórias infantis que François Truffaut recortava de jornais (o roteiro é escrito pelo diretor e sua fiel colaboradora Suzanne Schiffman). Entram em cena também memórias do cineasta compondo um tocante painel infantil recheado de passagens líricas que encontram paralelo em filmes de Fellini (“Amarcord”, 1973) e Woody Allen (“A Era do Rádio”, 1987) – e do próprio Truffaut (“Os Incompreendidos”, 1959). Aqui estão presentes as desventuras de garotos (o elenco é composto quase que por apenas atores não profissionais) que olham uma bela professora tomar banho (“Eles se masturbam no fundo da sala”, ela reclama para outro professor. “Isso é tradição”, responde ele, despistando: “Também fazem isso na minha aula”), o drama do primeiro beijo, o garoto pobre que apanha em um lar abusivo, a paixão pela bela mãe do amigo e, claro, pelo cinema (a história de Oscar Doinel – veja só – filho de uma francesa com um inglês, é divertidíssima). “As crianças são mais fortes que os adultos”, diz um personagem em certo momento, mas para Truffaut elas ainda estavam sozinhas sem ter leis que as amparassem. O trecho final do filme merecia ser exibido em escolas. Ou melhor: em casamentos… afinal, tudo começa em casa. Imenso sucesso na França, “Na Idade da Inocência” é um filme mágico, poético e delicadamente surpreendente.
Titulo Original: L’Homme qui Aimait les Femmes, 1977
Titulo Nacional: O Homem Que Amava as Mulheres
Bertrand tem 41 anos e nenhum amigo homem. Às 18h, quando deixa o trabalho, dedica sua vida somente à admiração das mulheres. Nos primeiros 30 minutos, “O Homem Que Amava as Mulheres” carrega um q de comédia leve, poética, sobre a paixão do masculino pelo feminino. Porém, Truffaut aprofunda seu personagem conquistador (que chega a dormir com seis mulheres em doze dias) com tanta intensidade que consegue tocar várias faces do amor. Eis um filme mais didático e sombrio sobre relacionamentos que todas as comédias românticas americanas juntas (Woody Allen incluso). Após um começo de carreira que carregava tons de misoginia, Truffaut finalmente consegue entender as mulheres (e a si mesmo): “A verdade é que elas querem o mesmo que eu: amor”, diz seu personagem. E amor, todos sabemos (inclusive Bertrand), é um jogo. Bertrand concorda, mas só pede que o jogo da conquista não se transforme em um jogo por poder. “O Homem Que Amava as Mulheres” soa um acerto de contas familiar (no filme, as lembranças de Bertrand exibem uma mãe que despedaça corações frágeis) que culpa a separação dos pais pelos traumas. Personagem interessantíssimo, Bertrand ama todas as mulheres (e como não amar?), mas não consegue se apaixonar deixando um rastro de corações partidos pelo caminho – adaptando Exupéry: você se torna responsável por quem você fez sofrer – até o final inesperado. E brilhante.
Titulo Original: La Chambre Verte, 1978
Titulo Nacional: O Quarto Verde
Adaptação mórbida da obra “O Altar dos Mortos”, de Henry James (e outros dois contos: “The Beast in the Jungle” e “The Way It Came”), “O Quarto Verde” é um dos filmes mais densos da carreira de Truffaut. Ele começou a trabalhar no roteiro em 1970, após um rompimento dramático com Catherine Deneuve, e passou anos pensando fixamente na história chegando a visitar a casa de Henry James em Boston, nos Estados Unidos. O próprio diretor atua como personagem principal, Julien Davenne, um redator de obituários de um jornaleco interiorano que, assim que sua esposa morre, cria um altar em casa para continuar a adorando. O altar pega fogo e (mesmo sendo ateu – há uma discussão exemplar com um padre no começo do filme) ele consegue uma capela em um cemitério, onde passa a louvar não só a esposa, mas também amigos e ídolos mortos. A aparição de uma nova mulher (Nathalie Baye) chega a dar uma chacoalhada no coração de Julien, mas nada que os fantasmas – tão queridos por Julien – não consigam domar. “O Quarto Verde” é uma ode à morbidez, uma crítica pesada àqueles que se esquecem dos seus. Assim que o filme ficou pronto, Truffaut mostrou a amigos próximos. Isabelle Adjani chorou na sessão, emocionada. Alain Delon elogiou e Éric Rohmer o achou comovente. A crítica seguiu o tom elogioso dado pelos amigos, mas não é surpresa que um tema tão nebuloso tenha tornado “O Quarto Verde” o maior fracasso financeiro da carreira de Truffaut, levando-o a romper com a United Artists, com quem trabalhara nos últimos 10 anos, e buscar uma maneira rápida de recuperar o dinheiro perdido. A solução: reviver Doinel.
Titulo Original: L’amour en Fuite, 1979
Titulo Nacional: Amor em Fuga
Para Truffaut, a saga de Antoine Doinel já havia sido encerrada em “Domicilio Conjugal” (1970), mas após o fracasso de “O Quarto Verde”, o cineasta decidiu ressuscitar o alter-ego para levantar um grana rapidamente, o que rendeu este belíssimo fechamento, com dezenas de cenas em flashback que pescam momentos dos quatro filmes anteriores buscando atualizar o espectador e contextualizar a história. “Amor em Fuga” flagra Doinel no momento em que ele assina o divórcio de Christine, e a letra da canção tema do filme, usada na abertura e no encerramento, dá o mote: “Toda minha vida é correr atrás de coisas que me escapam: jovens perfumadas, buques de rosas, lágrimas”. Antoine está novamente apaixonado (embora não desista das prostitutas), agora pela linda Sabine (Dorothée), mas Colette (Marie-France Pisier) novamente cruza o seu caminho, e bagunça tudo, reforçando a certeza de que, assim que um casal se casa, tudo é “decepção, desilusão, separação”. Entre destroços é possível vislumbrar o amadurecimento psicológico de Truffaut, que reforça a certeza de que o problema em sua vida sempre foi materno (o que, de certa forma, resultou na misoginia inicial), a ponto de um dos amantes de Gilberte Doinel em “Os Incompreendidos” reencontra-lo em “Amor em Fuga” e dizer: “Você é muito parecido com sua mãe” (enquanto repete uma cena reveladora de “O Homem Que Amava as Mulheres”). Doinel, por influência familiar (o trauma da separação, a convivência com os amantes da mãe, o abandono), parece condenado a viver os primeiros dias de um romance, e jogar o futuro pela janela, mas Truffaut ainda lhe dá uma última chance de felicidade neste belíssimo encerramento.
Titulo Original: Le Dernier Métro, 1980
Titulo Nacional: O Último Metro
Amadurecido cinematograficamente e psicologicamente, François Truffaut chega aos anos 80 vivendo um dos melhores momentos de sua carreira como diretor – e o fracasso comercial de “O Quarto Verde” não tira os grandes méritos do filme. “O Último Metrô”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (perdeu para o russo “Moscou Não Acredita em Lágrimas”) e vencedor em 10 das 12 categorias a que fora indicado ao Cesar, é talvez uma de suas obras mais tocantes e mais bem acabadas. O começo é de um lirismo único e Truffaut, ao lado de Suzanne Schiffman e Jean-Claude Grumberg, cria um roteiro cuidadoso e profundo, que respeita os personagens enquanto vai revelando cuidadosamente o conteúdo do filme. Assim como “Noite Americana” é uma ode ao cinema, “O Último Metrô” é uma declaração de amor ao teatro, que impressiona nos mínimos detalhes. A história se passa em 1942, e Paris está ocupada pelos alemães, que instauraram em metade da cidade um toque de recolher, o que faz com que os parisienses valorizem o último metrô. Marion Steiner (Catherine Deneuve) é a esposa de um diretor/dono de teatro, que mantém um espaço em Montmartre e que precisou fugir por ser judeu. Seu auxiliar dirige a peça que ele deixou enquanto a revolução ecoa em cada esquina da cidade. Truffaut faz uma crítica severa ao antissemitismo e, principalmente, a intolerância numa obra que mostra a evolução dramática de Deneuve ao mesmo tempo em que revela um Gérard Depardieu perfeito em um dos papeis principais. Destaque para o lindo fechamento em um daqueles filmes absolutamente perfeitos e impecáveis.
Titulo Original: La Femme d’à Coté, 1981
Titulo nacional: A Mulher do Lado
Das armadilhas do destino. Bernard (Gérard Depardieu, excelente) é casado com Arlette (Michèle Baumgartner) e pai do pequeno Thomas. A família feliz vive numa vilazinha afastada do centro de Grenoble, cidade universitária localizada no sopé dos Alpes franceses. A casa da frente, que estava vazia, recebe novos inquilinos, e a vida de Bernard irá mudar radicalmente assim que ele descobrir que o novo casal vizinho – Mathilde (Fanny Ardant) e seu marido Philippe (Henri Garcin) – marcara seu reencontro com uma antiga paixão mal resolvida. Paralelamente, a trama apresenta Madame Odile Jouve (Véronique Prata), uma senhora que, 20 anos antes, se atirou do sétimo andar quando soube que seu amante iria se casar com outra. “Os homens não sabem nada do amor: Nós somos amadores”, assume um personagem em certo momento desse drama romântico com requintes de suspense, mas o que Truffaut exibe é que nem mulheres, nem homens, sabem algo do amor. O cineasta (que assina o roteiro novamente com Jean Aurel e Suzanne Schiffman) compara: “Ouça os gatos”, diz Arlette. “Estão brigando”, responde Bernard. “Não. Estão fazendo amor. Tão selvagem”. Para Truffaut, o amor torna o ser-humano selvagem, incapaz de coordenar as ideias, de agir sensatamente. Desta vez, o cineasta não diferencia sexo nem culpa a mulher, pois todos somos “culpados”, com apoio da música pop. Mathilde resume: “As canções dizem: ‘Você não deve me deixar / Sem você não tenho vida’ ou ‘Sem amor não somos nada’”, quase citando Rob Fleming, que certa vez filosofou: “Ouvimos música pop porque somos tristes ou somos tristes porque ouvimos música pop?”. “A Mulher do Lado” ilumina o lado escuro do amor, e o que se vê quando as luzes se acendem pode ser entendido tanto como amor quanto doença. Outro grande filme da fase madura de Truffaut, que aproveita para valorizar as morenas em detrimentos das loiras (símbolos sexys na obra de seu cineasta predileto, Hitchcock).
Titulo Original: Vivement Dimanche!, 1983
Titulo Nacional: De Repente, num Domingo
Em seu último filme, lançado em outubro de 1983 (o cineasta viria a morrer em decorrência de um câncer cerebral em outubro do ano seguinte), Truffaut realiza sua melhor declaração de amor ao cinema de Hitchcock num filme que fica abaixo dos predecessores, mas acima de outras obras de suspense presentes em sua filmografia (principalmente as do final da década de 60). O roteiro assinado novamente por Jean Aurel, Suzanne Schiffman e pelo próprio cineasta tem como base o livro “The Long Saturday Night”, de Charles Williams, e conta a história do dono de uma imobiliária que é acusado de assassinar o amante de sua esposa e, depois, a própria esposa. Julien Vercel (Jean-Louis Trintignant) tenta provar sua inocência, e recebe a ajuda de sua secretaria, a qual acabara de demitir, Barbara Becker (Fanny Ardant). O roteiro, engenhoso, brinca de colocar várias peças e personagens em uma sala repleta de espelhos, contando com a cumplicidade do espectador, que vai montando o quebra-cabeça acreditando no que os olhos pensam ver. Há certo descaso em particular com o personagem de Fanny Ardant, principalmente na primeira parte, o que torna difícil aceitar as ações que se desenrolam na segunda metade. A impressão é a de que a direção de atores foi prejudicada em prol da valorização do tom farsesco da trama, o que faz parecer forçado o encaixe de algumas peças no decorrer da história. Interessante a provocação de Truffaut para com o mestre na escolha de uma morena para o papel principal (e brincar com a escolha em alguns diálogos) e a escolha pelo PB após 13 anos filmando em cores. Funciona como passatempo.
François Truffaut, de 01 a 25, por Marcelo Costa
01) A Noite Americana, 1973
02) O Último Metrô, 1980
03) Amor em Fuga, 1978
04) O Homem que Amava as Mulheres, 1977
05) Na Idade da Inocência, 1976
06) Os Incompreendidos, 1959
07) Jules e Jim, 1962
08) Beijos Proibidos, 1968
09) Domicílio Conjugal, 1970
10) Duas Inglesas e o Amor, 1971
11) Atirem no Pianista, 1960
12) A Mulher do Lado, 1981
13) Uma Jovem Tão Bela Como Eu, 1972
14) O Quarto Verde, 1978
15) Os Pivetes, 1958
16) De Repente, Num Domingo 1983
17) Antoine e Colette, 1962
18) O Garoto Selvagem, 1970
19) Tire-au-flanc 62, 1961
20) A Noiva Estava de Preto, 1967
21) Fahrenheit 451, 1966
22) Um Só Pecado, 1964
23) A História de Adèle H., 1975
24) A História da Água, 1958
25) Sereia do Mississippi, 1969
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Anna Karina com Godard: “Uma Mulher é Uma Mulher”, “Viver a Vida” e “Bande à Part” (aqui)
– Três filmes: “Acossado”, “Ascensor para o Cadafalso” e “O Joelho de Claire” (aqui)
– Filmografia comentada: os 26 filmes de Billy Wilder (aqui)
– Três filmes de Jean Renoir: “A Grande Ilusão”, “A Marselhesa” e “A Regra do Jogo” (aqui)
A primeira vez que eu te vi falando do François Truffaut foi através de uma série chamada “Três filmes”, e, sinceramente, a impressão que me passava é que tu ainda estavas conhecendo o cinema do Truffaut. E é impressionante como sempre se vê expressões grosseiras associadas ao filme “L’Histoire d’Adèle H” que pela impressão que tu passas é muito chato. Não é o filme que é chato, é que talvez ele não faça o teu estilo. Assim a tua crítica não contribuiu em nada para a difusão deste gênio do cinema francês mas para diminuí-lo. Desculpe, mas é a verdade. E como toda verdade, esta também dói.
Andrea, não se desculpe. A sua opinião tem extremo valor, igual a minha e a de qualquer pessoa. E, falando por mim, vejo todas as pessoas como seres humanos normais, com virtudes e defeitos. O homem que vende milho na rua e um cineasta, todos são feitos de carne e osso, erros e acertos, fracassos e vitórias. Por isso, o mesmo homem que pode fazer uma obra-prima, também pode fazer uma obra ruim. E mais do que difundir a obra, quero discuti-la. Um filme não é algo linear, que a gente vê e esquece. Acredito no poder transformador dos filmes (e dos discos, e dos livros), e numa arte complicada chamada cinema, que Woody Allen já descreveu brilhantemente como sensacional quando surge a ideia, e insatisfatória quando a ideia fica pronta, porque não depende apenas de uma pessoa (o diretor), mas, muitas vezes, de dezenas, correndo o risco do resultado ficar aquém do esperado. O próprio Truffaut fala sobre isso em “A Noite Americana”. Dentro deste pensamento, eu, com meu olhar, acho “L’Histoire d’Adèle H” bastante insatisfatório. Mas é a minha opinião, e não quer dizer que estou certo, mas sim no que acredito. Nunca seria capaz de achar uma obra ruim e falar bem sobre ela apenas pelo prazer de difundi-la. Seria falso da minha parte. Prefiro imaginar que, independente da minha opinião, as pessoas continuem ouvindo discos, vendo filmes e lendo livros, e concordando ou discordando a partir disso. Como você. A verdade, como bem sabem os franceses, não dói. Somos nós, latinos, que não estamos acostumados a lidar com ela.
Não sei as outras pessoas, mas eu já anotei uns 10 filmes desse texto caprichado para ver. Obrigada, Marcelo!
Truffaut >>>>>> Godard!
Maravilhoso.