O último disco do Velvet Underground?

por Marcelo Orozco

Texto publicado no Scream & Yell em setembro de 2005

Qual a primeira pessoa que vem à mente quando se fala em Velvet Underground? Lou Reed, mais provavelmente, já que era o homem-de-frente da banda. Talvez uns pensem em John Cale e suas contribuições de contraponto a Lou nos dois primeiros álbuns.

Fãs do “disco da banana” (de 1967) podem lançar mão de Nico (cantora “convidada” em várias faixas e co-participante do título do álbum, “Velvet Underground and Nico”) ou Andy Warhol (o papa pop-art que fez o papel de mentor artístico e “produtor” do referido disco, além de autor da arte da banana na capa).

Os que adoram preferir os secundários podem até citar a baterista Maureen “Mo” Tucker ou o guitarrista Sterling Morrison. Dificilmente alguém faria associação instantânea ao nome de Doug Yule, baixista e vocalista que entrou para o Velvet em 1968 no lugar de John Cale.

Só que, veja como a história pode ser cruel e crua, foi justamente Yule quem fez sozinho (com a ajuda de Ian Paice, então no Deep Purple, na bateria como músico de estúdio contratado e de uma não-identificada cantora de apoio) o disco-testamento do histórico Velvet Underground: “Squeeze”, de 1973.

Um disco sem Lou Reed, John Cale, Nico, Maureen Tucker ou Sterling Morrison. Muito menos Andy Warhol – àquela altura, Yule estava muito longe de 15 segundos de fama, quanto mais 15 minutos…

A contra-capa original de “Squeeze” ao lado da contra-capa do relançamento

“Squeeze” é uma anomalia pop e uma anomalia na história do Velvet. O disco (que saiu apenas na Inglaterra, França e Espanha) nunca foi relançado em vinil, em CD ou sinal de fumaça até o final de 2012, quando voltou ao mercado em CD e vinil pelo selo obscuro Kismet. Ainda assim é solenemente ignorado – como se nunca tivesse existido – na abrangente caixa retrospectiva de cinco CDs “Peel Slowly and See”, que inclui na íntegra todos os quatro álbuns de estúdio do Velvet com Lou Reed.

Uma explicação possível é que, quando deixou o VU em agosto de 1970, Lou Reed sentia que seu tapete era puxado pelo ambicioso Doug Yule. Com uma vozinha razoavelmente decente (ele fez alguns vocais principais nos dois álbuns do “Velvet-by-Lou-Reed” de que participou, como em “Candy Says” e “New Age”), competência básica em seu instrumento e mais nenhum talento digno de nota, o moço se deixou tomar por uma ego-trip estimulada por bajuladores (e pelo empresário Steve Sesnick) e se sentiu “rock star” a ponto de competir com Reed pelo comando da banda.

Tanto que Doug trocou o baixo pela guitarra e virou o líder do VU quando o verdadeiro líder foi embora. Virou líder em termos: não sobrou ninguém para ele liderar, já que Sterling Morrison também puxou o carro em 1971 e Maureen Tucker zarpou pouco depois. Resumindo toscamente, os Velvets originais viam Doug Yule como um aproveitador barato e nada confiável.

Após tocar em 1971 com um Velvet deformado, Yule viu a banda desmoronar em 1972. Mesmo assim, marcou sessões de estúdio em Londres para gravar um álbum. Muitos anos depois, ele alegou que pretendia gravar seu primeiro trabalho solo e que teria sido forçado pelo ainda empresário Steve Sesnick a soltar o disco como se fosse do Velvet Underground.

Encarregado de todos os instrumentos, Yule contratou apenas um ajudante: Ian Paice, o baterista do Deep Purple (que vivia seus dias gloriosos do álbum “Machine Head” e do hit “Smoke on the Water”). Um ótimo instrumentista em seu grupo titular. Mas Paice apenas marcou o ritmo como qualquer outro baterista de estúdio burocrático.

Mas, afinal: o que o álbum contém? Lançado em fevereiro de 1973, “Squeeze” é um álbum sem razão de ser – a não ser pelo ego desesperado do próprio Doug, ainda mais cutucado pelo sucesso solo de Lou Reed com “Walk on the Wild Side” e o álbum “Transformer” em 1972. A indigência musical ficaria mais tolerável se o nome do Velvet Underground não tivesse saído na capa. Mas quebrar a cara, Doug quebraria de qualquer jeito.

A fama do disco é péssima, espalhada pelos pouquíssimos que o ouviram. Para quem tiver a pachorra de buscar na Internet, há uma versão convertida para MP3 a partir do vinil original, mas você também pode ouvir no vídeo no final do texto. A pachorra, meio por obra do acaso, ocorreu por aqui. Curiosidade mórbida de ouvir a obscura nota de rodapé de uma das bandas realmente fundamentais do rock.

São 11 faixas em 35 minutos. Nem sombra de qualquer experimento sônico como os dos dois primeiros álbuns do Velvet (o “da banana” e “White Light/White Heat”). Nem rocks bem compostos e bem tocados ou letras ricas e secas como em “Velvet Underground”, de 1969, ou de “Loaded”, de 1970.

Como compositor, Yule parece crer que basta botar alguns nomes de pessoas na letra e/ou no título, como Reed sabia fazer com maestria e com um propósito narrativo, e pronto. Por isso, dá-lhe “Little Jack” na faixa de abertura, uma “Caroline” logo depois, um “Dopey Joe’ aqui, “Jack and Jane” acolá e, para fechar o disco, “Louise”, com uma coda cheia de harmonias vocais com fundo de piano que estão mais para baladão de FM brega. Musicalmente, Yule é um simulador sem personalidade e sem direção. Ele até arrisca algum glam rock como o que Lou Reed (com David Bowie na produção) praticava na época nas faixas “Mean Old Man” e “Dopey Joe”, além do clima de cabaré de “Crash”.

Ele também montou Frankensteins de várias faixas da época de “Loaded” em “Friends” (uma baladinha insossa que tenta ser diferente com harmonias dissonantes como as de “Who Love the Sun”), “Jack and Jane” (”Walk and Talk It” encontra “Sweet Jane” em passo acelerado) e “Send No Letter” (outra aceleração, esta calcada em “Train ‘Round the Bend”).

Quando não reciclava Lou Reed, o simulador Yule almejava adquirir alguma respeitabilidade via Beatles, Rolling Stones e até mesmo Beach Boys. “Caroline” é um clone maltrapilho dos rocks surfistas dos Beach Boys na fase 1964-65. Harmonias em la-la-la e contracantos no refrão, solo de guitarra com o mesmo timbre do de “I Get Around”. Nenhum peso, nenhuma tensão. E, em questão de “Caroline”, prefira “Caroline, No” (que os Beach Boys soltaram em “Pet Sounds”) ou “Caroline Says” (que Lou Reed lançaria no álbum “Berlin”, em 1973).

Os Stones aparecem na insistência de Yule de usar backing vocals à moda gospel (”Little Jack”, “Mean Old Man”, “Dopey Joe”). E os Beatles são chupados no jeitinho mccartneyano de “Crash” e nas levadas quebradas de piano em “Wordless” e “Louise”, que lembram o primeiro álbum solo de John Lennon.

Saldo: como compositor, instrumentista, bandleader, Doug Yule era um quase zero que não sabia dar vida a uma composição, não tinha os recursos para explorar a dinâmica entre estrofe e refrão, as vibrações que o som captado de determinada forma pode criar.

Ele se virava na guitarra, no baixo e no piano como um especialista em montar uma banda, gravar demos, desfazer a banda quando nada acontece e fundar mais outra que seguirá o mesmo percurso anônimo. Se não tivesse sido um coadjuvante do Velvet de Lou Reed, Doug Yule nunca teria merecido qualquer atenção maior no meio musical. Dando a pata à palmatória, os Velvets de verdade estão certíssimos em não incluir “Squeeze” no corpo da obra da banda.

Leia também:
– Faixa a Faixa: “White Light, White Heat”, Velvet Underground, por Diego Fernandes (aqui)
– Lou Reed ao vivo no Credicard Hall, em São Paulo, em 2000, por Marcelo Costa (aqui)
– Série Classic Albuns em DVD: “Transformer”, de Lou Reed, por André Fiori (aqui)
– ”Transformer – Remasters”, Lou Reed: reedição aprimora o que já era clássico (aqui)
– “Animal Serenade” flagra Lou Reed inspirado brincando com pérolas de seu repertório (aqui)
– Diário de turnê de Lou Reed: “Eu falo por meio das minhas canções” (aqui)
– Lou Reed ao vivo em Málaga, na Espanha, 2008, por Marcelo Costa (aqui)
-“Berlin Live At St, Ann’s Warehouse”, o registro da tour de 2006 de Lou Reed (aqui)
– Lou Reed & Metallica: Liberdade artística, no fim das contas, é um pé no saco (aqui)
– Dois vídeos do Lou Reed ao vivo em São Paulo, 2010 (aqui)
– Lou Reed ao vivo em 2012: um ensaio de luxo em Luxemburgo, por Marcelo Costa (aqui)

One thought on “O último disco do Velvet Underground?

  1. Puro preconceito. O disco é bem razoável. Nem um pouco original, é verdade. Mas toda essa raiva das viúvas de Lou Reed não se justificam…

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