Turismo: Bem-Vindo ao Oriente Médio

BENVINDO AO ORIENTE MÉDIO
(ou: S&Y NA JORDÂNIA)
Texto por Leonardo Vinhas
Fotos por Leonardo Vinhas e Renata Araújo

A convite do Jordan Tourism Board (JTB), órgão oficial de turismo do governo da Jordânia, eu e outros quatro profissionais de comunicação fizemos uma trip de dez dias pelo país mais tranquilo do Oriente Médio, cenário de diversas histórias bíblicas e lar da rainha mais sexy do planeta. Relatar jornalisticamente qualquer viagem já é uma missão na qual diversas variáveis se misturam, muitas vezes de forma conflitante. A objetividade necessária para o texto convive com a inevitável intensidade da experiência pessoal (positiva ou negativa). No caso específico desse tour, esses conflitos se intensificam. Ao jornalista observador mistura-se o garoto do interior que ressuscita só para não acreditar que finalmente chegou ao Oriente Médio. O seminarista e professor de catecismo anda lado a lado com o agnóstico. O turista deslumbrado desparece por vezes para dar lugar ao mochileiro experiente em viajar de forma precária. Desse embaralhamento é feito esse texto, um resumo de uma jornada à qual você é convidado a acompanhar agora.

Dia 1 (18/07/2013) – Amã – Aonde se chega a um lugar, mas ainda não se faz o destino

Pouco mais de 11 horas de voo São Paulo-Paris, duas horas no aeroporto Charles de Gaulle e mais quase cinco horas Paris-Amã, e enfim os pés aterrissam em território jordaniano. Nós seis – eu, Flavia Perin (assessora de imprensa do Jordan Tourism Board no Brasil), Lucio Ribeiro (Popload), Gabriel Britto (do blog Gabriel Quer Viajar), Renata Araújo (freela de várias emissoras de TV e autora do blog You Must Go!) e a autora de livros de turismo Cris Berger – aproveitamos este tempo transcorrido para trocar as informações pesquisadas sobre aquele que será nosso território pelos próximos dias, e também para apreciar o decadente espetáculo de ver um cidadão cambaleante se esgueirar pela fila de imigração ostentando os mais agudos sintomas de bebedeira que eu já vi alguém manifestar em um aeroporto. O tipo físico – um ruivão corpulento e rosáceo – nos faz intuir que deve ser alguma espécie de comemoração de St. Patrick’s Day potencializada pela altitude. Seria o único bêbado que veríamos pelos próximos dias.

Durante o jantar no Landmark Hotel, um estabelecimento executivo de alto padrão, nos dedicamos a entender o câmbio: um Real vale aproximadamente 36 centavos de Dinar Jordaniano (JD) – sim, a moeda local é mais forte que o Euro. Simplificadamente, temos que multiplicar os preços por 3, o que faz presumir que o vinho jordaniano que pedimos no hotel nos custará 75 reais (25 JD). Com a conta, vem outra lição prática: hotéis e bares cobram, além da taxa de serviço (habitualmente 10% do valor da conta), uma taxa de impostos que pode variar de 7 a 15%. Ou seja, o tal vinho sairá por mais de 90 caraminguás brasileiros.

Álcool é um capítulo à parte na Jordânia. Como o Corão desestimula seu consumo, praticamente não existem bares. Bebe-se em alguns restaurantes (muitos não oferecem essa opção), nos hotéis ou comprando nas liquor stores para consumo doméstico. Beber em público é crime – como em vários países ocidentais, diga-se. Em termos de cerveja, a Amstel (produzida localmente) e a Heineken suíça são as mais comuns, mas encontra-se também Beck’s, Corona e Budweiser, além de algumas marcas sem álcool. Para o vinho, a Jordânia tem poucos, porém respeitáveis, produtores locais, como Saint George, Machareus e Mount Nebo, com os brancos se destacando em relação aos tintos. Vinhos libaneses, franceses, australianos e sul-africanos aparecem com relativa facilidade, e por alguma razão que não consegui descobrir, os chilenos são altamente valorizados.

As seis horas a mais no fuso horário dificultam a chegada do sono, mas ele se faz necessário, pois amanhã chegaremos de fato à Jordânia, com tempo para ver o que queremos. Ou quase isso.

Dia 2 – 19/03/2013 – Em Amã, a diferença entre o turista e o viajante se faz evidente

Após o lauto café da manhã típico de bons hotéis, seguimos de van para o centro de Amã, capital da Jordânia. Pelo trânsito, percebe-se que os jordanianos não acreditam em preferencial tampouco em semáforo – há poucos deste último. A lógica de deslocamento parece seguir o princípio do “primeiro eu!”, e os carros se acumulam nas vias. Mas de alguma maneira, o caos se organiza (ou se sustenta sem maiores consequências) e o trânsito flui melhor que o de São Paulo ou do Rio de Janeiro.

Fora das vias turísticas, passamos por lojas de especiarias, onde descobrimos que quase todo o café que tomaremos será sempre fresco, com grãos recém-moídos, não raramente misturados a cardamomo também moído. Café em pó felizmente não faz sucesso por aqui. Outro ícone gastronômico árabe, as frutas secas locais são mais suculentas que as encontramos em terra brasilis, com um frescor que faz você questionar se o termo “seca” é adequado.

A salivação do nosso bem alimentado grupo continua na Sufara, uma das maiores padarias da cidade. As panificadoras, em sua enorme maioria, funcionam 24 horas por dia, e oferecem muito mais que o pão que conhecemos como árabe. A variedade de tipos de pães e doces é maior do que o mais empolgado glutão consegue provar. Pra não falar das esfihas, de massa fina e diâmetro generoso. Saímos de lá com a certeza (jamais traída) de que comeríamos muito bem nos próximos dias.

De lá, seguimos para Swifieh, um bairro com uma pegada mais turística. Após um almoço criminosamente farto no restaurante Sufran, seguimos pela Rainbow Street, via urbana plena de lojas de todos os tipos. Não fosse pelos cafés nos quais o narguilé dá o tom das conversas entre amigos, poderia ser uma rua em qualquer cidade do mundo. Ainda que bem apresentada, é um daqueles lugares tão comerciais que você mal percebe que saiu do seu eixo habitual. Afinal, saímos de casa em busca do inusitado. Onde fica o exotismo que o turista busca no Oriente Médio?

Não fica. Por isso encerramos a tarde em uma casa de banho turco. Quando me dou conta de que algo “turco” pouco tem a ver com a Jordânia, já estou vestido apenas com uma toalha na cintura, sendo massageado com óleo e esfoliado por garotos sírios em meios a grisalhos e barbados homens jordanianos. Ao lado do Lucio Ribeiro. E, sim, curti a experiência. Mas não espere fotos. Você não precisa ver a mim ou ao Lucio de toalhinha na cintura.

Um jantar rápido numa cadeia local de restaurantes familiares e de volta para o bar do hotel, onde, acompanhado por uma taça de Saint George Chardonnay, descubro a atipicidade que procurava na vista noturna de Amã, com seus pequenos prédios brancos (todas as construções da cidade são feitas com pedras calcárias) iluminados sem a profusão de luzes.

Dia 3 – 20/03/2013 – “Agora chegamos na Jordânia”

A caminho do castelo de Aijun (ou Aijoun – a grafia de muitas palavras em árabe sofre pequenas variações quando escrita no nosso alfabeto), passamos por casas simples (brancas, como de praxe) em meio a uma profusão de oliveiras e pés de avelã. No castelo – uma fortificação construída no ano 1142 para proteger os peregrinos de eventuais ataques de cruzados – a imersão ao passado é impedida pelo vai-e-vem de grandes grupos de pré-adolescentes naquela algazarra típica das excursões escolares. Tanto barulho pode fazer qualquer um reconsiderar se Herodes deve de fato ser considerado um vilão, mas a simpatia das crianças logo vence a ranhetice. O inglês é praticamente um segundo idioma na Jordânia, assim eles não têm nenhuma dificuldade em se comunicar conosco. As meninas, em especial, parecem ver nas mulheres do nosso grupo o exotismo que nós, turistas, vemos nelas, e pedem para ser fotografadas ao lado delas. A Flavia, loira e de pele muito clara, e a Cris, com reluzentes olhos verdes, atraem atenção especial.

As ruínas passaram por várias restaurações, mas mesmo assim há sinais de vandalismo. Como quase todas as atrações históricas na Jordânia, não há muitas barreiras entre os visitantes e as edificações, e o ser humano nem sempre é um bicho zeloso ou consciente de preservação. Pena, porque o local impressiona.

Porém, o impacto maior acontece de tarde, quando visitamos Jerash, a “cidade romana”. As aspas se justificam pelo fato de que, além dos romanos, bizantinos e islâmicos deixaram sua marca na cidade que começou a ser construída em 65 a.C.. Situada a cerca de 40 km da Síria, Jerash tem templos dedicados a Zeus e Artemis, um amplo fórum, dois notáveis anfiteatros, um hipódromo e outras instalações, todas bastante preservadas. Só a experiência acústica do anfiteatro, onde podemos testar com nossas vozes as potencialidades de amplificação garantidas apenas pela arquitetura (os organizadores do Lollapalooza teriam muito a aprender com uma visita aqui), já valeria a viagem por si só. Mas quando aparecem dois ex-músicos da corte do Rei Hussein, tocando uma espécie de gaita-de-foles e um instrumento percussivo… É difícil explicar. Uma espécie de transe se instala e, quando me dei conta, havia subido todos os degraus do anfiteatro e olhava Jerash de cima, embasbacado. E isso porque eles estavam tocando “Frères Jacques”.

A tarde se revela insuficiente. Alguns de nós emudecem, outros limitam a conversa a interjeições e expressões eloquentes como “do caralho” e “cacete”. As ambições e expectativas são superadas. “Agora chegamos à Jordânia”, é o consenso entre o grupo. Programe um dia inteiro para Jerash quando estiver por lá. Não há de se arrepender.

À noite, encaramos o mais próximo de uma balada que viveríamos nesses dias. O restaurante Shaman tem decoração modernosa, boa trilha sonora e cardápio internacional – saímos de nossa aprazível dieta de hommus, babaganush, kebabs e afins para ficar com steak e salada (apenas corretos – deu certa saudade das iguarias locais). Mas o narguilé e as três garrafas do tinto Masaya, um vinho de corte libanês que foi de longe a estrela etílica da viagem, roubam o protagonismo da comida. Nas mesas ao redor, o cenário é mais “ocidentalizado”: a elegância cobre os corpos de homens e mulheres, e não há sinal de véus, kuffiehs ou outros trajes locais. Porém, homens e mulheres só se sentam à mesa juntos se forem casais. No piso inferior, se há qualquer tipo azaração, acontece discretamente. No superior, a coisa parece mais interessante, mas se eu tivesse ido “apurar” pessoalmente, estou certo de que a leitura desse texto terminaria com minha esposa defendendo a necessidade de que eu fosse urgentemente circuncidado. Com uma faca cega. Melhor me apaixonar pelo vinho.

Saímos de lá levemente risonhos e, se é verdade que o álcool mata os neurônios, mais burros. E mais felizes. Bem que dizem que a ignorância é uma benção.

Dia 4 – 21/03/2013 – De olho na Terra Prometida

Hora de fazer check out no Landmark e rumar para o Monte Nebo, “local sagrado cristão”, como enfatiza a placa na entrada. Ali Moisés teria avistado a Terra Prometida por seu deus, na qual foi proibido de entrar porque o teria desobedecido. Na entrada, uma placa pede: “Dress Modestly”, com um sinal de proibido cortando o desenho de um shorts e um top. Vai ver, Moisés pode ver a Terra Prometida, mas não pode ver decotes. Quem vai saber? A vontade de Deus é insondável…

Na verdade, a absurda história que consagra o local – uma prova de que o deus bíblico tem apreço pelo sofrimento, pelo infanticídio e por seus próprios caprichos – e a presença de Israel logo à frente, que traz consigo a mui questionável história de sua formação como país, me causam mais desconforto que qualquer outra coisa. Me afasto do grupo e prefiro ficar com a vista do Vale do Rio Jordão, um local árido, porém (ou por causa disso) belo.

Descemos o Monte rumo à Madaba e paramos no que, de início, aparenta ser um caça-níqueis turístico. Porém, em meio a produtos do Mar Morto e quinquilharias outras, a loja exibe mosaicos impressionantemente confeccionados em diversos tipos de madeira. Móveis feitos segundo a técnica tradicional podem demorar até dois anos para serem confeccionados. Quanto mais temos contato com o detalhismo e o senso estético empregados, maior o encantamento pela técnica e pelo resultado final. Hillal, um dos artesãos, pega seu oud (instrumento de cordas de cabaça grande e arredondada) e, com uma voz profunda, destila uma canção comovente. Sem nos cobrar nada, pelo puro prazer de tocar. Sabe aquele papo de “exotismo turístico” de uns parágrafos atrás? Esquece. Fomos pegos por “the real thing” e nem tivemos tempo de nos preparar.

Depois disso, nossa próxima parada, a Igreja Grega Ortodoxa de São Jorge, empalidece. Se é verdade que o mapa em mosaico bizantino no piso é um tesouro de inegável valor histórico, é também verdade que meu estado anímico já havia sido suficientemente tocado pela força musical de Hillal. Almoçamos, e seguimos por três horas e meia de viagem rumo à Petra, vendo a paisagem se tornar cada vez mais árida no caminho, alternando bucólicos cenários de jovens pastores com seus rebanhos para trechos em que o lixo se acumula às margens da via.

Antes de um rápido check in rápido no Mövenpick Hotel, uma parada na “nascente de Moisés”, supostamente o veio da água que teria nascido quando ele “feriu a pedra”. É um local tão desprovido de pompa e circunstância que chega a ser comovente. Porém, cansado de tanto entra-e-sai da van, me concentro mais em brincar com os gatos ao redor e em tentar entender como nosso guia conseguiu perder um único pé de tênis no trajeto. Contudo, seguindo o espírito bíblico de fé cega, aceito que alguns mistérios jamais terão explicação.

Ainda no dia 4 – Petra by Night

O Mövenpick fica bem na frente da entrada de Petra, assim que basta atravessar a rua e estamos na cidade esculpida entre as pedras pelos nabateus, que ali se estabeleceram no final do século IV a.C. Nos três séculos seguintes, a cidade prosperou, mas a presença romana no início da era cristã minou o poder dos nabateus, e a cidade foi perdendo sua importância até que, em 661 d.C., já sob o domínio de uma dinastia muçulmana, foi atingida por uma série de terremotos e chegou ao fim.

Nem tudo do que se sabe sobre Petra é definitivo. Os nabateus não eram dados a registrar seu tempo, e há mais teorias que fatos. Porém, é bem verdade que entrar em Petra à noite, iluminada apenas por esparsas luzes no caminho, é algo que não pode ser descrito de forma objetiva. O passeio, conhecido como Petra by Night, consiste em dois quilômetros de caminhada até o tesouro de Petra, onde… Pensando bem, é melhor não contar. Seria um spoiler emocional. O que pode ser dito é: se você for para Petra, programe-se para visitá-la primeiro de noite, depois durante o dia. São duas experiências totalmente diferentes, e nada pode te preparar para o que é caminhar por aquelas rochas contando basicamente com a iluminação das estrelas. E seja sensato: não fique tirando fotos com flash como alguns idiotas insistem em fazer, mesmo com a administração local pedindo o contrário. Quanto menos luz, melhor.

Dia 5 – 22/03/2013 – Petra “by Day”

Seria de se esperar que o passeio diurno perdesse para o noturno, mas não. De dia, o tour vai além do tesouro e são tantos os detalhes que a primeira constatação é a de que um dia é pouco para explorar a riqueza de Petra. Enquanto o passeio noturno vai apenas até o Tesouro, a luz do sol permite que você visite todas as instalações, entrando nas casas e edifícios esculpidos entre as rochas. A UNESCO decidiu que colocar redes ou grades poderia preservar melhor o local, mas estragaria muito do prazer de apreciação e estudo que o local oferece, então é possível caminhar por lá de um modo que não seria possível em muitos sítios históricos da Europa ou mesmo da América Latina. Então seja consciente e respeite. Todo turismo é predatório, mas tente sê-lo o mínimo possível.

A movimentação constante de um grande número de pessoas, burros e camelos em meio àquela arquitetura peculiar me transporta para o passado, imaginando de forma tão vívida quanto minha mente permite como seria a vida em Petra quando a cidade estava em seu auge. Tremo em pensar em como seria uma trip ancestral embalada por ácido ali. Acho que não voltaria nunca, ou não voltaria o mesmo.

Curiosamente, o comércio em Petra não parece deslocado, embora seja sempre triste ver crianças vendendo badulaques (não falta isso por lá). Como a cidade era um forte posto comercial, as tendas estrategicamente espalhadas de modo a não prejudicar demais a paisagem parecem se integrar ao ambiente, e uma verdadeira experiência sensorial se apodera de mim quando, já coberto de pó e fisicamente exausto, experimento os aromas de mirra, almíscar, sândalo e âmbar de uma tenda local. O proprietário mostra destreza em vários idiomas (inclusive o português) e acabamos entabulando um longo papo em espanhol (nem eu sei porquê) sobre Obama (que, em visita à Jordânia, no dia seguinte estaria na loja dele), chás e viver para desfrutar do que nos dá prazer (“de noite não trabalho, meu amigo. De noite vou ficar com a minha mulher, fumar narguilé, comer bem e dar risada. É para isso que a gente vive”).

Recomendo pelo menos dois em Petra, isso se você for do tipo apressadinho – ou o típico turista japonês, que viaja para bater fotos e filmar e só curte a viagem quando chega em casa. Vivenciar Petra requer tempo. E desapego ao registro: a certa altura, já havia desistido de tirar fotos, decidindo apenas pela contemplação do lugar. Melhor assim.

Ainda na cidade antiga, experimentei também uma tempestade de areia, e aí volta o deslumbramento do turista. Para quem não vive isso todo dia, é sensacional ser fustigado pelo vento arenoso. Para quem vive, o incômodo era visível no rosto.

Moído, volto ao hotel, mas a programação do JTB ainda contemplava o Petra Kitchen, um programa de imersão rápida na culinária local. É a típica oferta “para gringo ver”, mas como ali os “gringos” éramos nós, fomos lá. Seria ótimo poder dizer que nós e nossos companheiros de curso – um simpaticíssimo grupo de ingleses, mais alguns irlandeses e alemães – preparamos um ótimo jantar árabe com o auxílio dos chefs locais, mas a realidade é que a mão pesada dos britânicos tirou a delicadeza que poderia ter dado sabor às esfihas, e os brasileiros (nós) não fizeram muito mais do que cortar (mal) salsinha para o tabule. Porém, a camaradagem transnacional e as bebidas mais em conta da viagem renderam uma boa farra. O que dispensa ponderações sobre o inominável kebab que preparamos todos juntos.

Anedota pop desnecessária: conversando com um dos irlandeses, menciono os Pogues. Ele sorri e, apontando a dentição irregular, diz: “temos todos os mesmos dentes”. Hora de ir dormir – mas antes, eu e Gabriel saímos cantando “Amigo Punk”, da Graforréia Xilarmônica, pela rua principal de Petra. Porque sim.

Dia 6 – 23/03/2013 – Quando é melhor emudecer
No check out, me dou conta que praticamente não conheci o hotel – não que tenha feito falta. Antes de partir, e também durante nossa saída, ficamos de olho no imenso aparato logístico-militar instalado para receber o presidente norte-americano. Uma vista panorâmica da cidade – “escoltada” pelo poderio bélico dos EUA – finaliza nossa visita em Petra.

Não muito depois, damos entrada no ostensivo Tala Bay Resort, em Aqaba. Com acesso privativo a um trecho de praia do Mar Vermelho e muitas piscinas, o nababesco local oferece uma sensação de irrealidade – ou de realidade idílica demais para ser crível. A estranheza só aumenta quando somos recebidos por uma bela germano-jordaniana vestida com uma regata justa e saia curta. Saímos do Oriente Médio para entrar no mundo do turismo de luxo, onde o impessoal se disfarça de exclusivo. Tenho tempo para adentrar rapidamente às límpidas águas do Mar Vermelho, e o viajante embasbacado volta a pilotar meu cérebro. “Caralho, eu morava na Vila das Graças, em Taubaté. Sério que eu estou no Mar Vermelho?” Esse tipo de coisa.

Todos esses questionamentos, picuinhas e pobrezas de espírito desaparecem quando chegamos ao deserto de Wadi Rum. Se você já esteve em qualquer deserto, sabe que o silêncio é um dos componentes mais fortes da experiência. Porém, a geografia peculiar e o céu azul que abriga uma lua quase cheia e o sol radiante ao mesmo tempo causam um arrebatamento que provocam outro tipo de silêncio, esse mais íntimo e pessoal. Na caçamba de uma picape velha, somos conduzidos, parando vez ou outra, por um caminho que, de alguma forma, me conduz para dentro de mim mesmo. Não à toa os desertos constam em tantas parábolas de propósito espiritual.

O sol se pondo convida a demorar mais, e peço para voltar a pé ao Captain, o acampamento beduíno de onde saímos. No caminho, um local me convida a montar no camelo. É quando uma criança toda feliz substitui o trintão barbudo e introspectivo que até então habitava meu corpo. O balanço do animal se equilibrando sobre a areia enquanto a noite chega traz uma sensação tão boa que quase perco a fome.

Felizmente não a perdi: jantamos com os beduínos uma notável refeição, coroada por um sensacional cordeiro preparado sob a terra – cujo desterramento é uma honra reservada apenas a nós, brasileiros. Fica claro o quanto nossa nacionalidade é querida por lá (e não apenas porque somos consumistas ensandecidos quando viajamos).

De música ambiente, uma dupla com oud e percussão (o “Black Keys da Jordânia”, diz alguém). As estrelas e a hospitalidade beduína garantem o resto. Volto para o hotel empoeirado e num estado que não é exatamente felicidade, mas é melhor que isso.

Dia 7 – 24/03/2013 – Sobre águas, milagres e música pop
Ainda comigo, leitor? Obrigado pela companhia.

Depois do silêncio, o dia começa com a gritaria de crianças que levantam com o nascer do sol para brincar nas piscinas em frente ao meu quarto. Volto a pensar em Herodes, e somo mais um argumento em justificativa da minha decisão de não ter filhos.

Pela manhã, entramos em um barco reservado exclusivamente para nós e singramos um trecho do Mar Vermelho que nos coloca frente a frente com os litorais de Egito e Israel. Uso meu binóculo para perscrutar os países que não poderei visitar nessa viagem enquanto a brisa marítima traz certo frio, apesar do sol forte. De olho nas extensões, penso em voz alta que nem a pau Moisés – ou Jeová, ou quem seja – fez os hebreus atravessarem esse mar a pé enxuto.

Com snrokels, mergulhamos nas águas mais claras e agradáveis que já entrei. No fundo do mar, a rica vida marinha se mistura a mergulhadores russos que se divertem com seus aqualungs. Evitamos os corais – para preservar a eles e a nós mesmos, já que eles podem ser habitados por peixes venenosos.

Sei que o equilíbrio político do mundo depende de muito do que acontece nessa região, mas no clima em que estávamos, toda discussão parecia tola. O bom humor da tripulação, o sol e a simples e sensacional comida preparada numa humilde churrasqueira no barco trazem uma placidez que não havia sido possível devido à tão atribulada agenda. Talvez embalado por isso, nosso guia, que morou no Brasil e é apaixonado por “Os Normais” e novelas da Rede Globo, acha uma boa colocar Bruno e Marrone. Desestimulado pelo Lucio, ele segue com “Fernando”, do Abba. “Como você é romântico”, diz a sorumbática voz do homem do Popload, com sinceridade. “Hunting High and Low”, do A-ha, dá sequencia e eu decido que o som do vento no andar de baixo do barco é uma música que não pode ficar sem ouvinte, e rumo pra lá.

De tarde, volto para a piscina do hotel, e entre uma Beck’s e outra, fico com outra presença musical inusitada: o Motley Crüe, um companheiro de viagem que não havia sido mencionado até aqui. Levei a biografia deles, “The Dirt”, escrita por Neil Strauss, para ler na viagem. Os excessos – emocionais, químicos, musicais – da banda quase combinam com a opulência do Tala Bay.

De noite, o ideal seria me recolher para aproveitar a modorra trazida pelo que fora o dia mais tranquilo até então, mas havia programação a ser cumprida. Má ideia. A falta de sono dos últimos dias, somada ao sono interrompido da manhã e o esforço para permanecer acordado, começam a me deixar de mau humor. A noite em Aqaba, um balneário comum com um centro comercial movimentado e estressado, não ajuda. O pitoresco parece ter chegado ao fim, e a realidade se instala. O dia seguinte prometia um humor difícil.

Dia 8 – 25/03/2013 – Literalmente caindo na real

Temperamento de homem-bomba ao despertar. Acostumado a viajar sozinho, começo a me sentir deslocado no grupo, apesar de todos serem boas companhias. O brilho peculiar do Mar Morto no trajeto ajuda a acalmar os ânimos, e o vinho no almoço no restaurante do Dead Sea Panoramic Complex completa o serviço.

No caminho de volta à Amã, uma paisagem plena de belezas naturais vai se instalando na minha memória para compor um road movie pessoal que seria reprisado muitas vezes em introspecções nos dias que viriam. Chegamos a Amã em meio a um tráfego intenso, mas antes de nos instalarmos no quarto hotel da viagem, decidimos voltar à Jo-Bedu, uma loja de camisetas, posters e CDs que havíamos visitado no Dia 2. As estampas pop da loja nos conquistaram, assim como o universo de música desconhecida que tínhamos à frente. Já havia ficado com o bom rap acústico do El Far3i e o indie-grunge (existe isso?) bobinho do Akher Zapheer, mas o sorriso matador de uma das vendedoras me convence a fuçar atrás de mais coisas. Chego ao álbum “Leka@Eka3”, um compilado com três bandas árabes tocando ao vivo – Mashrou’ Leila (Líbano), Ressala (Egito) e Aziz Maraka &Razz (Jordânia). Grooves matadores, uma pegada acid jazz em tons mais pop e com escalas de música oriental. Acabo descobrindo que existe uma cena under forte na região, com bandas com letras politizadas e uma busca musical intensa. Saio de lá pensando se o S&Y vai ganhar um colunista de música oriental. Vamos ver.

Chegando ao hotel Le Royal Amman, porém, o incômodo volta a se instalar. O lugar parece ser um templo ao fake, ao exagero e ao tolamente supérfluo. Poderia servir de cenário tanto para um clipe do Barry Manilow como para um apoteótico casamento de novela da Globo. Aliás, um matrimônio estava em curso ali, com senhores de turbante com pose nobre descendo de carros vistosos em companhia de mulheres idem. Decido me refugiar no quarto com a taça de vinho mais cara que já paguei na vida e terminar o pouco que resta do livro do Motley Crüe. Finda a leitura, decido sair pelos arredores. Trânsito caótico, calçadas idem e quando vejo, estou no chão, literalmente. Um tombo cinematográfico me faz cair de quatro, esfolando joelhos e provocando dores nos punhos e cotovelos que seguiriam mesmo depois de voltar ao Brasil. Dolorido, entro em um supermercado só para descobrir que a Procter & Gamble e a Unilever dominarão o mundo – quase todos os produtos são iguais aos que encontramos aqui. Ando pela noite à procura de qualquer coisa que me reconecte com o espírito da viagem, mas o que encontro é a mesma opressão e poluição de qualquer cidade grande. De volta ao hotel, o céu do átrio, com lâmpadas se fingindo de estrelas, e as chamas falsas na entrada do cafonérrimo restaurante não ajudam em nada meu humor.

Dia 9 – Enfie seus preconceitos sobre o luxo no lixo

Acordo no mesmo pique em que fui dormir. Check out, felizmente, e vamos para a Cidadela, outro ponto turístico forte de Amã, com um museu acachapante, que traz fósseis em pedra, esqueletos preservados e objetos milenares. Japoneses com a camisa da seleção de futebol do seu país invadem o local (era o dia de Jordânia X Japão pelas eliminatórias para a Copa de 2014), e adolescentes tímidas de véu tentam puxar papo comigo e com o Gabriel sem muito sucesso (a timidez era muita). Mesmo adorando o museu e a paisagem humana, ainda me sinto fora do clima da viagem.

Pegamos uma estrada rumo ao circuito que chamam de “castelos do deserto”. Paramos em dois deles, Amra e Harana (este com indecifráveis afrescos psicodélicos), e deduzo que valha muito a pena alugar um carro (algo relativamente barato na Jordânia) e explorar com calma esse circuito. A estrada com traçado que sugere o infinito e o céu atipicamente cinzento mantém à minha cabeça a frase de uma canção do Midnight Oil: “there is no end to the world that I see”. Percebo que recuperei o bom humor, mas ainda não a disposição. Começo a entender porque músicos reclamam do desgaste das turnês.

Hora de nos estabelecermos no Mar Morto. Um melancólico piano tocado ao vivo nos recebe no saguão do Kempinski Hotel e minhas teorias-ojerizas sobre a hospedagem de luxo voltam… até o momento em que entro no quarto. Um espaço maior que meu apartamento, amplo, confortável, com direito a uma sacada de frente para o Mar, como uma pequena cama e espaço suficiente para fazer uma festa. Pequenos detalhes do atendimento fazem a diferença para sentir uma real personalização da estadia, e descubro, mais uma vez, que não sei nada sobre porra nenhuma, e que conceitos fixos são o maior desperdício de energia que um ser humano pode empreender.

Passo quase três horas no quarto desfrutando de Amstels na banheira, com banhos terapêuticos e o som do “Leka@Eka3”. O sorriso ameaça engolir as orelhas. Pela programação, temos que jantar em um hotel vizinho, mas juro que teria ficado muito feliz com um sanduíche, desde que degustado naquele ambiente.

O turista busca uma experiência irreal? Já não sabia mais. Estava embevecido demais para me preocupar com a resposta. Na verdade, com tudo aquilo à disposição, filosofar pra que? E o cansaço que se danasse.

Dia 10 – This is (not) the end, beautiful friend

Queria muito ter despertado mais cedo para aproveitar o máximo possível do último dia, mas o encanto e a mudança de ânimos me deixaram relaxado o suficiente para dormir até às 9h. No caminho para o café da manhã (com direito a champanhe, e de frente para o mar), encontro um norte-americano que morou no Brasil, no mesmo prédio que um colega de trabalho. O mundo, definitivamente, é um ovo. De codorna.

Tudo o que você ouviu sobre o Mar Morto é verdade: é praticamente impossível afundar lá, o sal esfolia sua pele, que logo envolvida pela lama do mesmo mar, fica propensa a uma nova esfoliação salgada. A sensação é única e, provavelmente, inigualável. Meus companheiros de viagem me dizem que pareço uma criança brincando com barro. Nem penso que no conselho que me deram ainda no Brasil, “aproveite enquanto existe” (uma represa ameaça seriamente secar o Mar Morto). Às vezes, só curtir basta.

Entre duas seções de lama e sal, o último passeio, dessa vez pelas margens do Rio Jordão, pelo local onde Jesus teria sido batizado. A visita de peregrinos é intensa: pentecostais, católicos romanos, católicos ortodoxos e meros curiosos passam em meio às árvores de galhos finos e flores diversas para chegar ao Rio, que divide Jordânia e Israel. A proximidade geográfica com o Estado judeu é menor que a distância que separa uma calçada da Avenida Paulista da outra. Crenças religiosas e disputas políticas à parte, há uma inegável sensação de paz no local. O cinismo fica de lado, e o passeio é bem aproveitado.

No tempo que sobra no hotel, me vejo fumando narguilé à beira da piscina de borda infinita, de roupão branco, enquanto russas em roupa de banho passeiam pelo ambiente e os alto-falantes tocam um pop oitentista. Me sinto num filme pornô, dos clássicos, como se o Rocco Sifredi fosse aparecer a qualquer momento. Segundo o Gabriel, somos “os donos do puteiro, como o baterista do Iron Maiden”. Eu só rio. Que mais fazer?

O último jantar, variado e farto, acontece sob a luz da lua cheia. A linha reserva do Saint George Chardonnay dá o acompanhamento necessário, e o entorpecimento bem-vindo para não sentir a tristeza do fim da viagem nem a melancolia de saber que, dentro em pouco, voltaria à realidade das obrigações profissionais, das necessidades burocráticas, dos problemas domésticos e urbanos. Antes disso, porém, uma escala de um dia em Paris e três dias do Lollapalooza me esperavam. Mas isso é outro assunto.

QUANDO NA JORDÂNIA, O Scream & Yell RECOMENDA:
• pechinchar. O pessoal nas lojas está disposto a isso, e você pode conseguir descontos significativos. Porém, não negocie se não estiver disposto a comprar;
• levar binóculos. Em lugares como Petra e Jerash, eles permitem observar detalhes arquitetônicos das edificações mais altas. No Mar Vermelho, ajudam a perscrutar a costa do Egito e de Israel;
• se hidratar. Água é cortesia em praticamente todos os restaurantes, mas ainda assim, com o clima seco do local, nunca é demais. Soro fisiológico para hidratar as vias nasais e colírio também são de boa ajuda;
• levar euros para trocar por dinares. O câmbio sai mais favorável que em dólares (e real nem entra);
• aprender expressões básicas do idioma local. Os jordanianos são simpáticos e receptivos, além de habilidosos no inglês. Mas qualquer tentativa de falar árabe rende boa vontade ainda maior;
• pesquisar bem os destinos. O país tem mais a oferecer do que o que foi listado aqui (dê uma olhada em www.visitjordan.com). A reserva natural de Dana, por exemplo, parecia muito promissora, mas não houve como encaixá-la aqui. Mas eu teria facilmente trocado um dia em Amã por uma estendida nessa reserva. Ou por mais tempo em Jerash. Ou… ok, você já entendeu.

Agradecimentos ao Jordan Tourism Board pelo convite, ao guia Hisham Saleh pelo acompanhamento, à Sama Shahrouri pelas preciosas dicas musicais, e aos excelentes companheiros jornalistas que tornaram essa viagem ainda mais intensa: Cris Berger, Gabriel Britto, Lucio Ribeiro, Renata Araújo e, em especial, Flávia Perin. Shukram!

Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Leia também:
– Diário de Viagem: Europa 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 por Marcelo Costa
– Diário da Viagem: Estados Unidos: 2011 e 2013, por Marcelo Costa
– Histórias de Viagem: Um hotel em Paris e Cherry Coke, por Marcelo Costa (aqui)
– Histórias de Viagem: D’akujem, por Marcelo Costa (aqui)
– Diário de Viagem: Foz do Iguaçu, 36 graus (aqui) e três dias e meio em Salvador (aqui)
– Turismo: Buenos Aires e Deserto do Atacama (aqui e aqui) e Minas Gerais (aqui)

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