Entrevista: Antonio Carlos Monteiro

Entrevista – Antonio Carlos Monteiro
por Leonardo Vinhas

Um dos brasileiros mais premiados no exterior no ano passado permanece desconhecido por aqui. Ele criou uma empresa do zero, e em menos de dez anos ela se firmou como referência em seu mercado, tendo sido laureada com diversos troféus na premiação mais importante do ramo. Ainda assim, você não vê Antonio Carlos Monteiro sendo apontado como case de sucesso em pautas empresariais, nem citado como um exemplo da filosofia do-it-yourself. Talvez porque sua empresa, a Bound Brazil, se dedica ao ramo do fetiche, e a premiação em questão seja o Bondage Awards.

Nas décadas de 1980 e 1990, Monteiro (ou ACM, como é conhecido) fez carreira como DJ em rádios e pistas de dança. A fama lhe rendeu um convite para morar em Amsterdam e, após 17 anos de carreira, o carioca se mandou para a capital holandesa em 1990. Lá, começou a ter contato com “coisas” que sempre chamaram sua atenção, mas que não sabia terem nome, ou mesmo estava preparado para admitir que gostava delas. As “coisas” em questão envolviam o fetiche conhecido como bondage, que envolve o ato de amarrar ou ser amarrado para fins sexuais.

“Você chega numa terra muito mais adiantada que a sua, lotada de vitrines exibindo tudo aquilo que você um dia imaginou ter em mãos, e entra em total piração”, diz Monteiro sobre sua “epifania” em terras holandesas. Em uma época de internet incipiente, esse material era raro ou mesmo inexistente no Brasil. Por isso, durante os três anos em que morou no exterior, ACM não só foi consumidor ávido como se aproximou de quem produzia os vídeos e as fotos que o encantavam. “Não foi complicado conhecer os caras que chegavam dos EUA com um monte de revistas e fitas VHS pra vender nos sex shops. Porque pra eles também era difícil fazer chegar a Europa o que eles produziam na América. Então me apaixonei definitivamente pelo mundo que tanto esperava um dia existir”.

Essa paixão, entretanto, não se transformou em negócio até 2008. ACM voltou ao Brasil no final de 1992 para lançar-se como empresário em ramos mais convencionais (uma empresa de exportações e importações). Teve duas tentativas de fazer seus próprios vídeos fetichistas, com resultados insatisfatórios. Porém, uma sequência de reveses pessoais o levaram a um questionamento pelo qual é difícil passar batido. “Pensei: se só me ferro fazendo coisas que não quero, por que não me ferrar fazendo o que realmente desejo?”. Foi quando fundou o Bound Brazil, um site por assinatura, cujo terreno foi previamente preparado por um blog com fotos originais (e que hoje segue online com os verborrágicos textos de seu autor).

O site ganhou projeção, assinantes e um nome no cenário fetichista – um cenário que, como tudo neste mundo pós-pós-moderno, move uma indústria de proporções consideráveis. Tanto que tem sua própria premiação, o Bondage Awards, que em 2012 conferiu a ACM os prêmios de Melhor Filme (“The Resort”) e Melhor Blog, a terceira posição em Melhor Rigger (produtor) para o dono da bola, quarto lugar como Melhor Site e a quarta posição de Melhor Modelo para a morena Terps, a mais emblemática do site. Prêmios que não dizem nada para ninguém fora deste universo, mas que para os bondagistas têm o peso de uma Libertadores da América.

A comemoração, entretanto, veio manchada com uma insólita briga que Monteiro vem enfrentando contra a Embratur. O órgão governamental diz que o nome “Brazil” pertence a eles, e que o site acaba associando o país à pornografia nas vias internéticas. Isso deu início a uma contenda judicial que está longe de se resolver.

Com uma vida dedicada aos seus prazeres, Antonio Carlos Monteiro é hoje um homem cheio de histórias incomuns. A história bondagista ele conta aqui, em entrevista exclusiva ao S&Y.

Você teve um início um pouco tímido no ramo do bondage. Como foi isso?
Já havia passado dois anos de Amsterdam e nada daquilo [bondage] me saia da cabeça. Mantive poucos contatos com pessoas daqui que começavam a se animar com as ideias de fetiches e outras coisas doidas. Por que não tentar como eles lá fora? Pensava isso toda semana e trabalhava duro. Até que um dia conheci uma pessoa que resolveu me dar força. E eram paradas escondidas, porque havia um casamento a ser preservado na época. Mas arrisquei: comprei uma câmera VHS que custou uma grana e filmei uma amiga dela. Foi meu primeiro insight de bondage na tela. Me senti o próprio Irwing Klaw em seus ensaios insólitos com a Bettie Page. Mandei pra um distribuidor americano e os caras devolveram. Pensei: “esquece isso e toca o barco”. Tentei de novo dois anos depois, em 1997. Três garotas e uma historinha bem contada a qual batizei de “A Vingança de Rosemary”, uma empregada domestica esculachada pelas patroas e que se vinga com cordas e mordaças. Nada demais, porém bem filmado, graças a um amigo de Brasília que me deu uma ajuda. Mandei e o distribuidor aceitou com ressalvas. Deve ter pensado: “cara persistente esse!”. Conclusão: o filminho de uma hora vingou e vendeu horrores, mesmo estando na ultima pagina da revista gringa. Vale ressaltar que a internet ainda não rodava vídeos nessa época.

Você teve o blog bound-brazil.com antes do site. Foi um “test drive” para saber se o público aceitaria a proposta?
A vida depois dos primeiros vídeos tomou outros rumos. Claro que ninguém esquece os planos pra sempre, apenas adia. Dez anos depois de emplacar um filme lá fora, resolvi que era hora de tentar profissionalizar o que havia começado como um projeto mambembe. Muita gente me conhecia por essas bandas e decidi reaparecer na cena. E veio o blog. No começo era uma necessidade espalhar a noticia, embora soubesse que em terras tupiniquins qualquer esforço teria que ser hercúleo. Botei fé e disse a que vinha. Não preciso te dizer que me chamaram de doido, mas concordo contigo quando diz que o blog era um balão de ensaio do que eu pretendia. No entanto, as primeiras incursões foram negativas, o povo daqui que conhecia esse pedaço da web não acreditava que alguém pudesse desafiar a ordem estabelecida, ou seja, eles fazem, criam e a gente bate palmas. Só que eu apostava num diferencial que acabou dando certo: a diversidade das modelos que encenariam o bondage. O Brasil tem uma miscigenação incrível.

Como você recrutou – e ainda recruta – as meninas para o site?
Foi complicado. Convencer uma garota a posar para um site que ainda não existia era algo inglório. Há fatos a explicar. O site, pra ser aceito em buscadores que divulgam os portais do gênero, teria que apresentar um conteúdo condizente com o meio. Nenhum portal de cobrança de assinatura aceitaria um site sem imagens suficientes e havia o tal investimento inicial de todo negócio. Foram oito meses de produções que apenas eram arquivadas. Foi a fase mais complicada – nem tanto pela criação dos clipes e fotos, mas pelo aparecimento das modelos interessadas. Muitas pensavam que se tratava de um louco tarado que colecionava bizarrices. Ainda assim, um acervo aceitável foi reunido e o site apareceu. Tornou-se muito mais simples agregar meninas interessadas uma vez que era possível mostrar aonde as tais imagens iriam aparecer.

O site quase não tem nudez total. Por que?
Era necessário saber qual opção explorar. Nudez total? Pornografia? Não, a ideia era bondage tradicional, na essência, e isso dispensa corpos nus ou modelos impecáveis pra ser atrativo. O que o assinante quer ver é a mulher comum. Muitos acreditam que corpos perfeitos e belezas estonteantes fazem a festa nesse meio, mas o bondage nasceu muito por causa da chamada ‘girl next door’, um termo que os caras usam na terra do Tio Sam pra estabelecer a diferença significativa entre a mulher forjada numa academia e esculpida em mãos de um cirurgião plástico e a menina que você se acostumou a ver em seu dia a dia. A “menina do lado” sempre é a heroína das aspirações de quem curte bondage. Essa era a linha do site, e eu lutaria por ela até o fim. E lá fora, ela agrada em cheio. Essa diversidade de gêneros femininos criava uma atração a mais num cenário altamente repetitivo. Porque lá fora as meninas que se dedicam a ensaios fetichistas, flertam com vários portais, que hoje, somados, chegam a mais de quinhentos. É muita repetição. Meu conteúdo era totalmente exclusivo. O cara compra o site, assina, e sabe que só vê aquelas modelos no Bound Brazil.

Qual o tamanho do site? Você pode falar em números de assinantes, comparando Brasil e exterior, por exemplo?
A disparidade de vendas era e é assustadora. A cada dez assinaturas lá fora, apenas uma é comercializada aqui. O site já teve em seus primeiros anos cerca de 450 assinantes por mês. Hoje se mantém numa media de 300 assinantes, números que são variáveis de acordo com a época do ano. No inverno eles consomem mais, optam por programas caseiros e não viajam tanto, daí a media sobe. Mas aqui a aceitação é irrisória. Hoje não chega a dez por cento das vendas. O publico brasileiro gosta de ter tudo grátis e não opta por pagar, e, ainda, vira os olhos ao que se produz aqui. Conheço frequentadores de festas e eventos fetichistas que preferem ignorar o sucesso do site. O longa-metragem que produzi ,“The Resort”, arrebatou o premio de melhor filme esse ano, e representou uma volta ao passado das produções de bondage, além dos clipes de cinco minutos que viraram moda. Um sucesso que vendeu em dois anos algo em torno de três mil copias no exterior, e que aqui não alcançou cinqüenta DVDs comercializados. E estou falando de uma obra completa que explora não só o fetiche de bondage, mas tem generosas pitadas de erotismo lésbico e BDSM.

Qual o peso dessa recente premiação para você? Ela representa uma legitimação do seu trabalho?
Após a divulgação dos resultados as vendas aumentaram significativamente, tanto de assinaturas quanto nas vendas avulso do filme “The Resort”. Entretanto, a premiação não espelha apenas um aumento de cunho comercial do trabalho. A legitimação da imagem do site após quatro anos de existência também deve ser mencionada. Meu trabalho como produtor mereceu o terceiro lugar dentre centenas que cobiçavam o posto, e isso é algo que cria um elo de credibilidade que não existia quando éramos apenas uma novidade, algo inusitado que vinha da distante e desconhecida America do Sul. Mas por aqui… Embora as pessoas daqui saibam que o filme levou o premio de melhor no gênero, ainda insistem em virar as costas ao resultado. Porque a importância do Prêmio Bondage Awards num local que ainda engatinha em se tratando de filmes e produções lado B não tem qualquer relevância. Mas lá fora a coisa é séria. Tanto que está sendo estudado pelos promotores do Bondage Awards a criação do premio além da medalha virtual. Haveria uma medalha física e seria entregue na Fetishcon que todo ano se realiza na cidade de Tampa, na Florida, e reúne os expoentes da indústria. Com essa premiação o site escreve o nome na galeria dos melhores pra sempre, no que eles costumam chamar de hall da fama. Pode ser que um dia tudo acabe, seja por falta de apoio ou reconhecimento, e que a existência do site seja pano de fundo de uma conversa de bêbados após uma festa fetichista qualquer, mas estará lá, estampado pra quem quiser ver, que ícones da indústria fetichista mundial também foram produzidos aqui, bem pertinho, por alguém que simplesmente resolveu desafiar a ordem natural das coisas.

O que esses prêmios representam para o futuro do site? Você acha que será possível viver só do site um dia?
Não sou futurologista pra saber até onde vai esse sonho. Da mesma forma que não sei até onde vou levar essa história. Mas te digo de coração que chegar até aqui foi bom demais. Não há um tom desafiador nisso. O site hoje caminha com suas próprias pernas, é autossuficiente. Não imagino um dia viver do que o site arrecada: tenho uma empresa, responsabilidades navegam num nível acima de toda essa historia fetichista. Porém, o site há quatro anos emprega pessoas, profissionais que vivem do que o site produz e arrecada. Até mesmo as modelos sentiriam falta do cachê que ajuda nas contas e é sempre bem vindo. Por isso, paro sempre pra pensar quando um novo ano começa e novos desafios virão pela frente. O ano de 2012 sepultou grandes portais que fizeram história na indústria fetichista [inclusive o Centaur Celluloid, cujo proprietário, Isaac W, já foi entrevistado pelo S&Y em 2005 – link no fim da página]. Gente que há mais de dez anos mandava pra internet coisas inspiradoras, bacanas, bem feitas. Li despedidas e vi alguns simplesmente desaparecerem. Há acervos voando por aí nos distribuidores de pirataria gratuita. Talvez aquela velha pergunta ainda insista em me incomodar todo começo de ano: será que vale a pena parar por cima?

Se você for procurar em páginas brasileiras – blogs e afins – sobre bondage, o resultado pode ser até assustador. Porque o pessoal “engajado” online com isso parece neurotizado: teoriza sobre amarrações, acha que tem que rolar bondage na grande mídia e tal. A internet não acaba deixando a coisa “guetificada” demais?
Por isso é que as pesquisas na internet são perigosas. É preciso saber aonde ir e em que lugar colher o que presta. Vejo pessoas ávidas por saber como tudo isso se processa dentro de uma relação sexual. Aparece uma trilogia complexa e desgastante como essa dos “50 Tons de Cinza” e a mulherada acha que essa gente que escreve fantasias pratica tudo que está escrito lá. Ora, bondage não é um clichê que pode parar num programa como o BBB [embora a ex-BBB Priscila Pires tenha posado para as lentes de ACM antes de entrar no programa global (N. do R.)]. Pode ser que numa brincadeira que se faça num reality show desse tipo se assemelhe ao fetiche, alguém invente de amarrar uma participante e dê a ela um determinado tempo pra sair. Alguns aficionados vão aplaudir, terão um tesão louco e assistirão de camarote sua preferência vivenciada num canal de expressão. Mas isso não seria um passo para a banalização do fetiche?

Por que não se fala sobre bondage no Brasil, nem com “50 Tons de Cinza” entrando nas rodinhas de conversa?
Porque falar de bondage não é tão descomplicado. Nada que mexe com o sentimento humano pode ser simplista. Pra pessoas como eu – que carregaram o fetiche no escuro por anos – ver a exposição banal dá a impressão de que existe alguém manipulando minha essência. Hoje é fácil ver mulheres jovens e adultas saboreando a trilogia dos “50 Tons” e levando a conversa pro salão enquanto faz as unhas. Mas o papo gira em torno do personagem que leva a mulher a ter delírios extremos de prazer através de uma experiência fetichista não vivenciada. E eu pergunto: elas querem o fetiche ou o personagem? Porque a autora tinha que vender, criar um conto fantástico onde tudo é permissivo e dinâmico. Um monstro que vira ídolo e se torna santo. O que mulher ávida por um quarto de jogos de BDSM não imagina que pra quem tem o fetiche na veia essa brincadeira é tão necessária quanto escovar os dentes, ao passo que pra ela foi apenas uma fantasiazinha a mais e que daqui a pouco perde a graça. Se o Sr. Grey existisse, seria com certeza um assinante de um site fetichista, como tantos que procuram na clandestinidade extravasar seus desejos.

Aliás, como você vê a discussão sobre submissão sexual que veio com “50 Tons de Cinza”?
A submissão sexual despertada pela trilogia é apenas passageira. Funciona como um ensaio. Um desejo novo desperto por uma mulher safa que soube condensar o que viu e conviveu através de paginas bem boladas. As pessoas se movem, experimentam, mas enjoam. Um aficionado jamais experimentará esse processo. O fetiche coexistirá com ele pelo resto da vida. Ele precisa disso pra ter uma vida sexual plena. A mulher que tem tesão por se submeter numa transa desse tipo não esquece a lição e carrega com ela a cartilha pra por em pratica na próxima parada. De preferência com a pessoa certa.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

Leia também:
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– Franco Saudelli sabe que arte e sexo devem ser divertidos, por Leonardo Vinhas (aqui)

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