Entrevista: André Mendes

por Carlos Eduardo Lima

André Mendes acabou de lançar seu segundo disco, “Enfim Terra Firme”, direto para a lista de melhores do ano. Não é exagero, mas talvez cause surpresa em alguns. Afinal de contas, quem é esse cara? Não é do eixo Rio-São Paulo, muito menos um “fora do eixo”. Tinha banda nos anos 90 – a Maria Bacana – chegou a ser promessa, chegou a ter disco produzido pelo Dado Villa-Lobos e, de um minuto por outro, sumiu.

Há alguns anos, André retornou no underground dos undergrounds, refez seu approach musical, incorporou popices solares à sua verve de adolescente soteropolitano vitimado pela cena cultural urdida por quem quer ver a Bahia sempre como um grande terreiro midiático, no qual gente como Regina Casé seria uma mãe menininha do mal. André é do rock, por mais descabido ou ultrapassada que uma afirmação dessas possa soar em meio ao pragmatismo de 2012.

Nessa entrevista ele fala de intenções, inspirações, passado, presente e futuro, além de apontar um panorama sinistro para quem insiste em ser bom músico em Pindorama.

“Enfim Terra Firme” é o seu segundo disco solo. Conta um pouco sobre o tempo do fim da Maria Bacana e o início da carreira solo, com o “Bem-Vindo À Navegação”, de 2011.
A Maria Bacana “original” (eu , Macello Medeiros na bateria e Lelê Marins no baixo) acabou em 1998 com a saída de Lelê, a constatação que o contrato que havíamos assinado com a Rock it! (selo de Dado Villa-Lobios) não ia nos levar muito longe e o final da parceria com o empresário Rafael Borges (Legião, Cássia Eller), tudo isso ao mesmo tempo. Eu e Macello tentamos outras formações, mas tanto as composições já levavam para uma outra musicalidade quanto os novos integrantes “não entraram na química”, que é o que faz uma banda ser especial. Hoje vejo que a Maria Bacana acabou quando fizemos o último show com a formação original, em São Paulo, no festival Close Up Planet em 1997. Pra ser clichê rock star falido e atormentado total, depois dessa leva de revezes, tive síndrome do pânico… hehe, fundo do poço… (Então assinamos) um contrato com a Deck Disc, de Rafael Ramos, e pensei que tivesse encontrado uma luz no fim do túnel, mas ficamos na geladeira… mandando demos pra ele e recebendo de resposta um “não, não tá legal… manda outras musicas melhores”. Algumas das musicas do “Enfim Terra Firme” são dessa época – “Toda Pureza e Toda Raiva”, “Bongiorno” – musicas que eu acreditava muito na época (e acredito ainda hoje, tanto que vim a gravá-las mais de 10 anos depois). Esse disco assinado com a Deck nunca saiu, o que só fez aumentar a frustração com relação à Maria Bacana, suas escolhas e pessoas que estavam à nossa volta. Toquei em algumas bandas de amigos durante um tempo… foi quando veio o grande “estalo” da minha vida e carreira: NINGUÉM VAI FAZER NADA POR MIM… EU QUE ME VIRE E FAÇA ACONTECER. A partir daí foquei totalmente em fazer a minha musica e tudo que pudesse pela minha carreira. Hoje faço desde a composição até a divulgação, passando pelos projetos gráficos, correr atrás de site, edição de musicas… tudo que puder fazer sozinho e com pouca grana, eu faço. Pra reverter os anos de frustração do final da Maria Bacana, em que muita coisa, muitos projetos ficaram na gaveta, tenho o plano de lançar um disco por ano… até agora está rolando bonito.

Como é viver numa cidade em que ouvir e gostar de rock constitui uma postura realmente revolucionária?
O problema não é só ouvir / gostar de rock… é detestar o poder instituído como único na cidade, a cultura do axé. Tem gente que gosta de rock , mas vai pro carnaval… Eu passo os dias de carnaval praguejando e indo pro cinema longe do circuito da folia foleira. Salvador é uma cidade que tem como “elite artística” Bell do ChicRete e Claudia Leitte… daí você tira como a coisa está. Em Salvador é status ter um adesivo no carro que diz “sou chicleteiro”. Aqui é a meca do atraso no Brasil e exportamos esse lixo para o resto do País. Terra devastada culturalmente. Eu não sou mais daqui.

“Enfim Terra Firme” é um disco bem diferente do trabalho anterior e do que a Maria Bacana fazia. Quais são as inspirações para esse novo trabalho?
Tudo que ouço, estou ouvindo e sempre ouvi entram na lista, mas no caso do “Enfim Terra Firme”, a maior inspiração foi o mote de fazer o melhor disco possível com composições fortes e intensas, arranjos clean valorizando a canção e poucas faixas, como muitos dos discos que me influenciaram, poucas faixas para não encher o saco e dar vontade de ouvir de novo. Esse disco foi originalmente pensado pra se chamar “Bem Vindo à Idade Média” e falar desse revival da idade das trevas que vivemos hoje em dia, mas desisti no meio do caminho. Dessa ideia original ficaram frases como “Não vim aqui te vender alegria ou salvação” ou “O mundo que eu estava começando a entender acabou faz tempo”, que abre o disco. Resolvi pegar mais leve e acho que o disco, apesar de algumas letras não muito alegrinhas, tem uma vibe bastante leve.

Hoje em dia, do jeito que as coisas estão no Brasil, o que é preciso para um artista independente ter o mínimo de condições para seguir com sua carreira?
Acho que hoje em dia só está nessa quem não tem jeito de deixar pra lá. Eu não posso não gravar e não lançar essas músicas. Essa é a minha vida! Música é uma das poucas coisas que sei fazer direito. Mas acho que a coisa está, em termos práticos, semi impossível. Não existe a figura do mecenas, coisa que as gravadoras e selos, bem ou mal, faziam. Hoje em dia é muito mais fácil gravar e escoar sua produção, mas transformar isso em bussiness está perrengue. O que me permite continuar é o custo baixo em vista da centralização de tudo que faço. Como não posso pagar, deixa que eu mesmo faço. E já estou bolando uma forma de levar essa lei pro “ao vivo”, que pra um artista solo independente, é sempre um drama (pagar cachê de músico de apoio, ensaio, custo de viagens…).

Como surgiu a ideia de regravar “Fome”, canção dos tempos da Maria Bacana?
“Fome” é uma das músicas que ficaram engavetadas da época da Maria Bacana. Tenho material dessa época que dá, tranquilamente, pra lançar quatro discos sem me preocupar em compor nada novo. (São) músicas que tenho o maior carinho. “Fome” foi uma das escolhidas da vez. Para fechar o repertório do “Enfim Terra Firme” fiz duas listas, cada uma com 10 canções… 10 novas (entre elas “A Cidade Que Eu Digo Não”, “Tudo que Sei”, etc…) e 10 “da gaveta” (entre elas “Fome” e “Bongiorno”). Daí escolhi qual delas seriam perfeitas para a estória que eu queria contar agora.

A sonoridade que você atinge com “Enfim Terra Firme” flerta tanto com o poprock dos anos 90 como com o trabalho mais pessoal de artistas como Legião Urbana. Como funcionam essas influências na hora de compor?
Eu me ligo muito em canções como ouvinte e também como compositor. Já ouvi muito Legião, pop rock. O grande lance é que parece que esse formato de “canção pop” foi desaprendido no Brasil desde meados dos noventa, e essa é a minha escola. Canção acima do arranjo. Já faz um tempo que o arranjo é mais valorizado e percebido que a composição. Eu sigo na contramão tanto como ouvinte quanto como compositor.

Minhas preferidas no disco são “A Cidade Que Eu Digo Não” e “Tão Sós”. Como elas nasceram?
“A Cidade Que Eu Digo Não” é, para mim, a principal música do disco, que exprime minha insatisfação com o momento. Tem algo de icônica nela. Estou falando da minha relação com a cidade que nasci, mas pode ser a canção de não-pertencimento de qualquer pessoa que não está confortável onde está. Tem que ter coragem para gravar essa música! Muita gente com uma leitura rasa pode me ver como elitista: ”Ah,ele se sente bom demais para a cidade dele, que imbecil!”. Mas convido todos há passar um mês em Salvador. Depois a gente conversa. Já “Tão Sós” era uma música lenta, lenta, lenta. Um lamento: ”Somos tão sós e nada preenche o vazio / Ficamos só nós entre a cegueira, a culpa e a razão”. Imagina uma letra dessa lenta numa sequência mântrica de acordes? Uma tortura!!! Acelerei os “bits” e ela ficou bem mais agradável… ou menos desagradável.

Quando vão vir os shows para lançamento do disco?
Era disso que eu estava falando quando disse que a lei do “eu mesmo faço” vai valer pro “ao vivo” também. Vou sozinho pro palco, voz e violão, mas não um voz e violão bunda mole. Vou levar umas programações, uns loops, usar uns efeitos no violão e na guitarra pra não ser um espetáculo tedioso. Quero que seja um show forte, com musicas desde a Maria Bacana até “Enfim Terra Firme”. Pode ter um cover ou outro, mas o foco é contar a minha história musical em uma hora, uma hora e meia. Já comecei arranjar e ensaiar esse formato para começar a fazer shows em meados de Setembro. Quero viajar com esse show, mas tem a viabilidade de custo…

O que você acha do cenário musical atual? O que aconteceu com a música?
Está um lixo, né? Chegamos oficialmente no fundo do poço com “tchêtchêrêrêtchêtchê… vômito e estrume pra você”. Falta canção pra arejar. O país está crescendo, mas a trilha sonora está péssima. Falta pluralidade. O Brasil sempre gostou de porcaria, mas tínhamos opção. Por acaso estou assistindo um “Globo de ouro” retransmitido no Canal Viva, e em outros tempos, no programa que ranqueava os artistas populares, você poderia ver Sidney Magal, Cátia e outras porcarias, mas tinha gente boa fazendo musica nas paradas, como um Lulu Santos, etc… Hoje não temos opção no mainstream nacional. Será que é cíclico e vai melhorar? Espero que sim.

– Carlos Eduardo Lima (@celeolimite) é jornalista e assina a coluna Sob o CEL no Scream & Yell e é um dos responsáveis pelo podcast Atemporal -> http://atemporal.podomatic.com/

Leia também:
– “Enfim Terra Firme”, André Mendes: Para ouvir, se aquecer e abrir um sorriso (aqui)
– “Bem-Vindo a Navegação”, André Mendes: Pequenas historietas de amor (aqui)

6 thoughts on “Entrevista: André Mendes

  1. Muito boa a entrevista. Conheci o André somente com o “Bem-Vindo a Navegação”, que gostei muito. E este “Enfim Terra Firme” consegue ser ainda melhor. Música leve, bonita, feita com coração. Ou em uma expressão usada por ele na entrevista: belíssimas “canções para arejar”. O ouvido agradece muito. Eu mais ainda.
    =)

  2. Faz tempo que eu não vejo uma entrevista sincera assim.O disco também parece muito sincero.Gostei.O André conseguiu o que queria, dá vontade de ouvir o disco de novo e de novo.

  3. Concordo! Direto pra lista de melhores do ano.E é um disco simples e pessoal.gostei muito,já gostava da Maria Bacana do André Mendes que conheci pela programação da MTV nos anos 90…Aquela MTV que não volta mais…

  4. o disco e a entrevista estao muito bons. Um trabalho bastante original e com personalidade (nessa terra onde impera o axé). Ouçam também bem-vindo à navegação.

  5. Disco gostoso de ouvir, de verdade! Direto pra lista dos melhores do ano mesmo. Já tinha gostado do Bem-vindo à navegação; este é ainda melhor. 🙂

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