Gravação de DVD: Mestre Vieira

texto por Ismael Machado
fotos de Renato Chalu

Quarta-feira, 10 de julho, 19h30, Belém. A fila em frente ao Teatro da Paz faz uma espécie de L, quase alcançando a Avenida Assis de Vasconcelos. Quinta-feira, 11 de julho, 19h. Pessoas se aglomeram e se espremem em frente ao gradil do teatro. Ameaçam invadir. Um telão é colocado na rua para que, minimamente, quem queira possa acompanhar o que se passa no palco do teatro.

Se havia ainda quem duvidasse do atual poder do guitarrista Mestre Veira em atrair um público diversificado e numeroso, deve ter se convencido rapidamente do contrário. O Teatro da Paz se viu lotado em dois dias de gravação do show que resultará em um dos braços do projeto de documentário da jornalista Luciana Medeiros, tendo o criador da guitarrada como foco principal. Algumas pessoas presentes compartilhavam da mesma experiência de Vieira. Era a primeira vez que pisavam num dos principais símbolos de uma riqueza produzida em uma Belém de outrora.

Na primeira noite, a chuva que ainda se mantém nas noites de verão da cidade, deu uma trégua. Permitiu, por exemplo, que a caravana vinda de Barcarena, com familiares, amigos e integrantes do fã-clube de Vieira chegassem sem atropelos. Nos camarins, um misto de nervosismo e expectativa. “Quero que todo mundo saia satisfeito”, resumia o diretor musical Félix Robatto.

“É massa estar aqui. Vieira é como um ídolo”, dizia sinteticamente o guitarrista Fernando Catatau, um dos convidados da primeira noite. “Dentro do possível estou tranqüila”, afirmava Iva Rothe, outra convidada. Dez minutos antes da entrada no palco, Robatto passava as últimas recomendações, antes de um ‘Pai-Nosso’ rezado por toda a banda Dinâmicos, base da primeira noite. “Podem ficar descontraídos, conversar com o público. Só não pode falar sacanagem”, brincou Félix.

Foi uma primeira noite sem maiores atropelos, mas com paradoxos. Se a ideia de dar a Vieira um palco que retratasse a importância singular dele para a música paraense é indiscutivelmente necessária e oportuna, o senão fica pela própria sisudez do teatro. A música de Vieira não é feita essencialmente para elocubrações mentais. É música para, como se diz no popular, ‘resfolegar no cangote’, ou seja, dançar e dançar a noite inteira. Foi isso que alguns mais entusiasmados tentaram fazer. Foram chamados à atenção. O Teatro da Paz não comporta esses arroubos.

De certa forma isso acaba sendo um balde de água fria. As palmas não dão a dimensão que os pés gostariam de expressar. Entre os membros superiores e os inferiores, um mundo se abre e se afasta. Alguns convidados acabaram por refletir isso. Entre a simpatia e o carisma até sexual de Iva Rothe e a melhor participação da primeira noite, a de Lia Sophia, alguns destoaram. Maestro Pardal e o próprio Catatau não trouxeram – ou não conseguiram trazer – novas inflexões ao som que lhes era apresentado. Soaram indistintos.

Na segunda noite, a chuva se fez presente. E o público mais ainda. Por pouco, entre pequenos atropelos e decisões de última hora, não se via uma invasão do teatro. Muita gente queria ser testemunha do momento, de certa forma histórico, como ao final da primeira noite, quando Vieira se misturou ao público para fazer o que mais sabe, enfeitiçar pessoas com dedilhados de guitarra.

Mais diversa, a segunda noite também se mostrou mais complicada tecnicamente. Nada que comprometesse o resultado final, mas servindo para deixar Félix Robatto à beira de um ataque de nervos. Vieira mostrava-se sereno. De calça branca e camisa florida azul, parecia mais solto que na primeira noite. Os convidados estiveram, quase sempre, à altura. Trio Manari, por exemplo, trouxe um dinamismo ainda maior ao som de Vieira. Depois, com Sebastião Tapajós e Paulo Moura, souberam conduzir o público a um caminho mais ameno.

Felipe e Manoel Cordeiro, pai e filho, souberam manter o pique. Com Pio Lobato, o baterista Vovô e a banda que tem acompanhado Vieira, há um entrosamento genuíno, baseado em respeito e admiração mútuos. Gaby Amarantos, lipoaspirada e exibindo um corpo de generosas curvas, entrou com o carisma de sempre.

Mas foi ao final, com a banda formada por parentes e levando as músicas quase sem intervalos, que Vieira foi quebrando o gelo que ainda poderia haver. À vontade nos solos e nas performances, o barcarenense mostrou porque é chamado de Mestre. Pôs o público onde quis. No colo, nas mãos, nos ombros. Conduziu-o com carinho e foi por ele conduzido também.

Quando o último acorde se fez, o jeito foi ficar de pé e aplaudi-lo. “Eu mereço esse sucesso, não mereço?”, dizia o velho guitarrista em mais uma de suas intervenções entre ingênuas e vaidosas. Ao final, com todos os convidados no palco, Vieira fez um último agradecimento. “Ao meu amigo Pio Lobato. Sem ele eu não teria esse sucesso”. Só quem não acompanhou a música paraense na última década há de negar o elo entre mestre e pupilo. Criador e criatura. Vieira mais uma fez soube fazer a própria história.

– Ismael Machado é repórter especial do Diário do Pará e autor do livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui.

Leia também:
– Duas guitarras, um Brasil: Herbert Vianna encontra Mestre Vieira, por Ismael Machado (aqui)
– Felipe Cordeiro lança um disco conciso com jeitão de manifesto, por Elvis Rocha (aqui)

2 thoughts on “Gravação de DVD: Mestre Vieira

  1. Isso sim é música que o Pará devia expandir de suas fronteiras e não o engodo da Gaby Amarantos.
    Tenho um disco do Mestres da Guitarrada.
    Ótimo.

    Ps. Ahh, pô, teatro lindo!

  2. Temos naquela guitarrinha final de Invejoso, do Arnaldo Antunes, a influência da guitarra de Vieira. Pio Lobato costuma dizer que existem duas formas de tocar guitarra que são únicas no Brasil. a da guitarrada paraense e a guitarra baiana, do trio elétrico antigo.

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