Bob Dylan ao vivo em São Paulo, 2012

Texto e fotos por Marcelo Costa

70 anos de idade. 50 anos desde o lançamento de seu primeiro álbum, em 1962. Bob Dylan já ganhou Grammy, Oscar, Globo de Ouro e um bom dinheiro com seus discos, e poderia passar o resto de seus dias enfurnado em uma fazenda, mas escolheu dedicar sua vida à estrada. Após quatro anos de sua última passagem pelo Brasil (tempo em que lançou dois discos – “Together Through Life” e “Christmas in the Heart”), a “Turnê Que Nunca Termina” voltou para São Paulo, no último sábado, 21, desta vez ocupando um local maior do que em 2008, o Credicard Hall, e com um repertório muito mais trabalhado, resultando em uma noite inspirada.

Ok, a voz de Dylan, ainda que muito melhor do que na última passagem, continua trovejando, falhando e dificultando o reconhecimento de algumas canções (seria interessante fazer um quiz com os espectadores para saber quais canções eles – acham que – reconheceram), e sua insistência em mudar o arranjo das músicas também não ajuda ao fã de última hora (aquele que aguarda a canção tocada igual ao CD), mas ainda assim assistir a Bob Dylan ao vivo é uma tarefa bastante agradável – principalmente para quem gosta de blues, r&b e rock clássico.

O primeiro ponto a favor desta noite surge da formação com acentuação mais roqueira do quinteto que acompanha o cantor. São dois guitarristas (Stuart Kimball, que também assume o violão, e Charlie Sexton, quase um devoto de Dylan no palco), um terceiro músico, Don Herron, que se alterna entre a steel guitar (que toca com eficiência, engrandecendo números como “Make You Feel My Love”, do álbum “Time Out Of Mind”, de 1997), o teclado e a guitarra, mais o baterista George Receli e o parceiro Tony Garnier, baixista que acompanha Dylan desde 1989. É uma formação bluezy, que parece sentir prazer na improvisação e em escudar o músico.

Algo que chama a atenção: a banda não toca para o público, mas sim para Bob. Os cinco integrantes não se exibem para a audiência, mas sim para Dylan. Todos eles tocam levemente virados para a esquerda do palco e não tiram o olho do compositor, que fica na lateral e marca as passagens com os dedos apontando quem deve conduzir o próximo trecho. Ou seja; das quase 7 mil pessoas presentes (os ingressos mais baratos esgotaram, mas ainda haviam lugares vazios nas filas de R$ 700 e R$ 900), apenas alguns seguranças não olhavam para Bob. De resto, todo o público e a própria banda admirava a lenda desfilando clássicos de várias épocas.

Como de praxe, o show começou com duas canções antigas, dos anos 60, desta vez “Leopard-Skin Pill-Box Hat” (que também abriu a primeira noite em São Paulo, em 2008) seguida de “Don’t Think Twice, It’s All Right” (com Dylan na guitarra arriscando alguns solos ásperos). Corte para 1999 e “Things Have Changed” (a canção tema do filme “Garotos Incríveis”, que lhe valeu um Oscar e um Globo de Ouro,) mostra um cantor de postura totalmente diferente da passagem anterior: bancando o crooner, com a gaita microfonada em uma mão, e deitando o pedestal do outro microfone (num estilo semelhante ao de Roberto Carlos) para terminar os versos com um sorriso no rosto, Dylan parece estar se divertindo, e o público segue com ele.

“Tangled Up In Blue”, uma das canções brilhantes de um de seus melhores álbuns (“Blood on the Tracks”, de 1975), surge densa, forte, abrindo caminho para “Beyond Here Lies Nothin’”, single de 2009 que nesta noite conta com quatro guitarras (Dylan numa delas) encorpando a canção. O público aplaude, entusiasmado, e o miolo do show é um teste para aqueles que levaram a sério a brincadeira do quiz (“Every Grain Of Sand”, do álbum “Shot of Love”, de 1981, por exemplo, não era tocada desde junho do ano passado), com “The Levee’s Gonna Break” impressionando numa versão blues, quebrada e cheia de improvisos.

Outro salto na máquina do tempo e “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” (1963) e “Highway 61 Revisited” (1965) sorriem para a plateia, que as reconhece logo nos primeiros segundos, e bate palmas. No teclado (ele diminuiu as canções que passa em frente ao instrumento desta vez: são 10 nas teclas, cinco no microfone e na gaita, e duas na guitarra), Dylan alterna-se entre mesclar as teclas brancas e pretas, conduzir a banda e se apoiar em uma das caixas de som para “ouvir” o som do quinteto – e sorrir, várias vezes.

O trecho final do show tem sido praticamente igual em todas as apresentações dos últimos dois anos: “Thunder On The Mountain”, um dos cavalos de batalha do ótimo “Modern Times”, de 2006, abre caminho com riffs de guitarra para uma tríade de hinos: “Ballad Of A Thin Man”, “Like A Rolling Stone” e “All Along The Watchtower”, em arranjos fiéis e perfeitamente reconhecíveis (embora difíceis de acompanhar na voz), fazem valer o ingresso, mas ainda falta o bis, e Dylan não economiza: “Blowin’ In The Wind“, em versão banda, com Bob partindo os versos no meio, e ainda assim arrancando gritos da plateia, fecha uma noite especial.

Quem esperava um repeteco dos shows de 2008 saiu ganhando com uma apresentação muito melhor. Os desconfiados, que seguiram o conselho de Beck, que certa vez escreveu que “todo mundo devia pagar ingresso só para ver o cara que escreve aquelas canções maravilhosas”, devem ter se surpreendido com a quantidade significativa de clássicos (foram oito canções dos anos 60 contra uma dos 70, uma dos 80, três dos anos 90 e quatro do novo século). Até aqueles que apenas conhecem “Blowin’ In The Wind“ e “Like A Rolling Stone” puderam se dar por satisfeitos. Se a voz do cantor incomodou em alguns momentos, a banda compensou com um dos melhores sons de um show de Dylan no Brasil.

Na portaria do Credicard Hall, alguns fãs arriscavam que esta passagem de Bob Dylan pelo Brasil seja a última turnê do cantor em solo pátrio, mas a animação do compositor e o repertório de hits faz suspeitar que Dylan está em paz com o palco, e que precisa dele porque, talvez, seja o único lugar em que se sinta realmente bem. Talvez ele esteja se escondendo do mundo enquanto peregrina por hotéis (após São Paulo, ele passa por Porto Alegre, Buenos Aires, Santiago, Monterrey, Guadalajara, Cidade do México, Berlim, Dresden… por enquanto a turnê está fechada até o final de julho com mais 23 shows!). Ou, ainda, talvez seja a única coisa que ele realmente saiba fazer (ou goste): cantar e dançar. O mito Dylan renasce todas as noites em algum palco do mundo. Enquanto puder ter isso, ele estará a salvo. E seu público também.

Set List
“Leopard-Skin Pill-Box Hat” (Blonde On Blonde, 1966)
“Don’t Think Twice, It’s All Right” (The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963)
“Things Have Changed” (The Essential Bob Dylan, 1999)
“Tangled Up In Blue” (Blood On The Tracks, 1974)
“Beyond Here Lies Nothin’” (Together Through Life, 2009)
“Make You Feel My Love” (Time Out Of Mind, 1997)
“Honest With Me” (Love And Theft, 2001)
“Every Grain Of Sand” (Shot Of Love, 1981)
“The Levee’s Gonna Break” (Modern Times, 2006)
“A Hard Rain’s A-Gonna Fall” (The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963)
“Highway 61 Revisited” (Highway 61 Revisited, 1965)
“Love Sick” (Time Out Of Mind, 1997)
“Thunder On The Mountain” (Modern Times, 2006)
“Ballad Of A Thin Man” (Highway 61 Revisitet, 1965)
“Like A Rolling Stone” (Highway 61 Revisitet, 1965)
“All Along The Watchtower” (John Wesley Harding, 1967)

Bis
“Blowin’ In The Wind” (The Freewheelin’ Bob Dylan, 1963)

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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– Bob Dylan ao vivo em São Paulo, 2008: retrato borrado da era de ouro do rock ‘n roll (aqui)
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– “The Other Side of Mirror: Bob Dylan at the Newport”, de Murray Lerner, é essencial (aqui)
– “Shadows In The Night”: Bob Dylan na sombra cantando Frank Sinatra (aqui)
– Original vs Versão: Bob Dylan e Skank (aqui)
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– “Bob Dylan – Letra e Música”: Um passatempo ok, mas… vá ouvir as originais (aqui)
– A bela trilha sonora do filme “I’m Not There”, de Todd Haynes (aqui)
– “I’m Not There”, o mais próximo que o público chegou de Bob Dylan (aqui)
– “No Direction Home”, a cinebiografia de Bob Dylan por Martin Scorsese (aqui)
– Bob Dylan, Martin Scorcese e a História Universal, por Marcelo Costa (aqui)

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