Levon Helm: 1940 / 2012

por André Takeda

Eu já repeti inúmeras vezes que praticamente fui educado pela Rádio Ipanema FM de Porto Alegre. E quando falo em educação, falo em educação de verdade, não apenas musical. Porque pode parecer ridículo, mas acredito que muito da minha formação como ser humano é consequência das bandas, discos e canções que amo. E foi na Ipanema que ouvi pela primeira vez The Cure, The Smiths, Joy Division, The Clash, Cascavelettes, De Falla, Replicantes e tantos outros artistas que me levaram a conhecer outros artistas em uma corrente que parece não ter fim.

Entre tanta gente legal que trabalhava na rádio, um dos meus prediletos sempre foi o Jimi Joe. Não apenas porque ele colocava novidades para tocar, mas, principalmente, por causa dos clássicos. Até hoje sou viciado em “Layla”, do Derek & The Dominos, porque quase todos os dias ela fazia parte de seu playlist. Lembro até que o Jimi nem dizia mais o nome da música. Apenas falava “agora vamos ouvir aquela”. Adorava isso. E ele também me apresentou a Neil Young, Bob Dylan e, claro, The Band.

A primeira vez que ouvi The Band com o Jimi, foi em um sábado pela manhã. Eu tinha colocado o meu rádio-relógio para despertar às 6. Se ainda me lembro bem, acordei cedo porque queria ver um jogo da Seleção em alguma Olimpíada. O mais impressionante é que o rádio começou a tocar exatamente na parte em que começa o solo de saxofone de “It Makes No Difference”, na versão ao vivo do disco “The Last Waltz”. Lembro até hoje desse momento porque ouvir aquilo me acordando foi quase como uma experiência out-of-the-body. Foi como uma revelação. Era como se Deus estivesse falando comigo e dizendo “André, de agora em diante você vai ouvir essa música pelo menos uma vez por semana”.

Mas, antes, eu precisava comprar aquele álbum. Um álbum triplo, que nem tinha mais para vender. E nos sebos da vida, custava o olho da cara. Totalmente fora do orçamento de um guri de 14 anos, que contava com a bondade dos seus pais para comprar mais discos do que ele merecia.

E é então que entra a Karina nessa história.

A Karina era inteligente, culta, supereducada, divertida e chamava a atenção por onde passava porque… Bem, porque ela era (e é) bonita demais. Alta, loira, olhos verdes e uma energia que a deixava mais linda ainda. A gente se conheceu no primeiro ano do que costumava ser o tal segundo grau. E muitos achavam que ela era meio assim nariz empinado, mas provavelmente era pura inveja. Nunca tive muito contato com ela, apesar de ter sido convidado para a sua festa de 15 anos no hotel mais chique de Porto Alegre. Até lembro que dei um perfume Anäis Anäis para ela.

Mas tudo mudou na metade do outro ano. Por motivos que não interessam agora, a Karina e sua turma de amigas pararam de se falar. E ela decidiu mudar de “território” na sala de aula. Um dia foi parar lá no fundo da classe, onde eu costumava sentar. E, assim, ficamos amigos. Muito amigos. Provavelmente eu devo ter gravado dezenas de mixtapes para ela, porque até de música começamos a conversar.

A amizade não parava de crescer, mas sempre evitei dar corda a algo mais porque a Karina era literalmente muita areia para o meu caminhãozinho. Mas, em um sábado de maio, eu e ela fomos juntos a um show da Legião Urbana. E, antes do show começar, lá na arquibancada, eu e ela tivemos o seguinte diálogo.

“Takeda, preciso te dizer uma coisa.”
“O quê?”
“Eu tou apaixonada por ti.”
“O quê?”
“Eu tou apaixonada por ti.”
“Ah, deixa de brincadeira, que o show já vai começar.”

Falei essa última frase com tanta convicção que ela ficou muda. E não foi por mal. Tinha certeza absoluta que era uma brincadeira. No meio do show ela voltou com o assunto.

“Takeda, eu tou falando sério.”
“Tá, tá, eu acredito. Vamos ver o show.”

O show terminou, cada um voltou para a sua casa, e nada aconteceu.

No outro dia a Karina me ligou, e disse que estava na casa de uma amiga. Elas estavam sozinhas e perguntou se eu queria passar por lá. Era do outro lado da cidade. Mesmo assim, peguei um ônibus e fui. Naquela noite ela me puxou para um canto, repetiu tudo de novo e praticamente me agarrou.

Era o segundo beijo da minha vida.

E eu e a Karina começamos a namorar.

Também já devo ter escrito em algum lugar sobre o meu ritual das quartas. Com dinheiro ou sem dinheiro, percorria todas as lojas de discos do centro de Porto Alegre. E esse tour sempre era feito na mesma ordem, terminando na Casa Coelho, onde eu era amigo do gerente e podia ouvir todos os álbuns que queria. Algumas vezes a Karina participava da peregrinação, mas quase sempre deixava o namorado ir sozinho.

Acho que foi quase um anos depois que começamos a namorar que li a notícia de que o álbum “The Last Waltz” iria ser relançado no Brasil. Comentei com ela sobre o quanto adorava “It Makes No Difference”. E que tinha escutado outras músicas como “The Weight”, “I Shall Be Released” e “Out Of The Blue”, e que eu precisava daquele disco. Meu objetivo era economizar dinheiro da mesada para comprá-lo.

Algumas semanas depois, lá estava eu na Casa Coelho. Como sempre, fui direto para a parte dos lançamentos. Fiquei olhando os vinis e, de repente, vejo um disco enrolado em um papel de presente. Achei engraçado e perguntei ao gerente o que era aquilo. Ele me disse para olhar bem. Foi então que li: “Para André Takeda. Te amo, Karina”. Fiquei chocado. Tirei o papel de presente e, claro, vi a capa amarela do “The Last Waltz”. Provavelmente devo ter chorado. E o gerente ainda me disse “quarta passada tu não veio aqui, este disco tá te esperando há dias”.

Sei que a Karina hoje, tão feliz com os seus dois lindos filhos, nem deve lembrar dessa história. Mas este presente, ainda mais com essa surpresa, foi uma das coisas mais bonitas que alguém já fez por mim. É algo que nunca vou esquecer. Outro dia, revirando meus vinis em Porto Alegre, encontrei o “The Last Waltz”. E até hoje, se olharmos bem para a capa, dá para ver a marca, assim em baixo relevo, que a caneta deixou quando ela escreveu aquela frase no papel de presente.

“Para André Takeda. Te amo, Karina.”

Você sabe, diaba, que eu também te amei, apesar de toda a nossa juventude e imaturidade.

E muito.

Desde então, faço exatamente o que Deus me disse naquela manhã de sábado. Ouço “It Makes No Difference” pelo menos uma vez por semana. E, às vezes, quando dou por mim estou ouvindo apenas The Band por dias e dias seguidos. Não preciso dizer o valor que sua música tem para a história do rock. A internet está aí para isso. Tudo o que tenho a dizer é que nunca vi tanto talento e sentimento em uma única banda. E, entre estes talentos fora do comum, estava o baterista e vocalista Levon Helm. Que faleceu na quinta-feira, 19 de abril, aos 71 anos.

Sempre achei o Levon um cara muito boa praça. Agora me arrependo muito por ter tido a chance de ver um show dele com o Wilco, mas que deixei de ir por preguiça de viajar um dia mais.

Mas o “The Last Waltz” sempre vai continuar aqui comigo, me lembrando porque amo tanto o rock. Trazendo memórias de um amor inocente. Consolando a minha dor em momentos complicados como os que tive ano passado.

Obrigado, Jimi.

Obrigado, Karina.

E, sobretudo, obrigado, Levon.

Graças a vocês hoje posso dizer que já sei qual é a música que define a minha vida.

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André Takeda (siga @andretakeda) é autor dos livros “O Clube dos Corações Solitários” (2001), “Cassino Hotel” (2004) e “A Menina do Castelinho de Jóias” (2011). É colaborador de primeira hora do Scream & Yell e assina atualmente o Tumblr Eu Quero Ser Amigo, publica suas fotografias (como a deste post) no http://www.flickr.com/photos/andretakeda/ e assina no Scream & Yell a coluna Break up Book.

Download: baixe “Ao Vivo”, coletânea de textos de André Takeda em PDF (aqui)

Leia também:
– Break up Book #01: “All I Have To Do Is Dream”, Tashaki Myaki (aqui)
– Break up Book #02: “Blue Skies”, Noah and The Whale (aqui)
– Break up Book #03: “The Whole of The Moon”, Idiot Wind (aqui)
– Break up Book #04: “Emmylou”, First Aid Kit  (aqui)

13 thoughts on “Levon Helm: 1940 / 2012

  1. Muito legal o texto! Também tenho um sentimento muito forte toda vez que escuto The Band. É uma banda totalmente única.

    “Tudo o que tenho a dizer é que nunca vi tanto talento e sentimento em uma única banda”. Concordo plenamente contigo, André!

    Um abraço.

  2. Ler qualquer coisa do Takeda é estar diante de grandes coisas. Quando eu acho que já sei o que vai vir no próximo parágrafo ele me interrompe com uma música, com um parênteses, com uma fotografia, com alguma coisa boa, ainda que seja uma lembrança que doa. Às vezes a dor é minha, mas ele nem sabe disso e portanto não deve fazer de propósito… risos!!! Eu adoro ler esse sujeito!

  3. Pô cara, fiquei muito emocionado com o texto e corri ver/ouvir The Band. Eu também sempre gostei muito de “It makes no difference”…Eles faziam músicas simples, com cheiro de coisa (arte) feita entre amigos…Parabéns.

  4. Cara, excelente texto. Somente quem conhece mesmo o som da The Band sabe o que significa sua frase “…nunca vi tanto talento e sentimento em uma única banda”.

    Parabéns e obrigado por lembrar do eterno mestre Levon Helm.

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