Morrissey e o Brasil da Copa de 82

Texto e fotos por Marcelo Costa

Dia quente em Rosário, uma cidade com mais de um milhão de habitantes que fica a cerca de quatro horas de ônibus de Buenos Aires (oito de trem, mas eles só circulam uma vez ao dia apenas durante a semana). As ruas estão vazias, as sorveterias cheias, mas mesmo quando a noite cai não se vê muita gente circulando. Parecem estar todos em casa, bebendo uma cerveza ou, quem sabe, na sede da Igreja Maradoniana, inaugurada aqui – apesar da cidade ser a terra de Lionel Messi.

Anexo ao bonito Alto Rosário Shopping, lotado como todos os shoppings do mundo aos sábados, fica o Centro de Convenções Metropolitano, que nesta noite recebe Morrissey em sua terceira data argentina desta turnê (e que já teve shows de Guns N’ Roses, Joe Cocker e Roxette). O público, cerca de 2 mil pessoas, toma aproximadamente metade da sala, e o tamanho da área vip, com um imenso espaço vago à esquerda do palco, faz imaginar que a produção esperava mais rosairenses no local.

Kristeen Young, a jovem cantora que vem abrindo os shows recentes do britânico, tem apenas alguns poucos metros de palco para se apresentar, mas usa bem o pequeno espaço em uma performance solo vigorosa que deixa uma dúvida: ela nasceu com o sangue de PJ Harvey nas veias, mas sonha em ser Bjork (ou Tori Amos), ou nasceu com o sangue de Bjork e sonha em ser PJ Harvey (ou Tori Amos)? Empolgado (ou caridoso), o público aplaude os clichês da garota, que entretêm os presentes por quase 40 minutos e deixa o palco emocionada.

O show de Morrissey começa cerca de meia hora antes mesmo dele pisar no palco. É quando se inicia uma playlist de vídeos escolhida a dedo pelo cantor. São cerca de 12 pérolas de gente como Nico (aqui), Brigite Bardot (aqui), Sparks (aqui), Shocking Blue (aqui) e New York Dolls (aqui), entre outros, e este último numa performance incendiária de “Looking For a Kiss” em um programa alemão do meio dos anos 70. Vale a pena chegar antes para assistir ao revival. Morrissey entra acompanhado de sua banda, que se curva para o público exibindo uma camiseta com a seguinte declaração de amor ao semanário inglês de música: “NME IS SHIT”.

Em Buenos Aires, no dia seguinte, o roteiro de introdução é um pouco diferente. O campo de rúgbi do Clube GEBA, na bela área de parques de Palermo, está prestes a receber cerca de 12 mil almas, e uma imensa fila com mais de um quilometro de extensão invade o parque. O tempo, assim como em Rosário, está quente, e no parque lotado se misturam fãs, patinadores, famílias fazendo piqueniques, casais andando de pedalinho no lago, e alguns raros espertos, que passaram no supermercado antes, bebendo cerveja, cuja venda é proibida no local.

Kristeen surge de branco (em Rosário ela estava num vestido preto cuja gola parecia ter adquirido vida própria) e novamente conquista o simpático público argentino. Fisicamente ela lembra um pouco Zooey Deschanel, mas parece ter muito mais sangue nas veias do que a queridinha indie. Seu show segue o mesmo script do dia anterior: uma música esmurrada no teclado alternada com outra de base pré-gravada em que a cantora parte para o centro do palco e exercita sua voz e alguma coreografia. Morrissey e banda entram novamente após a sessão de vídeos, desta vez com a camiseta “WE HATE WILLIAM AND KATE”.

O set list dos dois shows é praticamente igual – única mudança: “Speedway”, que rolou em Rosário, saiu do set list em Bue para “Ouija Board, Ouija Board” -, mas o clima do público em Buenos Aires é um pouco melhor. O roteiro mantém praticamente as mesmas piadas entre as canções (incluindo o arremesso de sua camisa suada). A banda começa com uma vigorosa versão de “First of The Gang To Die”, emenda com “You Have Kill Me” e segue com “You’re The One For Me, Fatty”. O público vai a loucura, faz coro e a noite promete. Numa pequena pausa para os músicos trocarem a guitarra pelo violão, Morrissey conta que andou pelas ruas de Buenos Aires (ou, no caso de Rosário, do shopping), ficou triste e voltou para o hotel e chorou, chorou e chorou.

“There Is a Light That Never Goes Out” é a quarta e emociona. A sonoridade simples dos Smiths consegue ser transposta de maneira exemplar pelo quinteto que acompanha Morrissey, e o vocalista, com poucos sinais de desgaste na voz, grifa o “crrrrrrash” do refrão. “Everyday is Like a Sunday” surge na sequencia, e o público canta junto. A batida mexicana da contagiante “When Last I Spoke to Carol” serve para tirar os casais do transe das duas baladas anteriores, mas “Alma Matters” e “ I’m Throwing My Arms Around Paris ” os devolvem ao clima de romance (e de cinismo).

Esse miolo do show, que ainda tem uma boa “Ouija Boad Ouija Board” e uma confusa versão da ótima (e indiana) “I Will See You In Far Off Places” (que permite ao cantor sacanear os EUA), inicia o trecho de declínio da apresentação, que, veja só, ganha reforço no grande momento da noite, desta nova turnê, e dos Smiths: “I Know It’s Over” parte corações. Morrissey faz questão de grifar várias frases, e eis uma balada repleta de frases fortes: “Se você é tão divertida e inteligente então por que está sozinha está noite?”, ele pergunta, para proclamar: “É tão fácil rir, é tão fácil odiar, é preciso fibra para ser gentil e carinhoso”. Afinal, “o amor é natural e real, mas não para pessoas como eu e você”. São seis minutos em que o ar parece parar (o trem no alto do morro também), e daí em diante o show perde em clima e empolgação.

Uma versão sujona de “Black Cloud”, das boas canções do último álbum, serve como último respiro, mas surge então “Meat is Murder”, densa, tensa, teatralizada, psicodélica, com Morrissey se jogando no palco como um animal sendo morto no pasto enquanto seus músicos disparam riffs e microfonias e no telão dezenas de bois são encaminhados ao matadouro. O público aplaude timidamente ao final, e toda encenação (e as baladas acumuladas no meio) tiram o pique da audiência, reflexiva, que passa a assistir (e comemorar) timidamente mesmo quando o cantor diz que as Malvinas são da Argentina e pede desculpas por Margaret Thatcher antes de emendar “Please, Please, Please Let Me Get What I Want”.

É outro show totalmente diferente da primeira meia hora, em que o público, tal qual torcida de futebol, participava cantando e pulando. Agora todos contemplam, e uma música nova, “Scandinavia”, serve com balde de água fria, e nem “How Soon Is Now?” – que, ok, é um hino, mas não é uma música incendiária, e sim mais climática – consegue salvar o final da apresentação. O público aplaude, gritos de “Morrissey, Morrissey” são ouvidos aqui e ali, mas a epifania está longe, muito longe de ser a mesma de quando o cantor se apresentou no Personal Fest, em Buenos Aires, em 2004.

Tanto em Rosário quanto na capital argentina, a apresentação termina de forma nebulosa e estranhamente depressiva. O melhor retrato do cenário é dado pelo tecladista, mexicano, que na volta do bis em Buenos Aires tenta empolgar os presentes: “Vamos, Buenos Aires, gritem por este homem!” O público até tenta, algum barulho se ouve, e o tecladista pede “mais duro”, mas o grito sai contido, e Morrissey (meio contrariado) termina a apresentação com “One Day Goodbye Will Be Farewell”, outra boa faixa de “Years of Refusal”, álbum cujo título pode até fornecer uma explicação para o coito interrompido, que deixa uma sensação de recusa no ar… e de que “podia ter sido melhor”.

Em 2004, no Personal Fest, “How Soon Is Now?” foi a segunda música do set list (após a abertura bombástica com “First of The Gang To Die”), “Bigmouth Strikes Again” a quinta, “Irish Blood, English Heart” a décima e “Rubber Ring” e “The More You Ignore Me, The Closer I Get” as duas últimas. No bis, “There Is a Light That Never Goes Out”. E o público foi feliz pra casa. Não tinha “I Know Is Over”, o grande tour de force dessa nova turnê, e que ela permaneça no repertório, mas ou ela ou “Meat is Murder” tem que ficar para o bis, como gancho para a saideira, alguma faixa que faça o público deixar o local do show enlevado / cantarolando.

O repertório de um show, como explicou Lou Reed certa vez, é uma “joia in progress”. Muitas vezes não é questão de quais músicas se escolhe, mas principalmente da ordem em que elas são dispostas no set list. Tanto em Rosário quanto em Buenos Aires, momentos de beleza intocável sobraram na apresentação de Morrissey, mas a sensação final é a de ter acompanhando a seleção brasileira de futebol na (fatídica) Copa da Espanha, em 1982: um jogo lindo, com vários momentos inesquecíveis, mas que saiu sem o título de campeão do mundo.

Ainda assim, apesar da sensação amarga, o show é bom. Morrissey mantém uma voz cristalina e potente – que abandonou muitos de seus “parceiros” dos anos 80. Mais: ele canta pontuando as frases, destacando aquilo que saber fazer melhor: suas letras. A banda é eficiente e valoriza desde o arranjo suave de uma balada como “Everyday Is Like Sunday” até a porrada de “Black Cloud” (preste atenção na mão pesada do baterista e na condução do maestro Boz Boorer, o chefão em cena), mas um show é tudo isso, e um pouco mais. Faltou fechar com chave de ouro na Argentina. Agora é a vez de Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro: quem sabe o jogo não vira. Talvez dependa da torcida…

– Marcelo Costa é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

Leia também:
– Discografia Comentada: de “Viva Hate” até “Years of Refusal”, todos os discos (aqui)
– Assista a dois vídeos de Kristeen Young abrindo para Morrissey na Argentina: 1 e 2
– Morrissey na América do Sul 2012: todas as datas e preços, por Marcelo Costa (aqui)
– Morrissey ao vivo no Benicàssim, 2008, por Marcelo Costa (aqui)
– Morrissey ao vivo em Buenos Aires, 2004, por Marcelo Costa (aqui)
– Morrissey ao vivo no Rio de Janeiro, 2000, por Gisele Fleury (aqui)
– “Mozipedia”: uma enciclopédia sobre Morrissey e os Smiths, por Marco Antonio Bart (aqui)
– As duas cerejas do bolo “Greatest Hits”, de Morrissey, por Marcelo Costa (aqui)
– “Ringleader Of The Tormentors”, de Morrissey: um Deus da música pop adulta (aqui)
– Um grande fã de Smiths tende a ser um grande fã de Suede, por Eduardo Palandi (aqui)
– “You Are The Quarry – Special Edition”, Morrissey, por Marcelo Costa (aqui)
– Matérias Antológicas: “Morrissey, o maior inglês vivo”, The Guardian (aqui)

03/03/2012 – Set list do show em Rosário
01- First In The Gang To Die
02- You Have Killed Me
03- There Is A Light That Never Goes Out
04- Every Day Is Like Sunday
05- You’re The One For Me, Fatty
06- When Last I Spoke To Carol
07- Black Cloud
08 -I Know It’s Over
09- I’m Throwing My Arms Around Paris
10- Let Me Kiss You
11- Alma Matters
12- Speedway
13- Please Please Please Let Me Get What I Want
14- I Will See You In Far-Off Places
15- Meet Is Murder
16- Scandinavia
17- How Soon Is Now?

Bis
18- One Day Goodbye Will Be Farewell

04/03/2012 – Set list do show em Buenos Aires
01- The First of the Gang to Die
02- You Have Killed Me
03- You’re The One For Me, Fatty
04- There Is A Light That Never Goes Out
05- Everyday Is Like Sunday
06- When Last I Spoke To Carol
07- Alma Matters
08- I’m Throwing My Arms Around Paris
09- Ouija Board, Ouija Board
10- I Will See You In Far-Off Places
11- I Know It’s Over
12- Let Me Kiss You
13- Black Cloud
14- Meat Is Murder
15- Please, Please, Please Let Me Get What I Want
16- Scandinavia
17- How Soon Is Now?

Bis
18- One Day Goodbye Will Be Farewell

Set list dos shows em Belo Horizonte (07/03/2012) e no Rio de Janeiro (09/03/2012). Morrissey tirou a nova e inédita “Scandinavia” do show, trouxe a porrada “Black Could” pro começo, incluiu “Still Ill” e fez um final com três canções dos Smiths e o grande single do último disco. Melhor do que na Argentina.
01- First Of The Gang To Die
02- You Have Killed Me
03- Black Cloud
04- When Last I Spoke To Carol
05- Alma Matters
06- Still Ill
07- Everyday Is Like Sunday
08- Speedway
09- You’re The One For Me, Fatty
10- I Will See You In Far-Off Places
11- Meat Is Murder
12- Ouija Board, Ouija Board
13- I Know It’s Over
14- Let Me Kiss You
15- There Is A Light That Never Goes Out
16- I’m Throwing My Arms Around Paris
17- Please, Please, Please Let Me Get What I Want
18- How Soon Is Now?

Bis
19- One Day Goodbye Will Be Farewell

Sugestão pessoal de mudança na ordem das canções do set list para o Brasil (mantendo as mesmas músicas dos dois últimos shows na Argentina mais um bônus que vem sendo tocado – caso o público mereça)

01- The First of the Gang to Die
02- You Have Killed Me
03- You’re The One For Me, Fatty
04- Scandinavia
05- How Soon Is Now?
06- Everyday Is Like Sunday
07- When Last I Spoke To Carol
08- Alma Matters
09- I’m Throwing My Arms Around Paris
10- I Will See You In Far-Off Places
11- Let Me Kiss You
12- Meat Is Murder
13- Please, Please, Please Let Me Get What I Want
14- Black Cloud
15- Speedway
16- One Day Goodbye Will Be Farewell
17- There Is A Light That Never Goes Out

Bis
18- I Know It’s Over
19- Still Ill

10 thoughts on “Morrissey e o Brasil da Copa de 82

  1. Só uma pessoa que vai a muitos shows e gosta de música realmente poderia escrever um texto tão cristalino como este. Mais uma vez vou perder a passagem de Morrissey pelo Brasil, não estarei na torcida, mas, de longe, vou torcer para que o público brasileiro consiga dar o clima certo.

  2. Isso é praga da Thatcher, haha! Quem mandou puxar saco dos argentinos quanto à questão das Malvinas? =P
    Brincadeiras à parte, tomara que o setlist dos shows brasileiros seja mesmo um pouco diferente. (E, quanto a “calor humano”, com certeza o Brasil não decepcionará Moz; pode ter certeza que vai ter gente cantando de cor até canções do Years of Refusal)
    Adoraria que o bis fosse com I Know It’s Over e Still Ill, e que ele NÃO tocasse Meat is Murder, na minha opinião uma das músicas mais fracas dos Smiths.
    Ah, e torço por um milagre: que ele toque Rubber Ring ou Death of a Disco Dancer.

  3. Já tinha reparado isso em Glastonbury, a partir da metade o show – que é excelente – vai ficando morno por causa da escolha das músicas.

  4. Fui ontem no show do Rio. O show foi fantástico! De fato ele mudou a ordem das faixas, e isso foi decisivo para que o público continuasse empolgado até o fim. Foi uma ótima idéia deixar os clássicos dos Smiths para a metade final. O destaque do show foi mesmo I Know It’s Over.

  5. Mestre,claro que pra um fã tudo é perfeito mas vendo de fora se conseguissem manter a mesma vibe que essa 3 musica ao longo do show “First of the Gang to Die” “You Have Killed Me” “Black Cloud” seria outra coisa. “You’re The One For Me, Fatty “poderia sair fácil. E fechar com “One Day Goodbye Will Be Farewell” não tem nada a ver.

Deixe um comentário para Manoel Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.