Cohen: classe, dignidade e elegância

por Gabriel Innocentini

“Old Ideas”. Leonard Cohen fez questão de deixar claro desde o título: estamos em mundo de valores antigos. O que não significa dizer valores retrógrados. Quando cantou “The Future”, no começo dos anos 1990, o “godfather of gloom” já dava como certa a degradação na maneira com que os seres humanos se relacionavam. A questão que se impunha era: como viver nessa terra desolada? “Old Ideas” é sua melhor resposta a tal interrogação.

“Going Home” abre o disco com um breve coro feminino, como se estivéssemos em um lugar sagrado. É o retorno de um mito, afinal. A primeira coleção de canções inéditas em oito anos. Em tom jocoso, o compositor subverte essa aura divina, recitando de modo monótono: “Amo conversar com Leonard Cohen / Ele é um esportista e um pastor / Ele é um bastardo folgado”.

Para entender o retorno deste mito é preciso saber o motivo que o levou a voltar a compor e a cantar. Se dependesse de Cohen, ele ainda estaria meditando sobre a vida num mosteiro budista, local em que talvez tenha passado mais de metade de sua existência – vem daí esse desapego com a própria pessoa, um humor agora depurado pela finitude da vida.

Para azar dele, e sorte nossa, sua empresária roubou todas as suas economias, fazendo com que Cohen se dispusesse a voltar aos palcos em uma longa turnê (que rendeu dois álbuns ao vivo: “Live in London”, de 2008, e “Songs From the Road”, 2010) e às gravações. Isto é, seu retorno surge a partir da corrupção de alguém em quem o “grocer of despair” confiava. Assim como os salmistas oferecem suas canções a Deus, Leonard Cohen nos oferta suas dúvidas: como ser verdadeiro com os outros, tanto quanto se é verdadeiro consigo mesmo?

“Ele quer escrever uma canção de amor / Um hino ao perdão / Um manual para viver com a derrota”. São ideias antigas, de dignidade e resistência, que Cohen transmite. Ele sabe que não precisa mais cantar, recitando quase todas suas meditações contra bases de Hammond (o que dá um som quente a muitas canções) e baixos sintetizados, auxiliado por coros delicados e discretas bases de bateria.

A sensação é de ouvir um grande monólogo, uma grande meditação sobre a existência, já que não temos grandes sobressaltos com a melodia e a harmonia das canções. É a depuração de um processo que começou em “Various Positions” (1984), com a adoção de sintetizadores, e se aprofundou com “I’m Your Man” (1988), quando Cohen uniu bases eletrônicas e orquestrações. Neste sentido, como não apresenta novidades nem arranjos complexos, “Old Ideas” pode levar alguém a pensar que é um disco mais para ser lido do que ouvido.

Não se pode, contudo, esquecer que a voz é um dos elementos principais do disco. Na época de “Various Position”, Leonard Cohen recebeu um conselho do mestre zen-budista Sasaki Roshi: “Você devia cantar mais triste. Porque você é assim”. Agora o conselho foi seguido à risca e, com o minimalismo dos arranjos, faz com que nossa atenção se volte inteiramente para sua voz.

Aos 77 anos, a voz de Cohen está esculpida pelo tempo, pelo álcool e pelo cigarro, uma voz de autêntica sabedoria, a quem se deve prestar atenção: “Mostre-me o lugar / onde a Palavra um homem se tornou / Mostre-me o lugar / onde o sofrimento começou”. Em alguns momentos ouvimos a penitência de um homem, bem ao estilo Cohen, é claro, como em “Anyhow”, que termina com o apelo “Tenha piedade de mim”. Vai longe o tempo em que escrever e cantar “Chelsea Hotel #2” parecia correto.

O início de “Darkness”, com seu dedilhado pontuado pelos bordões, pode fazer os fãs mais saudosos pensarem que o Leonard Cohen do período voz e violão está de volta. Mas logo com cerca de 30 segundos entram o teclado, a bateria e o coro, numa das canções mais empolgantes do disco, apesar do tema: “Apanhei as trevas / bebendo do seu copo / e perguntei: é contagiosa? / Você disse: beba-a”.

“Crazy Love” reverte a decepção nostálgica com “Darkness”. No entanto, ele adota um distanciamento frio: “Estou velho e os espelhos não mentem / Mas o louco tem lugares mais profundos / para se esconder do que dizer adeus”. Poucos compositores são capazes de escrever versos desse quilate hoje em dia. Em alguns momentos, como em “Amen”, Cohen se aproxima de uma expectativa rilkeana por Deus: “Estamos sozinhos e estou ouvindo / ouvindo com tanta força que chega a doer”.

Chegamos então a “Come Healing”, centro espiritual do disco. Se você não se arrepiar aqui é melhor deitar e não levantar mais. Um coro feminino canta as primeiras estrofes, pedindo pela cura do corpo e da mente. A canção flutua num espaço quase sagrado. Uma pausa curta e então Cohen, com a voz esmagada, mas inacreditavelmente firme, diminui suavemente a entonação, como se descesse à Terra para cantar: “Eis as portas da misericórdia / no espaço arbitrário /n enhum de nós merece / graça ou crueldade”. Este é o espaço onde o ser humano pode alcançar a redenção, ainda em plano terreno.

É difícil acreditar que o disco tenha ainda mais três canções depois deste testamento musical, poético e espiritual. Cohen louva o mundo material novamente em “Banjo”, folk despretensioso e até leve perto do que acabamos de ouvir. Com slide guitar e gaitinha “Lullaby” encaminha o disco discretamente para o final. “Different Sides” encerra o disco com uma letra complexa, que demanda muitas audições até uma compreensão mais clara sobre quais lados seriam esses (amorosos, religiosos, ambos talvez).

Alguém mais ranzinza pode dizer que tudo não passa de veneração a um mito que poderia estar enterrado. Que álbuns vindos da cova já se tornaram um novo nicho no mercado (Johnny Cash resgatado por Rick Rubin, Bob Dylan cantando do outro lado de lá em “Time Out of Mind”). Argumentos como esses soam mesquinhos diante de uma meditação desprovida de sentimentalismo, tão distante da superficialidade despreocupada e da exaltação vazia, comuns em nosso tempo. Cantar a morte não dá ibope.

“Old Ideas” continuará a ser ouvido, não apenas porque podem ser as últimas palavras de um mito, mas porque dizem respeito à existência, porque são transmitidas com sabedoria e gravidade, compaixão e humor. A obra e a vida de Cohen são uma busca de valores como disciplina, integridade e generosidade. Comportar-se com dignidade na hora da morte, este é apenas um dos legados de Leonard Norman Cohen, um homem que certa vez escreveu: “Se não se tornar o oceano / você vai ficar enjoado / todos os dias”.

– Gabriel Innocentini (siga @eduardomarciano) é jornalista e já escreveu para o Scream & Yell sobre Tom Waits (aqui), Thomas Pynchon (aqui), Charles Bukowski (aqui), Jorge Ben (aqui) e Bob Dylan (aqui)

Leia também:
– Os três primeiros discos de Leonard Cohen… em versões remasterizadas (aqui)
– Leonard Cohen – I’m Your Man, o documentário (aqui)
– Aos 74 anos, o poeta canadense lança seu quarto registro ao vivo (aqui)
– “Ten New Songs”, Leonard Cohen: uma voz grave desfilando belos versos (aqui)
– Três horas de Leonard Cohen em Paris, por Marcelo Costa (aqui)
– Leonard Cohen ao vivo no Festival de Benicàssim, por Marcelo Costa (aqui)

4 thoughts on “Cohen: classe, dignidade e elegância

  1. Não fossem os motivos financeiros alegados, Leonard Cohen teria um outro bom motivo para gravar “Old Ideas”: sua carreira terminaria mal com seu último disco de estúdio até então, “Dear Heather”. Poucas músicas valeram a pena nesse que parece ter sido um apanhado de sobras do “Ten New Songs”. Nunca a produção de Sharon Robinson soou tão entediante quanto em “Dear…”. Se Cohen morrer amanhã, terá encerrado sua trajetória musical de forma digna. Quantos artistas tiveram o mesmo privilégio?

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