Literatura: “Sweet Soul Music”, Peter Guralnick

por Tiago Ferreira

A primeira coisa que você deve saber ao ler este livro, lançado em 1999 e ainda inédito no Brasil, é que ele não é um mapa definitivo da soul music. Ao contextualizar o gênero, o autor Peter Guralnick se ateve a falar da música que surgiu no sul dos Estados Unidos e foi se desenvolvendo a partir de influências regionais, sem a interferência ou a invasão de managers citadinos de grandes capitais. Portanto, exclui-se aqui como se deu a evolução da Motown, ou mesmo relatos mais aprofundados sobre a carreira completa de cada um dos artistas envolvidos.

Todavia, estamos falando de uma obra essencial para entender a soul music. Guralnick conta desde o início como o gênero se gestou através da ousadia de Ray Charles ao unir música gospel com as primeiras manifestações musicais de rock’n roll que estavam surgindo na metade dos anos 1950. “Ele tem um choro santificado”, chegou a afirmar o bluesman Big Bill Broonzy. “Ele mistura o blues com espiritualidades. Deveria cantar em uma igreja”.

Na verdade, se não fosse pelo gospel e pela igreja, jamais o soul existiria. Outro grande artista do gênero que o autor, que não esconde sua admiração por ele, disseca bem em “Sweet Soul Music” é Solomon Burke. Jerry Wexler, um dos principais negociadores da Atlantic Records, também o tem como um dos maiorais, mesmo com o ‘grupo errante’ que o acompanhava.

Solomon era mais conhecido por ser pregador do que músico em si – e talvez isso o tenha acompanhado até o fim da vida, quando faleceu em 10 de outubro de 2010. Cada apresentação do músico, conta o autor, era quase que uma pregação: os espectadores contemplavam canções como “Just Out of Reach” e “Cry To Me” como se fossem libertados por um pastor que era o representante divino da música. “Em todos os lugares que ia, ele pegava uma comitiva de homens e, predominantemente, mulheres, que poderiam ser seus ajudantes em um drama deslocável que poderia se transformar, em um piscar de olhos, de momentos de alta comédia para passagens de extrema profundidade”.

Acostumado a se virar desde criança, em suas apresentações Solomon Burke tentava tocar outros tipos de negociações – por mais bizarras que elas possam parecer – para lucrar ainda mais. Isso enfezava os produtores. Não sem razão. Afinal, quem aceitaria que o próprio headliner de um show tivesse que comandar as finanças do carrinho de pipocas e outros quitutes durante a apresentação?

Além de traçar uma curta biografia de artistas como Ray, Solomon, Joe Tex, Dan Penn, Booker T. & the MGs, The “5” Royales, Sam & Dave, James Brown, Otis Redding, Wilson Pickett, Aretha Franklin e muitos outros, a principal contribuição de “Sweet Soul Music” é mostrar como se dava a dinâmica das gravadoras com os músicos.

A Atlantic, a principal gravadora de soul de que se tem notícia, começou em 1947 por Ahmet Ertegun com uma combinação, nas palavras de Guralnick, de “empreendimento criativo, sofisticação cultural, perspicácia nos negócios e um bom gosto que era raro em qualquer outro campo”. No final daquela década, eles contrataram Jerry Wexler, repórter da Billboard, que via na música negra um grande potencial. É que naquela época canções de John Lee Hooker, Wynonie Harris, Louis Jordan, Muddy Waters e muitos outros bluesman dominavam as paradas. Portanto, nada mais esperto do que ficar de olho nesse tipo de som que emergia.

A partir daí, eles contrataram Ray Charles e foram montando aos poucos seu império com o desenvolvimento do rhytm’n blues e da própria soul music.

Mesmo com toda a importância de Ray Charles para o gênero, o artista-mor sem paralelos que você acabará endeusando após a leitura do livro é Sam Cooke. Infelizmente o músico teve uma vida curta e faleceu aos 23 anos, após levar um tiro supostamente acidental de uma recepcionista de um motel barato, em 1964. A grande importância do músico reside em seu vocal com fortes ressonâncias pop em melodias de rhytm’n blues. Quase todos os ídolos da soul music que você admira beberam da fonte de Cooke.

Outro grande músico do gênero que também teve um fim trágico foi Otis Redding – que reverenciava Sam Cooke quase como um deus. Com a aparência de ser mais velho do que sua real idade, Otis elevou a capacidade de seu vocal ao máximo e faleceu aos 27 anos em um acidente de avião.

Inclusive, há um paralelo digno de nota sobre os dois artistas: ambos faleceram em dezembro de forma trágica, foram imprescindíveis para a soul music e, antes de partirem dessa para uma melhor, não tiveram tempo de ver os resultados tolhidos por seus maiores singles.

Antes de morrer, Sam Cooke gravou “A Change Is Gonna Come”, inspirado por “Blowin’ The Wind”, de Bob Dylan. Os arranjos orquestrais e o tom reflexivo traçavam um paralelo com a luta pelos direitos humanos daquela década nos Estados Unidos, encabeçados por Martin Luther King Jr. Praticamente um hino. Otis Redding, Aretha Franklin e muitos grandiosos da soul music já regravaram esta canção.

Otis Redding, depois de enfrentar todos os managers da gravadora Stax, disse que tinha nas mangas a melhor música que já tinha escrito na vida. “(Sittin’ On) The Dock of the Bay” era diferente de qualquer outro single já gravado por Otis: não tinha aquelas exasperações vocais, nem mesmo uma seção rítmica dançante e envolvente. Era de teor filosófico, condensada por barulhos de marés em notas econômicas nas cordas e na sessão de sopros. Otis havia se inspirado no disco “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, argumentando que a soul music também precisava evoluir.

Sobre a morte de Sam Cooke e Otis Redding, Johnny Jenkins, o primeiro a reconhecer o talento de Otis, fez um comentário bem seco e desanimador: “Isso é o que acontece com negros que têm ideias”.

Além da Atlantic, Peter Guralnick conta como se deu o surgimento da Stax que, de empreendimento de dois irmãos que gostavam de boa música e tinham uma loja de discos, acabou tornando-se um dos principais redutos da soul music. De lá, saíram músicos como Booker T. Jones que, junto com Al Jackson, Steve Cropper e Duck Dunn, formaram o Booker T. & the MG’s. Além deles, a gravadora tinha um staff poderoso, sendo que muitos deles eram músicos brancos que tocavam rhytm’n blues inspirado pelo gingado da música negra. (Importante lembrar que existia uma forte segregação entre brancos e negros. Na Stax, porém, isso era algo batido. Por ser uma gravadora que nasceu em Memphis, a relação mútua entre brancos e negros era normal – pelo que dá a entender através dos relatos de Guralnick, por lá houve poucos momentos de desavenças por conta da pigmentação da pele. Pelo menos antes do assassinato de Martin Luther King.)

Para entender a originalidade do som condensado na Stax, basta ouvir os singles “Green Onions”, de Booker T. & the MG’s e “Last Night”, dos Mar-Keys. A primeira é carregada por um gingado blueseiro nos órgãos de Booker T., enquanto os instrumentos de corda divagam espaçosamente; já a segunda, o próprio autor resumiu muito bem: “os integrantes realizaram uma ambição que qualquer banda de garagem no mundo, inclusive os Rolling Stones, sempre sonharam: um hit R&B autêntico”.

As tomadas de decisões, naquela época, eram um pouco diferentes do grau de independência que predomina na música atual. Para um single ser lançado, ele tinha que se encaixar no gingado, ser uma composição simples, cantarolável, de fácil assimilação. Talvez muitos talentos pudessem ser desperdiçados se não conhecessem a pessoa certa no lugar certo – salvas raras exceções praticamente unânimes, como é o caso de Aretha Franklin, Otis Redding e Wilson Pickett que, de longe, já denotavam potencial para sacudir o mercado musical.

Ainda assim, houve pessoas que tentaram se desvencilhar desse jogo mercadológico imposto por magnatas da indústria fonográfica. O melhor exemplo deles é James Brown, que conseguiu impor seu estilo único de soul dançante (chegando ao funk) depois de muito batalhar com produtores. Por ser insistente e ter o dom da dança, levou o soul a outros patamares e até ergueu sua própria gravadora, a Try Me. Cantou com os músicos que queria e, apesar de invejar o talento de Solomon Burke, por exemplo, foi uma figura unânime que dispensa adjetivos.

Se o ‘homem que mais trabalha duro no show business’ já havia gravado, por um lado, aquele que é considerado pela revista Rolling Stone o melhor disco ao vivo já registrado (“Live at Apollo”, de 1963), James Brown selou sua importância nos palcos após acalmar os ânimos dos norte-americanos – principalmente os mais pobres e afroamericanos – um dia depois do assassinato repentino de Martin Luther King Jr. No dia 5 de abril de 1968, ele tinha uma apresentação marcada no ‘Boston Garden’ e, depois de se reunir com conselheiros da emissora WGBH, que decidiu transmitir o show ao vivo, emendou uma performance impecável com o objetivo de conter os ânimos de uma massa que tinha todos os motivos para se revoltar.

Nas páginas finais de “Sweet Soul Music”, Peter Guralnick faz algumas pontuações que ajudam a esclarecer o desinteresse gradual de produtores e gravadoras de financiar artistas de soul. Isso começou a surgir a partir dos anos 70 e fincou-se nos anos 80, por motivos óbvios: era muito mais em conta custear artistas do rock, pela simples lógica de ter menos integrantes a serem pagos, do que insistir em uma onda musical que, para eles, estava fadada ao declínio, principalmente após o clima tenso que se instaurou depois da morte de Luther King. Financiar discos e turnês de um músico como Wilson Pickett, por exemplo, exigia que o produtor pagasse honorários a pelo menos mais de 10 músicos. Uma turnê para um artista do porte de Solomon Burke já era repensada como exorbitante na década de 80, já que menos de 15 músicos não dava conta de um show potente.

Então, o sonho de conquistar a América com a música e o gingado soul passou a se tornar insustentável. “Todo sonho acaba se alterando, todo sonho deve dar passagem para um novo, talvez inimaginável destino”, escreveu Peter Guralnick nos trechos finais do livro. Pena que o destino nem sempre costuma sorrir.

– Tiago Ferreira (siga @namiradogroove) é jornalista e assina o blog Na Mira do Groove

Leia também:
– “(I’m Sitting On) The Dock of the Bay”, de Otis Redding, por Tiago Ferreira (aqui)

6 thoughts on “Literatura: “Sweet Soul Music”, Peter Guralnick

  1. Talvez o soul seja o estilo que mais gosto hoje em dia…
    Engraçado, man non troppo, como a tragédia ronda esses caras.
    Marvin Gaye: O pai o matou.
    Al Green: A noiva ateou fogo em si mesma.
    Curtis Mayfield: Um spot de luz caiu em sua cabeça em pleno show o deixando tetraplégico.
    Stevie Wonder: Nasceu Cego.
    E como o texto falou, Sam Cooke levou bala o Otis Redding caiu de avião.
    Minha teoria é que Deus cria e depois fica com inveja.

    PS: Viram Obama mandando um Al Green afinadinho? Tá no sangue, rapá!

  2. Faz tempo que li o “Alta Fidelidade”, mas se a minha memória não falha, o senhor Rob Fleming até cita o “Sweet Soul Music” num dos seus indefectíveis Top 5 – claro, o de livros preferidos. Este livro está na minha wishlist há um bom tempo, vamos ver quando eu tomo vergonha na cara e encomendo um pra mim.

    Eu conheço todas as tragédias citadas acima pelo Zé Henrique, mas não sabia dessa do Curtis Mayfield, não! Spot de luz cair na cabeça em pleno show e deixá-lo tetraplégico é dose.

  3. No caso do Stevie Wonder, posso apostar que muito provavelmente se ele não fosse cego não seria tão genial.

    A melhor música do Eric Clapton foi feita após a morte de seu filho, um filho que ele nem dava tanta bola, pelo que deu pra entender em sua autobiografia.

    Otto lançou seu melhor disco quando perdeu a esposa.

    E muito provalmente boa parte dos ritmos “negros” não existiriam se suas vidas não fossem carregadas de dor. Blues e Jazz são bons exemplos disso.

  4. É óbvio e até bem clichê que a dor tem a ver com criação artística.
    Mas, não são bem só por aí os caminhos da arte.
    Curtis Mayfield, por exemplo, já tinha uma obra magistral quando levou a porrada na cabeça.

  5. Zé,
    O que o Obama fez com Al Green foi uma das melhores coisas como presidente: elevou as vendas do cara em quase 400%!!

    Em relação da dor ter a ver com criação artística eu até concordo, mas não acho que tem que haver uma ferida para sair coisa boa. Pode influenciar sim, mas há muitos exemplos de artistas que são inquietos por natureza. Tipo Itamar Assumpção, início dos Beach Boys, os próprios Beatles, Booker T. & MGs….

    Enfim, tem a ver e não tem a ver, acho eu.

    E, Arlen, em relação ao Clapton, tem outro trabalho interessante em relação à distúrbios emocionais: o “Layla and other Assorted Love Songs”, inspirado pela namorada de um de seus melhroes amigos, George Harrison. depois ele acabou se casando com ela, mas quando ele a cobiçava, gravou um de seus melhores discos.

    Abs!!

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