Descoberta, ruptura e James Blake

por Bruno Capelas

Dividir a música em gêneros é uma coisa curiosa. O que deveria servir para guiar e dar uma melhor referência sobre um determinado artista ou estilo acaba, pelo lado oposto, limitando as canções que ouvimos. Como uma espécie que não gosta de mudanças, privilegiamos o conforto, nos centrando em alguns nichos e, por vezes, deixamos passar trabalhos artísticos interessantíssimos, escondidos sob um rótulo preestabelecido. O que pode acontecer quando se deixam esses rótulos de lado é o que os anglófonos chamariam de “a breakthrough”, que em bom português pode significar tanto descoberta quanto ruptura. É o caso, por exemplo, de uma das grandes revelações desse 2011: o cantor inglês James Blake.

Influenciado pela cena dubstep londrina, que se caracteriza por produções muito bem amarradas, com linhas de baixo fortes e baterias reverberantes, James Blake chama a atenção com sua voz límpida e potente, fazendo o que alguns arriscam chamar de post dubstep, criando mais uma nomenclatura que pouco diz sobre si mesma. Seu disco de estreia, “James Blake”, e o recém-lançado EP “Enough Thunder”, entretanto, mostram que ele é mais do que uma vozinha bonita – será um dos destaques do Sónar São Paulo, que acontecerá em maio de 2012.

A primeira vez que alguns holofotes foram apontados para o cantor foi em 2010, quando lançou a música “CMYK”, na qual fazia colagens de antigas e obscuras canções de soul, em um loop de quatro minutos e pouco. Era um prenúncio do que ele próprio poderia fazer com suas cordas vocais, quando unidas à sua capacidade como produtor. Entretanto, só isso não bastaria pra levá-lo muito longe. Era preciso algo mais, e Blake talvez tenha encontrado em suas letras a maneira de ir além: elas chamam a atenção não só por serem muito emotivas, mas também porque ele as resume em apenas poucas linhas. Essa concisão, que poderia criar padrões tetricamente repetitivos, acaba por ser uma das grandes armas do cantor. Em “I Never Learnt to Share”, por exemplo, ele repete por quatro minutos apenas duas frases: “My brother and my sister don’t speak to me / But I don’t blame them”.

É como se Blake tentasse repetir a experiência que Van Morrison teve em “Astral Weeks”, exposta pelo crítico americano Lester Bangs em seu arrasador artigo sobre o álbum, disponível aqui no Brasil no livro “Reações Psicóticas”: “Van Morrison está interessado, obcecado com a quantidade de informação verbal ou musical que ele consegue imprimir no menor espaço possível e, de maneira inversa, quão longe ele consegue esticar uma nota, palavra, som ou imagem. Capturar o instante, ou um carinho ou um beliscão. Ele repete certas frases a extremos que, na boca de qualquer outro, seriam ridículas, porque ele está esperando uma visão se descortinar, tentando, da maneira mais livre possível, arrastá-la pelos cotovelos”.

Porém, enquanto o irlandês Morrison joga com essas ideias mexendo com a velocidade e a altura das notas que canta naturalmente, Blake se utiliza dos efeitos eletrônicos do Auto Tune para criar camadas e mais camadas que se sobrepõe. Por vezes, chega-se até a ter a impressão de que existe um dueto entre o cantor londrino e si próprio – sugestão que também é dada pela capa de “James Blake”.

Outro diferencial que existe em “James Blake”, o disco, é o contraste que se estabelece entre o cristalino vocal do inglês e a base que ele próprio construiu para suas canções. Trata-se de um recurso que intensifica a expressividade das canções ao soar confessional (na já citada “I Never Learnt to Share”), pedindo ajuda ao sentir-se perdido em meio a sonhos e amores (a lindíssima “Wilhelm’s Scream”), ou lamentando-se (em “Unluck”), de maneira quase inocente e ingênua.

Blake é um intérprete tão poderoso que poderia conceber um disco inteiro apenas à capella sem qualquer problema – como atesta na versão que fez de “A Case of You”, uma das gemas do repertório de Joni Mitchell. Entretanto, é quando adiciona os efeitos eletrônicos que fazem cama para sua voz que sua obra ganha contornos ainda mais interessantes. Para um desavisado ou alguém que não é fã de música eletrônica, as batidas e ruídos chegam a incomodar – e muito – num primeiro momento, como se estivesse justamente atrapalhando a canção.

Porém, à medida que se avança nas audições do álbum, percebe-se que toda essa base ruidosa serve como um sinal de reiteração do desespero que a interpretação do cantor traz á tona. Como se os efeitos ali colocados reafirmassem a insolubilidade dos problemas expostos por Blake: há sim, um limite para o amor, e a chance de isso mudar é inacreditavelmente pequena em meio à vida agitada, confusa e por vezes nonsense que se tem nos dias de hoje. Ou ainda, como ele próprio diz, em “Enough Thunder”, que encerra o EP de mesmo nome: “nós só podemos esperar para partir o coração agora”.

Apesar de extremamente cruel, essas noções guardam dentro de si mesma uma assustadora e intensa beleza, rara de se ver hoje em dia. Tão rara que capta a atenção até mesmo de quem a ignoraria em outras circunstâncias. E é justamente aí que reside a força de James Blake. Esqueça os rótulos e ouça “James Blake” e “Enough Thunder”, a descoberta (ruptura) irá valer a pena.

– Bruno Capelas é estudante de jornalismo e assina o blog Pergunte ao Pop

Leia também:
– “Astral Weeks?, de Van Morrison, por Lester Bangs (texto original aqui)
– Sónar São Paulo 2012 terá Bjork, Justice, James Blake, Four Tet e mais. Veja o line-up aqui

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