por Murilo Basso
Natural de Belo Horizonte, Flávio Renegado cresceu na comunidade Alto Vera Cruz e, claro, poderia ser só mais um em meio a tantas pessoas. Clichê? Sim, afinal, a vida é feita deles, mas se a intenção é evitá-los, ao menos na música, Renegado acerta em cheio ao fazer canções que não cabem nos limites da capital mineira.
Ao encontrar o meio termo entre as temáticas características ao rap / hip-hop e os elementos da música popular, Flávio faz com que a diversidade sonora seja a principal característica do seu trabalho – evidenciada ainda mais em seu segundo disco, “Minha Tribo é o Mundo”, que contou com a produção de Plínio Profeta em 9 das 11 faixas e está liberado para download no site oficial (aqui).
Se em seu primeiro trabalho, “Do Oiapoque a Nova York” (2008), que lhe rendeu o prêmio Hutúz de revelação, o mineiro nos apresentou a versão inicial deste conceito, essa ideia retorna ainda mais elaborada em seu novo álbum, fruto do amadurecimento.
Em entrevista ao Alto-Falante e ao Scream & Yell, Flávio Renegado expõe sua opinião sobre o rap e o hip-hop, revelando detalhes sobre seu trabalho. Confira o bate papo, ouça o disco e perceba que Flávio está longe de se restringir a um gênero. O que Renegado faz é, sobretudo, música brasileira.
Ps. O show de lançamento do novo álbum acontece neste sábado (29/10), no Music Hall, em Belo Horizonte. Infos aqui
Como você foi parar na música?
Cara, cada vez que paro para me lembrar de como tudo começou vejo que as coisas na vida realmente nascem sem pretensão. A primeira vez que o rap e a musica me tocaram eu tinha 13 anos, estava na casa de um amigo ouvindo uma radio comunitária – que alguns anos depois acabou se tornando a reconhecida “Radio Favela”. Quando ouvi Thaide e Dj Hum, com “Corpo Fechado” e, na sequência, “Fim de Semana no Parque”, com os Racionais, percebi que era isso que queria fazer.
Conheci seu trabalho na Feira Música Brasil 2010. Um amigo comentou que você era de Belo Horizonte mesmo, então a primeira coisa que meio veio à cabeça foi: rap mineiro? Como assim?
Mano, quando falo que sou de BH a reação do povo e a mesma que você teve, mas quem está ligado na cena fora do eixo “SP x RJ” sabe que BH é um dos lugares onde o hip-hop mais tem crescido nos últimos anos. Temos uma cena organizada, coletivos servindo como referência para outras partes do país. Toda a sexta-feira tem duelo de Mc’s, grupos e artistas estão em alta produção artística e, para este ano, temos a previsão de 15 ou mais grupos lançando discos…
Então, agora tenho um pouco de noção sobre a dimensão da cena em Belo Horizonte. Há festivais específicos voltados para o gênero…
Sim, a cena deu um salto muito alto de qualidade, nasceram o “Palco Hip Hop” e o “Cidade”, dois festivais que estão ajudando a estruturar, a profissionalizar a cena local. E vamos conquistando mais espaço para o rap. Neste segundo semestre estreei na 98FM o “Boombox”, programa voltado para o Hip- Hop / Black Music, em que grupos e artistas locais têm espaço garantido – e esta foi a única exigência que fiz quando fui convidado pela rádio. Ano que vem o “Boombox” também se tornará um festival para revelar novos talentos.
Tanto o rap como o hip-hop sempre trabalharam com questões mais marginais. Seguindo esse caminho não se perde o foco do gênero e de seu papel como agente social?
Sempre achei que toda a unanimidade deve ser questionada. Vejo rapper’s falando que são “gangsta” sem de fato terem vivido o crime. Também não gosto da famosa fábrica da miséria, que usa a favela como trampolim para autoprojeção. Tem muita gente falando o que não faz e pregando o que não vive, e isso não cresce o gênero. E nem a favela. As lutas sociais quando são tratadas com extremismo sempre beneficiam o lado contrario.
Tenho a sensação de que esse discurso da violência enquanto temática acaba banalizando o gênero – embora hoje a resistência seja menor, ainda existe um pouco de preconceito com o rap / hip-hop. Então, acho que a grande sacada é não ser panfletário demais.
Se a intenção é noticiar a violência podemos deixar por conta dos programas policiais. Não acho que todo rapper deve ser engajado, mas acredito que todo Mc ligado ao hip-hop deve ter compromisso mínimo com a cultura e com os seus valores. Nós temos uma responsabilidade muito maior, somos a voz do povo, dos que não tem voz. Temos que mostrar possibilidades, motivos para achar que lutar vale a pena e nunca esgotar os sonhos. O caso não é ser panfletário… Hoje os Mc’s estão falando de temas que tem a ver com a sua realidade, com isso o povo se sente tocado.
O rap nacional não pode estar influenciado apenas pelo rap norte-americano. Temos uma infinidade de ritmos que podem e devem ser incorporados, fortalecendo o gênero nacionalmente?
A palavra de ordem é “abrasileirar”. Estou tendo a oportunidade de ver o rap pelo o mundo e o que vejo é que ele ganha força quando estabelece relação com a cultura local. Hoje no Brasil se entende melhor isso, e sem sombra de dúvida é um avanço necessário.
Nesse sentido consigo notar em seu trabalho que ao incorporar elementos do samba, reggae, baião, você busca uma nova roupagem para suas canções, não se restringindo ao discurso social. E enquanto alguns artistas optam por priorizar elementos estritamente musicais ou dar preferência às letras, parece que em seu trabalho há uma preocupação com equilíbrio entre todos os elementos.
Isso é muito relativo. Vejo muitas pessoas que gostam do meu trabalho e conseguem entender a proposta. Não tenho a pretensão de me intitular o melhor ou de achar que estou reinventando a roda. Apenas quero propor outro caminho, se as pessoas se identificaram, é só chegar. São sempre bem vidas. A cada dia busco a medida exata. Todos que amam o que fazem, procuram sempre sofisticar, encontrar o tempero correto. Hoje minha busca é o equilíbrio das letras e das poesias, dos arranjos e das melodias, mas isso com o sentimento que a musica esta pedindo.
A temática da discussão de classes também está presente, especialmente quando o cotidiano da sua comunidade é retratado. Como separar o aspecto político do entretenimento que, em geral, é a essência da música?
O caminho que percorro para isso é falar do dia-a-dia das pessoas, de coisas bem cotidianas. Então a diferença de classes vira algo transversal a vários temas, e é o que arregimenta essencialmente as músicas. Achar o meio termo disso é muito difícil. O rap se auto impôs muitas regras, então sempre que buscamos sair do clichê, vem a reflexão “isso é certo ou aquilo é errado”. Então tudo o que falamos e escrevemos tem que ser verdadeiro, tem que ter sentimento. Se não for assim, não conseguiremos convencer ninguém.
No primeiro disco você trabalha a questão da fé, não da religiosidade em si…
A fé é o maior sentimento que o ser humano pode ter. É o que nos move; o que nos faz acordar pela manhã e ter a disposição de encarar a vida. Acho importante todos terem sempre muita fé independente da religião, afinal ela é o maior escudo do homem.
Nesse sentido, “Benção” é uma homenagem a sua mãe?
Sempre vejo grandes pessoas sendo homenageadas quando morrem, então quis fazer uma homenagem para a pessoa que considero o meu maior super-herói. Tive a oportunidade de dedicar esta musica para ela para que soubesse o quanto é importante para mim. Fiz a musica em um ponto de ônibus a caminho de uma palestra sobre juventude e drogas. A canção veio carregada de sentimentos e lágrimas, escrevi em 40 minutos. Foi super intensa.
Já “A Coisa é Séria” retrata o relacionamento “homem x mulher”.
A música foi a última a entrar no disco. Na época foi o Ganjaman quem me convenceu. Confesso que estava resistente em relação a ela e foi uma das canções mais expressivas do disco. Fiz para uma ex-namorada. Foi um relacionamento conturbado, mas acabou me deixando a música como presente. Acho que ela ganhou toda essa força por retratar um momento pelo qual todas as pessoas passam.
Ainda nessa linha de retratar as mulheres, “Vera” parece estar falando o tempo todo sobre uma mulher, mas na verdade retrata sua comunidade, certo?
Sempre quis fazer uma música sobre a minha comunidade, falar sobre o quanto ela é importante pra mim. No momento que parei para escrever me veio a imagem de uma mulher que é mãe, amante e filha. Vejo o Alto Vera Cruz desta forma: um lugar que me ensina muito, o tempo inteiro, como um jovem que entra na vida adulta com uma mulher experiente, mas ao mesmo tempo há o frescor da descoberta como um casal de adolescentes. A comunidade é como uma mulher, você tem que amar na medida certa.
Antes mesmo do lançamento de “Do Oiapoque a Nova York” você já havia viajado para Cuba, Venezuela e para o Quênia. Como essas experiências estão presentes no seu trabalho? De que forma essa nova perspectiva te influenciou?
Cara, quando se tem acesso, os horizontes se amplificam de uma maneira monstruosa. Ter este contato com outras culturas foi fundamental, principalmente para a construção do meu novo trabalho, o “Minha Tribo é o Mundo”. Busco fazer um som sem fronteiras, sem limites, para que a minha música cumpra o papel de aproximar as pessoas. Cada vez que conheço uma parte diferente do globo tenho vários paradigmas que são quebrados e isso me faz bem.
É nítido que esse contato com outras culturas foi fundamental para a construção do “Minha Tribo é o Mundo”. Foi um processo pensado ou espontâneo? Ou, em outro cenário, é algo que vem sendo construído desde “Do Oiapoque a Nova York”?
Tudo nasceu de uma forma muito instintiva, o “Do Oiapoque a Nova York” foi uma abre alas, foi conduzindo e o “Minha Tribo é o Mundo” foi um semente, que brotou e ganhou força dentro do próprio processo. Trabalho com continuidade de projetos e vejo o novo disco desta forma: é a segunda fase de um projeto maior.
Aliás, o clipe da canção “Minha Tribo é o Mundo” passa essa idéia de evolução, de alguém que, com o passar do tempo, foi agregando novos elementos, novas possibilidades até chegar ao dia de hoje.
É esse o conceito do clipe. Ele fala de movimento, de evolução. Parte da ideia do roteiro nasceu do Ricardo Morais (diretor), o restante fizemos de forma livre durante a execução. A cada locação encontrada buscamos (usar) o máximo delas, tivemos uma equipe talentosa com muita vontade de fazer o clipe, o que influenciou no resultado final.
“Tempo Bom” me soou como uma espécie de adaptação do soul ao universo da música brasileira. Acho que até pela forma de cantar, extremamente melódica e distante das características do gênero em si – e até então, acho, inédita no seu trabalho.
A música nasceu sem nenhuma pretensão, apenas veio a inspiração e eu botei no papel. Não tinha o objetivo de ser uma adaptação ou releitura. “Minha Tribo é o Mundo” é um álbum onde estou me permitindo explorar essa diversidade musical. Na real, essa música nem ia entrar no disco, mas acabei gravando e mostrando para algumas pessoas que me convenceram a incluí-la. Aconteceu e estou curtindo bastante ela.
Estava tentando encontrar uma definição para “Pontos Cardeais” e pensei em algo como “o momento em que o rap encontra o reggae”.
No primeiro disco tenho duas faixas com presença forte do reggae (“A Coisa é Séria” e “Sei Quem tá Comigo”). Ambas com a vibração positiva que o reggae pede. Em “Pontos Cardeais” procurei falar de amores e valores comuns entre a zona sul e a norte, sempre priorizando o coração como bússola condutora. A influência e a paixão pelo reggae e raggamuffin são muito fortes.
Recentemente você tocou na Inglaterra e na Espanha. Foi como você esperava?
Em todos os países que estive a recepção é sempre muito positiva. Conseguimos estabelecer laços de parceria e colaboração por todos os lugares. Mas ainda quero mais, quero falar a língua do mundo e fazer com que este mundo possa me compreender. Esta é minha busca.
Fiquei pensando que, em um universo em que o gênero é dominado por músicos cantando em inglês, como seria um rapper brasileiro, cantando em português na Inglaterra. Até por isso imagino que na Espanha tenha sido mais fácil. Periferia é periferia em qualquer lugar?
Não acho que teve essa relação de complexidade. Apesar de estar na Europa, são duas culturas bem diferentes. Os espanhóis têm a essência do sangue latino, se permitem mais, mas Londres também tem o seu valor. Fiz dois shows lá, fui muito bem recebido e compreendido. Agora volto da Austrália com o mesmo sentimento de missão cumprida, fiz meu papel de Mc e me comuniquei. Nem todo o lugar é periferia, mas nós somos favela em qualquer parte do globo.
Até que ponto se estende sua pretensão com o novo trabalho? Até onde você pretende chegar?
Na vida e na arte minha intenção é sempre evoluir, sempre dar o meu máximo para chegar perto da perfeição. Quero que o mundo escute o que tenho para falar, quero que a minha tribo aumente e que nossos objetivos sejam alcançados. Como diz o ditado, ‘o céu e o limite e eu já não tenho medo de voar’.
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– Murilo Basso (siga @murilobasso) é jornalista e colabora com o Scream & Yell, o Urbanaque, o Alto-Falante e a revista Rolling Stone