Los Porongas ao vivo em Belém

por Ismael Machado

Já passava das quatro da manhã. Os últimos acordes de “Ao cruzeiro” se faziam ouvir. O guitarrista retira a guitarra do corpo, numa libertação momentânea. Deixa que ela tremeluza numa microfonia final. Desce do palco e fica olhando em silêncio para o local onde esteve nos últimos minutos, na última hora, nas últimas semanas, nos últimos anos. A vida inteira até aqui, talvez. O suor escorre do rosto, encharca a camisa. Aos poucos, começa a receber abraços e cumprimentos. O guitarrista se chama João Eduardo. Nos últimos onze anos, ele viveu o sonho quase impossível de ajudar a direcionar o pequeno estado do Acre no mapa da música pop brasileira. Durante esse tempo, Eduardo integrou a banda Los Porongas. No sábado, 22 de agosto, em Belém, João Eduardo fez seu show de despedida do grupo.

É curioso pensar no significado de determinadas canções em momentos únicos, por menores que possam parecer. Em “Ao cruzeiro’, a banda canta “Eu chamo o tempo / Eu subo alto / Santo é o nome da paz / Faço o canto um firmamento / E o lamento não se faz / É liquefeito o passaporte / E pela ponte vai a mente a qualquer parte…”. Naquele instante em que a banda saía ovacionada do palco, durante o lançamento do Prêmio Curupira de Música, é impossível não pensar no que diz essa letra e no significado instantâneo que ela adquire naquela noite estrelada longe do centro da capital paraense.

“Não dá para não deixar de olhar para isso tudo”, diz João Eduardo, um dia antes, num final de tarde num bar às margens da baía de Guajará, observando o pôr do sol típico à beira de rios amazônicos. É sexta-feira e João Eduardo fala do elogiado disco “O Segundo Depois do Silêncio”. “Ao vivo a gente sempre consegue imprimir uma cor e um lirismo que precisava entrar em disco. No nosso primeiro, “Enquanto Uns Dormem”, tudo foi mais acelerado. Gravamos em 15 dias, sem experiência de estúdio. Já esse foi feito em um ano, em casa, buscando esses arranjos, burilando timbres”.

“O Segundo Depois do Silêncio” também é um registro do tempo vivido em São Paulo. “Abriu nossa cabeça, houve choques bons e ruins. Vimos outras coisas, conhecemos outros produtores, outros músicos. São Paulo foi algo muito duro, muita tensão, mas muitos shows bons. Tocamos em quase todos os bons palcos da cidade. Essas sensações e emoções estão refletidas nesse disco”.

Falar sobre a saída da banda é algo que não o incomoda. “Já aconteceu. Ou preserva o filho ou o perdemos para sempre”. O processo de amadurecimento e descoberta fez com que de dois anos para cá, o guitarrista passasse a escrever letras, vai ousar jogar a voz em um trabalho solo que está sendo maturado aos poucos, sem pressa. “É um processo lúcido. Preciso disso, se não vou pirar. O mais importante é a música e não o status. Eu já quis o status. O fantástico já aconteceu. Meu tempo agora é outro”.

Outro tem sido também o tempo dos outros integrantes da banda. Na mesma sexta-feira em que, com apenas dez reais no bolso, Eduardo observava o sol se pôr e refletia sobre os passos a serem tomados, Diogo Soares e Jorge Anzol, vocalista e baterista dos Los Porongas, experimentavam ‘unhas de camarão’ com cerveja num bar em uma praça na Cidade Velha, bairro histórico de Belém. “É foda”, diz Diogo sobre a saída de Eduardo. “Como toda mudança. Mas não há nada que se possa fazer. Ninguém pode querer pelo outro. Esse respeito é que dá o tom. Mas é muito louco estar no ensaio e não ver o João. Não tínhamos vivido isso”. O novo guitarrista da banda se chama Carlos Gadelha. A transição tem sido tranqüila.

Diogo diz que até aqui foi o sonho que sustentou a banda. Um sonho antigo, de fãs de música que resolvem montar uma banda e começam a ver que ‘aquele sonho’ cresceu. Aos poucos, a conexão com o público começou a ser maior. “Há um elo que passa pela intensidade, pela entrega da banda no palco. A gente começou a compreender o que é esse lugar no palco. Hoje eu sou mais vocalista de uma banda do que a primeira vez que estive em Belém, em 2006 no festival da Se Rasgum”, diz.

Diogo e Anzol concordam num ponto. Los Porongas é mais emoção do que razão. E isso fica evidente mais uma vez um dia depois. O cenário é o mesmo da primeira vez que a banda esteve em Belém, o Parque dos Igarapés, uma espécie balneário ecológico afastado da cidade, rodeado por matas e lagos.

A banda alterna canções do novo disco, com as músicas mais antigas. E ambos repertórios estão na ponta da língua do público, já não tão grande quanto no início da noite. É que a programação foi atrasando, atrasando. Quando a banda sobe no palco, já passa de três da manhã. O show começa com uma das melhores do disco novo, “Silêncio”. “Esse novo filme nunca terminou, ninguém viu o final”, canta Diogo. Na terceira canção o vocalista desce do palco, mistura-se ao público. João Eduardo rodopia como um Jimmy Page dominando espaços sonoros. Faz uma viagem particular com a guitarra imperando acima dos outros instrumentos.

Em “Fortaleza” Diogo critica uma certa politicagem dos atuais festivais de música independente. “Como é que vão dizer o que não é e você vai ficar calado… como é que não respeitam meu lugar?”, canta. “Sangue Novo”, dedicada aos líderes campesinos assassinados na Amazônia (Chico Mendes, Dorothy Stang, Paulo Fonteles…) acaba tendo uma ressonância emocional diferente. “Talvez amanhã eu não esteja mais aqui”. João Eduardo fecha os olhos e se deixa levar no riff compassado da canção. Entra num transe particular quando o solo chega. E ele vem intenso e derramado.

Não cabe no universo do Los Porongas, o cinismo e o ceticismo que predominam entre os jovens atuais. Há espaço para reflexões sociais, políticas. Eles sabem de onde vêm. Alguns podem dizer que é populismo, demagogia, cabecice. Os fãs não se importam. Assim como, guardadas as devidas proporções, nunca se importaram os fãs de U2, Legião Urbana, Pearl Jam, REM, Smiths, Cordel do Fogo Encantado.

Diogo chama o filho de Mestre Verequete, ícone do carimbó paraense, para uma participação especial. O público ovaciona com o som do tambor primitivo. O tempo vai passando. Na última música antes do bis, João Eduardo deixa a guitarra apitar e reverencia os já velhos e antigos companheiros de estrada. Depois desce do palco. “Quantos anos podem caber num mês? Quantos meses numa semana?”, havia cantado Diogo um pouco antes.

E na música final, a banda se mistura à emoção dos fãs. Só quem é da Amazônia entende realmente o que significa ‘a proa, quando apruma, voa’. E o tempo ganhou novo sentido naquele momento.


“Silêncio”


“Não Há”


“O Lago”


“Come Together”

– Ismael Machado é repórter especial do Diário do Pará e está lançando o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui
– Fotos por Liliane Callegari do show do Los Porongas no CCSP em fevereiro 2008
– Vídeos por Marcelo Costa do show do Los Porongas no Sesc Consolação em janeiro 2011
– Donwload: “O Segundo Depois do Silêncio”: http://losporongas.baritonerecords.com.br/

Leia também:
– “O Segundo Depois do Silêncio”, Los Porongas, por Adriano Costa (aqui)
– 24 horas em São Paulo, quatro shows: Cérebro Eletrônico, Pato Fu, Los Porongas e Móveis Coloniais de Acajú, por Marcelo Costa (aqui)

14 thoughts on “Los Porongas ao vivo em Belém

  1. Scream & Yell e seus textos de extrema qualidade!!! Só fera na área!
    Linda reportagem de uma linda banda!

  2. demais. choque no começo, dá pra entender as posições tomadas. melhor pra música, mais projetos e mais sons do coração na área! viva joao squire, viva los porongas, diogo, anzol e magrão!

  3. Belo texto, Marcelo! Tons e caminhos que já não se faziam explêndidos. Sorte pro Los Porongas e pro João Eduardo, um dos melhores guitarristas da nossa geração.

  4. Eu acredito que a banda pode sim, superar a perda. É claro que eu também concordo que o João Eduardo tem um feeling como guitarrista que é bem peculiar. Gosto muito do som que ele tira, mas acho também que há talento bastante na banda para saber lidar com isso.

  5. Eu acredito que toda mudança é positiva. Principalmente quando há respeito, carinho e muito talento. João é um guitarrista único, virtuoso como há poucos. Los Porongas é sentimento não existe outro igual. Sou fã incondicional e ponto final

  6. Show Épico!
    João Eduardo é um dos melhores guitarristas da nossa geração, marcou história, mas acredito que o Carlos Gadelha, ex-Jardim das Horas que será o novo integrante vai adcionar bastante aos Los Porongas. Um grande músico que vai impor seu estilo, porém a banda não irá perder sua identidade!
    Sucesso João Eduardo, boa caminhada nesse seu novo passeio e seja bem vindo Carlos Gadelha, torço que com essa nova formação a banda continue aprumando!

  7. Voltei agora de um show do Los Porongas com o Carlos Gadelha e posso dizer que ele segura a onda muito bem. Já tinha visto a banda com o João Eduardo, mas o Carlos Gadelha também faz um bom trabalho ao vivo, por enquanto similar ao João Eduardo.

    Resta saber como serão as novas composições.

  8. Comecei a escutar Los Porongas recentemente e estava justamente elogiando os riffs de guitarra, quando me deparo com este texto. Mas vale lembrar que outra qualidade da banda são as composições, e acho que isso pode ser bem reforçado com um outro integrante no grupo.

    Sei lá. Só sei que o disco ‘O Segundo Depois do Silêncio’ é foda demais!

    Ótimo texto, Ismael.

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