1991: The Year Creation Records Broke

por Marco Antonio Barbosa

1991: o ano em que o punk rock estourou. Em todo o lugar, só se falava/via/imitava o que vinha de Seattle. Camisas de flanela, o clipe de “Smells Like Teen Spirit” tornando-se um evento em si mesmo, o underground ianque finalmente emergindo, aquele espírito de “agora vai!” capitaneado por Kurt Cobain & Cia. E aí, quando sai a lista de melhores do ano de 91 da revista Spin, a mesma que tinha trombeteado o ano todo a revolução grunge, tá lá, em número 1… “Bandwagonesque”, do Teenage Fanclub, uma banda escocesa que professava um power pop barulhento mas acima de tudo doce. WTF?

WTF também para quem esperou por três anos o segundo álbum do My Bloody Valentine, salivando por conta dos sons esquisitos e hipnóticos contidos em “Isn’t Anything” (1988), dando cambalhotas com o interlúdio ruidoso do single “You Made Me Realise” e franzindo as sobrancelhas com os EPs “Glider” (1989) e “Tremolo” (1990). “Loveless”, o disco que finalmente saiu depois de um entra-e-sai interminável entre 19 estúdios diferentes, abria com quatro batidas secas de caixa e um som que, bem… descrever com palavras, como?

Mais WTF? Bem, na mesma época os fãs do Primal Scream já deviam estar tão bolados quanto, ou mais. Afinal, em menos de dois anos eles saíram disso aqui…

…para isso aqui…

…transformando-se de uma banda indie revisionistas (entre milhares) para uma das principais forças (se não a principal) da nova onda psicodélica-dançante que revirou o cenário britânico no fim dos anos 80/começo dos 90. ”Better music, better sex, better drugs”, dizia Bobby Gillespie sobre a virada concretizada no LP (duplo!) “Screamadelica”.

Cada um desses discos foi uma revolução em seus respectivos estilos. “Screamadelica”, lançado em 23 de setembro de 1991, encapsulou perfeitamente o clima neolisérgico do segundo Summer of Love: guitarras, synths & loops, ecstasy, black music, indie rock, um olho no futuro e outro no passado, um pé no show de rock e outro na pista de dança. “Loveless”, lançado em 4 de novembro, representou o píncaro de uma “linha evolutiva” da combinação entre ruído e melodia – uma estética herdada do Velvet Underground e escancarada pelo Jesus & Mary Chain. “Bandwagonesque”, que saiu no mesmo dia de “Loveless”, revitalizou o já cansado power pop à base de melodias cristalinas e do equilíbrio exato de doçura e sujeira. Cada um desses discos foi imitado à exaustão, mas nunca igualado por seus emuladores. E cada um desses discos, que neste 2011 completam 20 anos de lançamento, foram lançados por uma mesma gravadora: a Creation Records.

Paulatinamente, Alan McGee, o dono da Creation, vinha acertando uma série de home-runs no cenário indie britânico desde a segunda medida dos anos 80. Ele botou o Mary Chain no mapa (Ok, os irmãos Reid só lançaram um single pelo selo, mas…). Ajudou a emplacar a Class of 86 lançando bandas como The Weather Prophets, The Pastels e The Bodines. E preconizou o shoegazing com discos como o já citado “Isn’t Anything” e “Nowhere”, do Ride (que aliás ganhou uma linda reedição há pouco). Essa escalada culminou em 1991, o annus mirabilis da gravadora. Ainda que McGee tenha atingido, posteriormente, um sucesso comercial maior ao revelar o Oasis – quando o selo já pertencia à Sony Music – essa trinca sagrada formada por “Bandwagonesque”, “Screamadelica” e “Loveless” uniu corações & mentes (e crítica & público) de uma forma insuperável.

“Loveless”, “Bandwagonesque” e “Screamadelica” não são apenas três dos melhores discos da década de 90; são marcos que encerram uma era do pop britânico diante da “terra arrasada” deixada pelo grunge. O próximo suspiro só viria com a geração britpop, reação sintomática à tosqueira importada de Seattle, mas que – sendo um movimento essencialmente revivalista – não seguiu o pensamento prafrentex da Class of ’91. Aliás, nem os próprios baluartes da Creation conseguiram seguir a linha que eles mesmos traçaram. O Teenage Fanclub faria, eventualmente, canções melhores do que as de “Bandwagonesque”. Mas iriam perdendo a faísca ao longo dos anos com o polimento incessante de sua fórmula. O Primal Scream, graças a Deus, não cabia em linha alguma, seguia num zigue-zague iconoclasta impossível de ser replicado. E o My Bloody Valentine… Bem, depois do bem documentado colapso físico e mental de Kevin Shields, a banda entrou em coma por quase 20 anos, enquanto dezenas de imitadores tentavam, sem sucesso, copiar seus timbres e climas.

“Loveless” é o manifesto definitivo do chamado (às vezes pejorativamente) indie guitar rock. A obsessão de Shields, que queria a qualquer custo registrar “os sons que ouvia em sua cabeça”, rendeu uma obra na qual esporro guitarrístico se convertia em beleza sinestésica. É quase possível “ver”, ou melhor, “ofuscar-se” com o “brilho” emanado pelas ondas de feedback de “Loomer”, “I Only Said”, “What You Want” e “Sometimes”. Por outro lado, o impacto da supracitada “Only Shallow” é literalmente físico (algo que, ao vivo, a banda levaria a extremos com sua versão rompe-tímpanos de “You Made me Realise”).

A simplicidade das melodias e a impenetrabilidade dos vocais ampliavam o potencial de transe das canções em “Loveless”: é fácil perder-se na hipnose induzida por “Soon”, “I Only Said” e – a mais radical de todas – “To Here Knows When”. Todas as guitarras do mundo parecem caber na barragem sonora de “Loomer”; não há ponteiro de V.U. que resista ao overdrive de “What You Want”; “Only Shallow” traz um ruído que já foi descrito pela revista Guitar World como “elefantino”. E apesar desses excessos, nada disso soa agressivo, e sim sedutor. Faça o teste: pegue uma canção, digamos, “I Only Said”, e concentre sua atenção apenas no melodioso assobio em loop que serve de “refrão” para a música. Aos poucos, o ruído guitarrístico perde o foco, se dissolve, e você mal consegue notar os decibéis e a dissonância (funciona melhor com bons fones). Noise esculpido cuidadosamente para gerar encantamento… e dor de ouvido.

Também ruidoso e também encantador era “Bandwagonesque”. Só que enquanto o objetivo do My Bloody Valentine era a transcendência, não poderia haver banda mais pé-no-chão que o Teenage Fanclub. O segundo álbum do grupo (e, a rigor, toda a sua discografia) é a evidência de que, no rock, muitas vezes a qualidade (e a sinceridade) têm primazia sobre a originalidade. Não há coisa alguma no disco que não tenha saído diretamente da escola BBB (Beatles + Byrds + Big Star) de power pop. Mas todo o vanguardismo do mundo derrete-se diante do talento inegável dos três – isso mesmo: três – compositores da banda. Norman Blake, Gerard Love e Raymond McGinley nasceram com O DOM.

A equação é aparentemente simples: pegue canções pop perfeitas, gire o botão dos amplificadores até 11 e vambora. “The Concept”, “What You Do to Me”, “Alcoholiday”, “Starsign”, “Metal Baby”; não tem segredo nem na doçura das melodias, nem na sujeira das guitarras. Mas vai tentar fazer igual, pra tu ver. Os longos interlúdios instrumentais, recheados de solos qualquer-nota (influenciados por Neil Young, sem dúvida), complementavam a beleza dos refrões. “Grand Prix”, de 1995, é o disco no qual o Teenage Fanclub atinge a perfeição. Mas o charme rústico de “Bandwagonesque” já havia esmaecido.

Já o Primal Scream vinha de um ponto de partida parecido com o do Teenage… e decolava rumo ao espaço. A banda de Bobby Gillespie, projetada no boom do rock regressivo, mirava vários alvos (jangle pop, riffões stonianos, garage rock sessentista) sem acertar em quase nada. Até que, em 1990, começaram a frequentar raves – e a colaborar com o produtor Andy Weatherall, que na base do corta-copia-cola-embaralha transformou a canção “I’m Losing More Than I’ll Ever Hav” em “Loaded”.

“Screamadelica” é o documentário aural do verdadeiro warp temporal que o grupo protagonizou naqueles anos. O Primal Scream modernizou seu som de forma radical, mas sem deixar de lado a obsessão com os anos 60. Há samples de Peter Fonda discursando, cover do 13th Floor Elevators, uma cítara riponga na foto principal do vinil. E tacou mais um monte de referências no caldeirão: kraut, dub, gospel, blues, Stones fase Exile, muuuuuuuita música eletrônica. Além de psicodelia de verdade, inspirada não mais pelo ácido lisérgico, mas pelos eflúvios da metilenedioximetanfetamina.

Títulos como “Higher than the Sun”, “Inner Flight”, “I’m Comin’ Down” e “Loaded” não poderiam ser mais bandeirosos. Uma brigada de produtores (Weatherall, o duo The Orb, o stoniano Jimmy Miller, Hypnotone, Hugo Nicholson), mais uma brigada de convidados (incluindo o baixista Jah Wooble) ajudaram a dar o(s) tom(ns). O terceiro disco do Primal Scream é daqueles raríssimos trabalhos que conseguem retratar todo o espírito e a cultura de uma época e, duas décadas depois, não soar nem um pouco datado.

Cada single de “Screamadelica” era uma surpresa. O balanço chupado dos Stones que move “Movin’ on Up” não se repete no space lounge de “Higher Than the Sun”; o groove chapado de “Loaded” não escorre para a beatitude radiante de “Come Together” (que só comparece no disco em sua versão mais longa, sem o vocal de Gillespie). Mesmo assim, há uma coerência interna que une não só essas canções, mas também serve de fio para outras viagens como a recriação ultradançante de “Step Inside this House” (do 13th Floor Elevators), a balada “Damaged” e a mastodôntica “Higher Than the Sun (A Dub Symphony in Two Parts)”.

O paroxismo de inspiração que a Creation atingiu há duas décadas também deflagrou o processo de desmanche da gravadora. As cabriolas sonoras registradas em “Loveless” e “Screamadelica” custaram caro, a ponto de levar McGee perigosamente perto da falência. Sucessos no circuito indie, nenhum dos três álbuns chegou a ser um campeão de vendas. As brigas constantes com Kevin Shields (que não entregava o disco nunca), os excessos químicos e a egotrip foram demais para a cabeça do chefe do selo, que se viu obrigado, em 1992, a vender o selo para a major Sony. A ironia das ironias é que McGee seria salvo pelo britpop. E logo pelo Oasis, que, de toda aquela geração, era justamente a banda que mais reverenciava o passado, contrariando o legado deixado por estes três discos.

O Teenage Fanclub tornou-se uma das mais amadas bandas indie do mundo. Mesmo fazendo discos cada vez menos marcantes. Kevin Shields conseguiu catar os pedaços de sua sanidade e levar o My Bloody Valentine a uma esporrenta turnê de comeback em 2008, depois de passar 13 anos longe dos palcos. Bobby Gillespie seguiu inquieto como sempre, pulando de rock retrô para o funk para a eletrônica para o blues… E a Creation teve sua história relembrada em “Upside Down’ – The Creation Records Story”, documentário de Danny O’Connor lançado em 2010.

Foram (20 / 25 ) 30 anos que passaram voando, né?

– Marco Antonio Bart (@bartbarbosa) é jornalista e assina o blog Telhado de Vidro

24 thoughts on “1991: The Year Creation Records Broke

  1. Três discaços e um otimo texto. O “Bandwagonesque” foi um dos albuns que mais escutei na vida (e acho o melhor do Teenage). Dificil não partir para escutar novamente esses discos agora.

  2. Adorei esta matéria!
    Essa “trilogia de 91” da Creation de fato merecia ser relembrada, já que foram três discos sensacionais.
    Bandwagonesque é o disco mais carismático do Teenage Fanclub.
    Screamadelica é o divisor de águas para a carreira do Primal Scream (gostei dessa sacada de comparar os clipes de Ivy Ivy Ivy e Higher Than The Sun!). Um retrato perfeito (tanto em qualidade musical quanto em registro histórico) da famigerada “indie dance, a cena que celebra a si mesma”.
    E o Loveless, na minha opinião, é simplesmente o melhor disco da década de 1990. Engraçado que passei pela mesma coisa quando comecei a ouvir MBV: “concentre sua atenção apenas no melodioso assobio em loop que serve de ‘refrão’ para a música. Aos poucos, o ruído guitarrístico perde o foco, se dissolve, e você mal consegue notar os decibéis e a dissonância”. Foi um esforço que valeu a pena, pois hoje em dia não abro mão de ouvir clássicos como Soon, Sometimes, When You Sleep e Come In Alone.

  3. Três puta discos! Assim como outros “estranhos” discos lançados em 91, Spiderland do Slint e Laughing Stock do Talk Talk. Belo Texto.

  4. Muito legal a matéria, relembrando três grandes clássicos. Particularmente, sou apaixonado pelo scremadelica e pelo loveless. Aliás, o último album da trupe de Kevin Shields é daqueles discos atemporais, eternamente estranho e belo, seja em 91 seja hoje em dia. Clássico puro.

  5. 10 para o loveless, 9.99 para o bandwagonesque e, infelizmente, 6 para o scremadelica (eu não nasci para esse disco, ou vice versa do contrário…).

    também prefiro o grand prix, mas é um empate técnico!!

    abraços e parabéns pelo texto.

  6. Texto magnífico, daqueles em que a leitura dá-se de forma tão fluida, tão leve que, ao terminá-la, uma sensação de vazio se instala imediatamente. Vou correndo atrás desse documentário sobre a Creation!!

  7. Texto realmente muito bom….gosto muito do Loveless e do Bandwagonesque ,apesar de como ja foi dito anteriormente achar o Grand Prix do Teenage melhor ,o Screamadelica destes três foi o que dei menos atenção ,por gosto pessoal apenas mas é um disco que vale a audição também

  8. Três discos bacanas embora tenham se tornado coisas só de indies e nunca disseram nada a uns 98% da população mundial. Uma pena!

  9. O titulo do texto é obviamente numa fala de Thurston Moore no doc. do Sonic Youth que mostra a tour na Europa do Sonic Youth, Nirvana, e outras “grunge Bands” no exato momento que Nirvana estoura no mundo.E a ironia do titulo se refere é The year that punk broke , na America. Ou seja com um grande atraso em relação a Inglaterra.

  10. esse disco do teenage me acompanhou durante meu período pós separação de minha primeira ex-mulher. vendi o cd para um amigo. algumas feridas jamais cicatrizam.

  11. Muito bom o texto! Quando menciona os ‘solos de qualquer nota’ do Neil Young como influência do Teenage Fanclub, fica claro que o autor sabe do que está falando.

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