A alegria segundo Jorge Ben

por Gabriel Innocentin?i

Jorge Ben é uma espécie de Van Morrison brasileiro. Mais do que brasileiro: carioca. Parece até que, tão disparatada a comparação, as letras de “A Tábua de Esmeralda” ficam até mais compreensíveis. Mas siga o raciocínio. Neste disco de 1974, Jorge Ben – ele ainda não era Jor – diz pretender uma “alquimia musical”. Naquela época, ele não estava sozinho nessa viagem: Tim Maia andava as voltas com a doutrina Racional enquanto Raul Seixas e seu parceiro Paulo Coelho exaltavam a Sociedade Alternativa.

Assim como “Astral Weeks”, disco de 1968 de Van Morrison, “A Tábua de Esmeralda” pode ser definido como um documento místico. Do quê? Sinceramente, menor idéia. Jorge Ben estava estudando alquimia por essa época, procurando interpretar os textos alquímicos e sua filosofia. Suas declarações fazem crer que ele sabe mesmo o que está cantando, embora não consigamos alcançar o sentido das palavras.

É possível, então, estabelecer conexão com esse estranho álbum? Sim. Como? Isso, amigo, você vai ter de fazer sozinho. Não tem como ensinar a gostar de um disco tão bizarro. Ou você se conecta, ou não se conecta. Simples assim. De repente, bate. Calma alegre, plenitude sem fulminação, nas palavras de Clarice Lispector.

Agora, o ponto onde tudo se liga, uma citação de Lester Bangs sobre “Astral Weeks”: “Van Morrison está interessado, obcecado com a quantidade de informação verbal ou musical que ele consegue imprimir no menor espaço possível e, de maneira inversa, quão longe ele consegue esticar uma nota, palavra, som ou imagem. Capturar o instante, ou um carinho ou um beliscão. Ele repete certas frases a extremos que, na boca de qualquer outro, seriam ridículas, porque ele está esperando uma visão se descortinar, tentando, da maneira mais livre possível, arrastá-la pelos cotovelos”.

Admirável. Troque Van Morrison por Jorge Ben e releia a última frase de Bangs. Agora ouça “Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas”, a primeira faixa do disco. Repare como ele nutre um tipo de prazer especial em repetir “de temperamento sórdido, de temperamento sórdido”. Ao vivo, Jorge leva esse mantra ao limite, repetindo a expressão quatro vezes até explodir num grito “de temperamento sórdido!”, antes de reafirmar que “os alquimistas estão chegando, estão chegando os alquimistas”. Como se ainda pudéssemos ter dúvidas!

As repetições aparecem por todo o disco. Como exemplo, bastaria “Errare humanum est”: a Grande Indagação – “eram os deuses astronoutas?” – é repetida à exaustão, como se a resposta pudesse surgir nesse abismo de dúvidas, que termina numa contagem regressiva. Na segunda faixa, “O Homem da Gravata Florida”, uma alusão ao alquimista Paracelso, praticante da “agricultura celeste”, Jorge é capaz de se maravilhar com uma simples gravata: “Meu deus do cé-é-é-é-u… que gravata mais linda, que gravata sensacional, olha os detalhes da gravata”!

O que “Astral Weeks” carrega de angústia (basta pensar em “Madame George”), “A Tábua de Esmeralda” carrega de alegria. Tente imaginar alguém cantando qualquer música desse disco sem ter um sorriso no rosto? Impossível. “Eu vou torcer” se encaixa na definição de Bangs: frases que seriam ridículas na boca de qualquer outra pessoa. Dá para acreditar em alguém que vai “torcer pelo Gato Barbieri”? Se for Jorge Ben quem canta, dá. Como não se deixar levar por “Minha Teimosia é uma arma pra te conquistar”?

O auge é “Magnólia”: “Mag. Mag, Mag. Magnólia. Eu disse Magnólia, eu disse Magnólia”. Entre cada frase, um solinho de flauta com toque de filme chinês. O que Magnólia significa, por que ela vem numa “nave maternal doirada”? Impossível saber, mas convém ficar todinho de branco, no caso de ela chegar.

Ali na oitava faixa está escondida uma jóia do cancioneiro nacional. Atende pelo nome de “Zumbi”. Começa com um solinho de violão e já parte direto para uma enumeração que não parece fazer o menor sentido: “Angola Congo Benguela Monjolo Capinda Nina Quiloa Rebolo”. Em seguida, a letra descortina essas palavras desconexas – mas que ouvido tem Jorge Ben! Ele poderia musicar uma lista telefônica que ainda soaria legal – até chegar nessa bela imagem: “Aqui onde estão os homens, dum lado cana-de-açúcar, do outro lado o cafezal, ao centro senhores sentados vendo a colheita do algodão branco sendo colhido por mãos negras”. Não é cinematográfico? “Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver”.

“A Tábua de Esmeralda” se encerra em tom menor ma non troppo: ela o abandonou, não esperou os cinco minutos pedidos por ele. Pior para ela, oras! Ela que não sabe o quanto vale cinco minutos na vida. A tristeza até existe, mas ninguém vai ficar chorando no meio da rua. O recado, no entanto, já tinha sido dado na faixa de abertura do disco anterior, “Ben”, de 1972: “Se ela disser que não te quer mais, arranja outra meu rapaz”. O namomomorado da viúva passou por aqui e ainda tem a menina mulher da pele preta.

Muito pode se especular sobre o sentido das letras, mas qual o real valor dessa questão em um disco cujo sentido está muito mais no ritmo do que no significado. “Tu terás por esse meio a glória do mundo e toda obscuridade fugirá de ti”. No instante em que Jorge Ben canta, essas palavras parecem verdadeiras: “toda obscuridade fugirá de ti”. Ele deseja que sua música traga “paz de espírito e tranqüilidade a quem a escuta”. Julgando-o em suas próprias bases está perfeito: “A Tábua de Esmeralda”  é igual a tranqüilidade, alegria, felicidade. Pois como disse William Blake, “a Energia é a eterna Alegria”.

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– Gabriel Innocentini (@eduardomarciano) é jornalista e assina o blog Eurogol

19 thoughts on “A alegria segundo Jorge Ben

  1. SENSACIONAL texto.
    (Eu nunca tinha parado pra pensar na semelhança entre esses dois petardos místicos, favoritos de qualquer coleção que se preze…). Parabéns.

  2. Apesar de não concordar com a teoria do autor, convenhamos que as justificativas foram bem apresentadas.

    Na verdade, Jorge e Van Morrison têm um contraponto, e talvez isso ocorra porque estão inseridos em países que manifestam emoções e sentimentalismos diferentes. Algo cultural mesmo. Os métodos podem ser semelhantes, mas os resultados colhidos são absolutamente diferentes.

    Astral Weeks, por mais que tenha velocidade nas composições, pode deprimir qualquer ouvinte, principalmente os desavisados. Mas ambos são místicos. E tem que ser levado em consideração o contexto brasileiro por trás de A Tábua de Esmeralda.

    Ainda assim, parabéns! Gostei de divagar nessa teoria….
    Abs!

  3. “…mas qual o real valor dessa questão em um disco cujo sentido está muito mais no ritmo do que no significado.”
    Disse tudo 🙂

  4. Sensacional !

    Duas belissimas e essenciais obras ! Nao sei se exatamente tudo tem a ver, mas se trata de um texto muito bem elaborado e com um otimo raciocinio logico .. lógico raciocinio… raciocinio logico..

    Abraços,

  5. Puxa, nunca havia pensado nisso, e são dois discos que não me canso de ouvir, duas pontas que nunca pensei em unir.
    Parabéns, cara, que texto bacana.

  6. Cara, você está de parabéns, belo texto.Nunca obtive nenhuma sensação que não fosse relacionada a alegria ouvindo esse disco.

  7. Puta que pariu (no bom sentido)! Texto EXCELENTE! Parabéns, tanto pela associação (bizarra) com Astral Weeks, quanto pela “dissecação” de um disco que realmente exala a alegria de viver! Abraços!

  8. Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa e Rebolo não são palavras sem sentido. São nomes de povos africanos que foram trazidos para o Brasil. Era um tipo de identificação dos escravos.
    Além disso, esse recurso de repetição das palavras não surgiu em Tábua de Esmeralda. Sempre esteve presente nos discos e músicas de Jorge Ben. E ele desde os primórdios foi genial em transformar frases banais em algo sublime. Só ele é capaz de cantar “O telefone tocou novamente, fui atender e não era o meu amor” e não soar ridículo.

    1. Acho que o que ele quis dizer é que essas palavras disparadas de primeira em uma música soam aleatórias a quem não sabe disso e que, logo depois, o Jorge Ben localiza o ouvinte na história de um jeito cinematográfico. Acho que ele só se esqueceu de esclarecer sobre o que se tratava.

  9. Eu acho – li em algum lugar – que esses nomes africanos foram Quilombos.
    Tábua de Esmeraldas tá no meu TOP 5.

    PS: Bastante esdrúxula e interessante a comparação entre os ábuns.

  10. Estava trabalhando na Zâmbia em 2007 e escutando esse disco. Zumbi sempre foi a minha música favorita, e quando ela começou dei uma parada no trabalho e fiquei viajando no fone de ouvido. Na minha frente eu tinha o mapa da África. Bum! de repente Benguela Monjolo, Cabinda… fizeram sentido! Quase todas são cidades do litoral de Angola, provavelmente de onde os homens livres (e a princesa) saíram para serem escravizados no Brasil. A música é pura poesia. Celebração feliz da origem triste dos brasileiros.
    Jorge Ben é o cara.

  11. O cara é um monstro mesmo, produziu verdadeiras obras-primas num tempo relativamente longo para qualquer artista manter o vigor de sua criatividade. Todos os discos de 1963 à 1976 são de altíssimo nível. Depois sua carreira sofreu altos e baixos, mas uma cara como ele, que nos presenteou com delícias como “samba esquema novo” ,”Negro é lindo”, “Solta o pavão”, “África Brasil” etc…só pode ser um Gênio.

  12. São dois otimos discos, mas vai apelar na comparação esdrúxula assim na shangri-lá. deve ser muito bom esse que vc conseguiu…

    que viagem!!

  13. “Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa e Rebolo não são palavras sem sentido… São nomes de povos africanos que foram trazidos para o Brasil. Quase todas são cidades do litoral de Angola”. O texto é interessante, mas tá precisando aprender geografia…

  14. Tá, legalzinho o esforço de comparação, ainda que o autor menospreze ou ignore o universo simbólico de Jorge.

    Faltou dizer que “A Tábua…” é um disco infinitamente superior.

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