CD: Depois do Fim, Bacamarte

por Rodrigo Fernandes

Sem querer mexer com esse negócio das coisas serem clássicas ou não, sobreviverem ao tempo ou não, se envelhecem mal ou não, há obras que são muito perfeitas em si mesmas. É aquele livro que da primeira à última página não te deixa em paz ou aquele filme onde tudo converge para a maravilha do píncaro da extremidade máxima. São as obras de arte mais raras e valiosas, sendo uma coisa, obviamente, filha e irmã da outra. “Depois do Fim” é uma dessas saborosas jujubas do bem.

Capitaneado pelo carioca Mario Neto, violonista de mão cheia, mais Sergio Villarim (teclados), Delto Simas (baixo), Marco Veríssimo (bateria), Marcus Moura (flautas e acordeom), Mr. Paul (percussão) e Jane Duboc – linda e em comecinho de carreira – nos vocais, o Bacamarte, banda de nome no mínimo esdrúxulo, gravou seu primeiro e derradeiro disquinho em 1983. Desde então “Depois do Fim” é uma das paradas mais sérias já feitas por essas bandas Tupinambás.

É bom informar aos incautos que por essas épocas o tal Rock Brasil não passava de uma névoinha longínqua, um fedorzinho distante, distante, desses que a gente nem sente direito e o rock progressivo – pomposo, habilidoso e virtuoso – ainda deslumbrava a moçada. Foi nesse espírito aí que surgiu o disco.
“UFO” é uma faixa instrumental que se presta muito bem a cartão de visitas. Onde todo mundo parece solar ao mesmo tempo. Um negócio meio inclassificável com um violento diálogo entre violão, flauta e baixo sobre uma cama onde os outros instrumentos não são meros coadjuvantes. Não, não, são não. “Smog Alado” (afinal, o que diabos é um Smog?) prossegue nessa levada de alta voltagem, um hard-rock-progressivo de primeira com a voz sopranônica de Jane Duboc marcando um contraponto bem bacana.

Aí o climão já estava dado. Para quem não lembra ou não teve a necessária vivência no meio musical, antigamente esse negócio de álbum conceitual era muito comum. A música se aproximava demasiadamente da literatura e muitos discos de alto sucesso contavam historinhas instigantes. “Depois do Fim”, óbvio, óbvio não poderia ser mais óbvio, fala do fim do mundo. “Miragem”, temão com altas comichonas de guitarra empolga e serve para baixar a bola para “Pássaro de Luz”, canção onde Duboc e banda alcançam altas alturas de lirismo sem cair na breguice generalizada.

As curtas “Caño” e “Controvérsia” são dois ótimos momentos instrumentais e provam, A mais B, que o disco mereceu estar entre os cem melhores álbuns de todos os tempos segundo a revista holandesa Exposure. Mas o álbum se completa mesmo é com a sinuosa “Último Entardecer”, que começa com uma levada candentíssima ao piano, e que se torna tensa com andamentos e riffs pesados (sem nunca perder a bacanez) da elegíaca “Depois do Fim”, onde a humanidade já foi para as cucuias, e só resta mesmo começar tudo de novo, está tudo lá, sonoramente falando.

Depois do disco veio o anticlímax da banda que – oh, vaidade, vício dos vícios – se desmanchou feito uma nhá benta ao sol. Em 99, Mario Neto, solo, mas ainda ostentando o nome de Bacamarte lança “Sete Cidades”, uma tentativa frustradézima de retomar o trabalho anterior. Fujam, trata-se de um engodo, não dá nem para comparar.

O que interessa é que “Depois do Fim” sobreviveu à própria lenda rococó-pop. Raríssimo em vinil e em CD, o disco virou um minério valioso contrabandeado livremente para fora do país. Os gringos chegavam, compravam tudo que encontravam a preço de banana estragada e despachavam para as estranjas, onde o disco alcançava até 200 dólares. Finalmente, alguém de bom senso da Som Livre resolveu reeditar o álbum num caprichoso formato digipack e com uma remasterização decente. O álbum, perfeitinho do inicio ao fim, trás trinta e oito minutos que qualquer banda minimamente séria devia invejar. É para ouvir sem medo de desperdiçar a vida. Esse é o grande elogio pra uma obra de arte, não?

Rodrigo Fernandes assina o blog Ao Vinagrete

5 thoughts on “CD: Depois do Fim, Bacamarte

  1. Descobri esse disco meses atrás, por acaso, lendo uma matéria sobre rock progressivo. Em dado momento citavam uma banda brasileira que havia lançado um álbum progressivo à moda antiga em plena década de 1980. Resolvi pesquisar e encontrei o disco. Uma maravilha de fato. Gosto do rock progressivo do final da década de 60 e início dos 70, antes de se tornar aquela chatice masturbatória. E o Depois do Fim é um dos melhores discos do gênero, uma obra completamente fora de época, e por isso mesmo, eterna. Parabéns pela lembrança.

  2. Eu também descobri esse álbum bem recentemente. E foi por acaso. Eu estava garimpando o Youtube, atrás de algo que já não me lembro e apareceu na sugestão esse fantástico trabalho. Concordo com todos os elogios e, nos últimos dois meses, eu só tenho escutado esse disco e o Arion (2001) da banda mineira Arion, outra pérola do rock progressivo nacional que também tem uma mensagem ecológica, mas cantado em inglês, evocando temas místicos.

    A propósito de Depois do Fim, eu também fiquei curioso em saber o que era smog e fui procurar na internet. Fiquei sabendo que é um “termo usado para definir o acúmulo da poluição do ar nas cidades que forma uma grande neblina de fumaça no ambiente atmosférico próximo à superfície. A palavra smog, aliás, é justamente a junção das palavras smoke (fumaça) e fog (neblina). Esse fenômeno prejudica a qualidade do ar e também diminui a visibilidade nos ambientes urbanos” (http://www.mundoeducacao.com/geografia/smog.htm).

    Por dedução, eu imaginei que o nome do dragão “Smaug” do filme “O Hobbit” deriva daí. Foi só uma suposição.

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