Entrevista: Iuri Freiberger

por Marcelo Costa
Fotos: Arquivo Pessoal

Nos últimos meses, o Scream & Yell tem batido forte em alguns pontos do cenário independente nacional, o que não quer dizer que o site seja contra a cena independente, mas sim que estamos tateando caminhos para que essa cena cresça com personalidade e força para conquistar mais e mais adeptos. Passar a mão na cabeça de gente que pensa errado a música brasileira não vai levar o cenário a lugar nenhum. E, acredite, queremos que esse cenário chegue a algum lugar.

Quinze, vinte anos atrás, quando se pensava em cenário independente, o sonho para o futuro era de que se criasse uma rede ao redor das bandas possibilitando o surgimento de profissionais que poderiam sobreviver do cenário sem precisar subir ao palco, gente como fotógrafos, designers, roadies, assessores de imprensa, técnicos de som e produtores. Vinte anos se passaram, e as coisas melhoraram muito, mas ainda há muito a caminhar, principalmente no território do som em shows e discos.

Talvez seja possível contar nos dedos de uma mão os grandes produtores que surgiram nos últimos anos, mas um deles, Iuri Freiberger, tem lugar garantido e de destaque. Foram mais de 40 discos produzidos desde seu debute oficial nos botões com “Carteira Nacional de Apaixonado”, de Frank Jorge, em 2000. De lá pra cá, Iuri produziu Walverdes (“Anticontrole”, 2001, e outros), Violins (“Grandes Infiéis”, 2005), MQN (“Bad Ass Rock and Roll”, 2007) e, agora, o novo disco do Cabaret, “A Paixão segundo Cabaret” (2010/2011), além de manter com Pedro Veríssimo uma das grandes bandas gaúchas dos anos 00, a Tom Bloch (que lançou em 2008 o belíssimo “2”).

A propósito, a Tom Bloch está hibernando – “A qualquer hora resolvemos fazer um disco, de uma maneira, com um foco ou jeito, e esse será nosso objetivo como banda” – mas Iuri não. Vivendo em Recife desde o ano passado, ele segue não só produzindo, mas lecionando em faculdade de música também (com a missão de transferir tudo que aprendeu) e montando um estúdio na cidade “com capacidade pra registrar áudio e vídeo em alta qualidade”, conta Iuri, um cara que também está tateando caminhos (com vários acertos) para a música brasileira. E que já saiu na Caras (risos).

O bate papo abaixo é um registro de uma semana de troca de e-mails (talvez mais). Na pauta, produção musical no Brasil (“Música hoje pode ser bem mais sincera”, diz ele), o som dos shows no País (“Os produtores de eventos subestimam a capacidade de percepção das pessoas”) e palpites sobre o futuro da música, a volta do vinil e a remasterização de discos antigos. “Acho bom relembrar que música é mais do que matemática. Ainda assobio “Vassourinhas” quando passo em Olinda no carnaval”. Com vocês, mestre Iuri Freiberger.

Há quanto tempo você está morando em Recife? O que te levou para ai?

Já vai um ano morando oficialmente, em julho. A história começou em 2007 quando vim gravar o AMP, e começamos a fazer o estúdio Casona. Era a casa que eles ensaiavam, e por fim resolvemos começar a desenvolver a idéia de fazer um estúdio com capacidade pra registrar áudio e vídeo em alta qualidade. Finalmente ele esta ficando pronto, e alguns dos meus projetos já estão prontos pra começar por lá. A decisão da vinda foi uma combinação de fatores: o estúdio andando, a faculdade de produção musical me convidando pra dar aula (onde hoje sou um dos professores da área técnica do curso e presto consultorias pra instituição em outras áreas), a Tom Bloch estar completando 10 anos e eu querendo dar uma reciclada no que eu tava fazendo como músico e produtor, e a pretensão de tentar transferir conhecimento, que foi algo imensamente novo pra mim, como profissional. Nisso tudo, varias coisas rolando e projetos seguem crescendo aqui, que tem uma abertura imensa para idéias e diferentes visões em música.

É estereótipo, mas vamos lá: como é para um cara vindo de uma cidade com influências tão roqueiras quanto Porto Alegre (há muitas outras sonoridades em PoA, mas parece que o rock, e principalmente os Stones, bateram forte na cidade) chegar em um cidade cuja percussão é um símbolo musical? Ok, você é baterista (risos)…

Pois então: minha história como musico é bem diversificada. Comecei tocando violão e bateria. Estudei bateria por muitos anos, muita coisa diferente, com um dos bateristas que veio a ser considerado referencia aqui no país, Kiko Freitas, hoje baterista do João Bosco (já faz tempo né) e que circula o mundo com muita gente bacana. Fui o primeiro aluno dele, mas nunca fui o cara que mais desenvolveu. Acho que o que sei sobre bateria veio desse período. Foi excelente para entender muita coisa de música, e me mostrar o que eu queria como músico. Nas cordas, estudei um ano de violão clássico, e depois fui pra escola da sinfônica, pra aprender o geral de música. Pouco tempo também. Tudo bem que ouvi muito rock, mas minha escola principal, como baterista, foi música negra. Minhas primeiras bandas eram de rock, influência desde novo. Minha primeira memória com musica, provavelmente quatro anos de idade, era colocando a coletânea azul dos Beatles. O disco estava quebrado, e só tocava uma música, no fim do vinil: “Ob-La-Di, Ob-La-Da”, que muita gente não gosta, mas acho uma musica excelente para crianças. O lance de música negra tem um pé nas coisas brasileiras. Principalmente Jorge Ben e Tim Maia. Isso também graças aos meus amigos da Ultramen, Julio e Pedro. Inicio dos 90 era maluco: grunge, metal, progressivo, Chili Peppers, FNM, indie, Bob Marley, a gente pegava esse caldeirão musical e mexia com nossa influência em PoA. Somava as coisas brasileiras, principalmente porque todo mundo tocava em banda cover, e então o que era legal a gente estava tocando. Foi bem nesse momento que voltaram a voga os dois mestres, e entrei para uma banda em que eles eram o mote, junto com Ed Motta: Black Master, com esse time: Julio e Tonho, gtr e voz da Ultramen, Frank Jorge nos teclados, Flavio Passos no baixo, o dono da banda até hoje, e eu na bateria. De vez em quando tínhamos percussão e sopros pra rechear o bolo. Esse momento do país, do que alguns chamaram de crossover, onde tudo foi misturado em tudo que é lugar, acho de extrema riqueza musical, coisa que nos dias de hoje não percebo, mesmo com internet e tudo mais. O povo faz cada vez menos, ou pelo menos do mesmo jeito. E como baterista, nada mais bacana do que regrar o jeito de tocar com funk, samba e soul, onde o baterista é a base, e toca como um metrônomo. Aprendi apanhando feio, branquelo e alemão, mas acho hoje que sai direitinho! Com o rock sempre por perto, a mistura teve esse foco: música de festa, de baile, pra dançar e animar, com musica visceral. Acho que é a primeira vez que junto essas peças, mas foi por aí que me puxou pra entender sobre minhas origens até mesmo como produtor. E por fim, mesmo que não pareça, Tom Bloch é a mistura de tudo isso: black music, que o Pedro é super influenciado, rock indie, canção e o pé nos 80, de onde crescemos.

Você tem contabilizado quantos discos já produziu? Como foi o começo?

Sim, sempre. Oficialmente começou com o “Carteira Nacional de Apaixonado”, do Frank Jorge. Ele tava querendo colocar umas batidas eletrônicas no disco, que foi o primeiro solo dele. E foi uma doidera, porque não era só isso, ele queria uns conceitos diferentes. Conseguimos misturar jovem guarda com Pato Fu e música cubana. Foram ótimos momentos em 2000. A história começa um tanto antes, desde o início dos Walverdes, em 92, 93. Sempre gravei o que eles faziam, entrei na banda tocando, bem no principio, e saí pra gravar. Foi o grande aprendizado, desde as fitas cassete até o digital. Depois do CNA, foi um disco atrás do outro. Em 10 anos, contabilizei o disco número 42 como produção agora em março, e mais uns 30 e poucos fazendo alguma coisa, entre mixagem, pós produção, masterização, etc. No momento, estamos preparando alguns especiais aqui com artistas locais, já focando em vídeo também. E sempre seguem os discos das bandas. O Cabaret acabou de ser masterizado no Abbey Road, e alguns outros estão no caminho. Um que devo colocar a mão até mesmo na parte artística será o disco do Henrique Neves, que era vocalista do Brinde, de Salvador. Vamos gravar tudo aqui na Casona, eu tocando vários instrumentos.

O disco novo do Cabaret foi masterizado em Abbey Road? Conta melhor essa história.

O Julio Porto também produz muita coisa, e por fim foi embora pra Londres. Lá, foi masterizar o novo da Pata de Elefante, e abriu esse caminho pras pessoas próximas a ele no estúdio. Aliás, hoje em dia ele está fazendo essa ponte por lá, e o próprio estúdio tem módulos online para masterização. Claro que a gente poderia fazer no Brasil, também teríamos resultados ótimos, como tenho obtido há anos com os grandes masterizadores do país, mas além do resultado sonoro, dos ouvidos diferentes dos nossos, tem mais. O Cabaret, por ser a banda do nosso amigo Marvio, é uma banda pretensiosa. Ou seja, se junta a mim, nesse nível de pretensão: fazer com que o que é importante para o resultado sonoro e artístico, a gente prime pela mesma sensação, de excelência. Por isso o trabalho minucioso, por isso o tempo e envolvimento pra chegar ao resultado. As decisões vieram em função disso. Assim como a Toca do Bandido (foto acima) como grande estúdio para o registro sonoro e produção. Assim como a participação do Ney (Matogrosso) numa música feita para ele, pensando nele. Assim como a grande eloqüência do texto e do cunho conceitual que Marvio e eu discutimos, e por fim, a finalização na meca da música pop rock mundial, na origem do que hoje vivemos a partir da sua história. Acho que assim se explica.

Tom Bloch de férias então? E o Cabaret, você está tocando também com o Márvio? As guitarras do disco novo estão fodas!

Pois sim, estamos (Tom Bloch) nesse gap, entre o que cada um queria pra sua vida, e o que podemos ir fazendo. Acho que chegaremos a um ponto, que nos dias de hoje, pode ser bem possível, que é ser uma banda de projetos. Ou seja, a qualquer hora resolvemos fazer um disco, de uma maneira, com um foco ou jeito, e esse será nosso objetivo como banda. Se tocar ou não, se lançar no mercado ou não, talvez não faça tanta diferença. É o que tenho sentido em relação ao nosso futuro. Com o Cabaret, em principio, não (toco), mas talvez faça algum show ou outro completando o time. A idéia é dar algum suporte, mas acho que eles sempre correram bem sozinhos. Talvez, daqui um tempo, eu faça um disco com o Márvio, dele, mas são meras conversas no Lamas, que ainda não tivemos mais como continuar.

Dos discos que você produziu, qual o que você acredita que conseguiu o melhor som?

Olha, é estranho chegar nesse ponto: depende do momento, da época. Acho que o “Tom Bloch 2” é excelente, mas o “Volume 3” do Frank é excelente (também), mesmo não tendo sido produzido diretamente por mim, mas chegamos juntos no som, eu e Rafael (Ramos). O “Playback” dos Walverdes é uma lenha inacreditável. O Cabaret agora foi de um esmero sem precedentes, de quatro versões de mixagens até chegar onde eu queria com o disco. O MQN também foi muito bacana pra época, vários pontos e visões diferentes para cada um. Esses dias tava ouvindo a demo que fiz da minha banda de soul music, de PoA, em 99, gravada no quarto do tecladista, e soa lindo. Acho que depende muito do momento, da combinação de fatores. Uma época eu dizia que tinha sorte com o som, porque juntavam vários fatores positivos, mesmo em condições precárias. Enquanto a média dos discos do início dos 90 era bem fraca em produção, e de algumas demos, no mundo independente, eu tive a chance de trabalhar com os mais diversos artistas e tirar o caldo de cada um deles. Um disco que é maluco, mas me soa super bem pra proposta é o do Mechanics, mesmo sendo gravado de maneira tosca e esquisita.

Na verdade, eu não me prendo muito ao som que eu tenho como referência, e sim com a compreensão do que é melhor praquele momento e condições. É claro, hoje, tecnicamente, estou muito mais exigente. Não é a toa que os últimos trabalhos vem de captações em grandes estúdios e com finalizações em outros de grande qualidade. E é por isso que a Casona está seguindo esse caminho, de excelência em produção sonora, e em muito breve, audiovisual. Por exemplo, com o Cabaret: Marvio e eu começamos a conversa sobre o disco um ano antes de entrar em estúdio pra gravar. Pensamos nas possibilidades, objetivos, o que ele queria com a banda, como a banda estaria naquele momento. Muita água passou por baixo da ponte desde os primeiros ensaios até chegar na masterização. Mas creio que chegamos a um nível de trabalho que comparativamente, não deixa a desejar a nenhum disco feito fora do Brasil, e com qualidade que não é costume ser ouvido nas produções realizadas por aqui.

Entrevistei o pessoal da Walverdes uns anos atrás, e eles definiam “Anticontrole” como um divisor de águas para a banda. O Mini disse: “O mérito da qualidade do “Anticontrole” é todo do Iuri. Porque também foi gravado sem as condições técnicas ideais, mas o Iuri se esmerou na produção”. Particularmente acho um disco sensacional. E que banda de soul music é essa que você teve?

Mini é o cara responsável pela minha entrada na música, pra valer. Se ele julga algum mérito do meu esforço, o mérito é dele. A gente tem uma relação de amizade que transcende a coisa da música, pode ser acaso, mas desde que nos conhecemos a afinidade em relação ao que queríamos pra vida foi bastante parecida, mesmo por caminhos bastante diferentes. Tenho ele como uma pessoa referencial, por conseguir viver em coisas completamente ambíguas, como publicidade, rock e budismo, além de escrever muito e ser um cara influenciador de muita gente que ele tem por perto. A banda de soul music veio daquela coisa da faculdade: a gente lá, estudando comunicação, vendo o caldeirão fervendo das influências musicais, ouvindo Pixies e James Brown. Então veio o filme “The Commitments”. Bateu forte em dois amigos da PUC, e um deles fazia a UFRGS também. Naquelas de estar na faculdade pela música, apareceu ali mais uma chance de tocar, fui conferir com meus amigos que estavam entrando. No primeiro ensaio, com um repertorio tirado do filme, saquei que aquele conjunto funcionaria muito bem. Então nos mexemos pesado para evoluir e formar um grupo naquele estilo, claro, tocando as músicas que também fez a banda no filme se formar. E me esforcei muito na produção executiva, pra fazer a banda andar e se tornar uma banda com trabalho duro, como o nome diz. Chama-se The Hard Working Band (foto abaixo na revista Caras). Resumo: fizemos uns 400 shows em cinco anos de banda que participei, alguns para muita gente, coisa de 40 mil, 100 mil pessoas, fizemos shows com grandes bandas pop como Paralamas, Titãs. Gravamos um CD ao vivo com os covers classicos de soul music, que na época vendeu umas 40 mil copias, e segue vendendo até hoje. Saí da banda em 2000, quando eles resolveram apostar num repertorio em português e também próprio, e seguem firmes e fortes até hoje, com mais alguns discos gravados, inclusive com orquestra. Os vocalistas, quatro, sempre foram de grande excelência, e hoje tem carreiras próprias e vasta experiência no universo pop brasileiro. Ou seja, tem muita Motown e Stax aqui nessas veias.

Como você vê a produção musical no Brasil?

Creio que desde que eu comecei a história toda evoluiu radicalmente: os produtores a gente contava nos dedos, principalmente aqueles que de alguma forma eram atrelados as gravadoras, que estavam no Rio e SP. Acho que tivemos uma separação, bastante relevante nos 80, principalmente porque o custo das produções diminuiu consideravelmente, e isso tornou possível a formação do mercado independente. Nos 90, tivemos o boom do digital, que barateou todo o processo e trouxe pra perto os recursos antes possíveis só para gente com muita grana. Acho que só a partir daí é que o mundo se nivelou, em produção, porque muita gente sem idéia do que existia tecnicamente para produção teve acesso aos recursos. Eu mesmo comecei a busca pelas sonoridades que eu curtia, mas não tinha informação, os profissionais em Porto Alegre detinham e não transferiam, era algo para poucos e defendido ferrenhamente. Foi um momento duro, porque eles perceberam que iam perder a exclusividade do conhecimento, e alguns cabeça-dura como eu insistiram em aprender. Ouvi muitos “não dá pra ser feito”. Acho que isso que me fez tornar-me produtor: se isso existe em um disco que gosto, porque não pode ser feito???

Um dia eu quis o som da caixa do John Boham, algo impensável no mundo de quem gravava. Ouvi vários nãos de quem era o grande, em PoA, na área de áudio. Alguém que quiser conferir, tem alguns dos meus discos com o som bem parecido, pois consegui chegar onde eu queria. O mais próximo é o disco de Evandro Demari, “Serendip”, em que toquei bateria e foi gravado no estúdio YB, em SP, por Gustavo Lenza, em 2000. Só para ter noção: em 97, quando fazíamos as demos para mandar pras casas de shows no sul, um CD gravado pelo grande engenheiro de áudio em PoA, que era o único que tinha um gravador, custava 70 reais. Isso sem nada, somente um CD virgem copiado. E era luxo, porque até então o que o normal eram as fitas demo. A partir da pirataria de softwares e plugins, e a internet, um vasto campo se abriu. Todo mundo começou a poder experimentar o que eram os recursos fechados para os grandes estúdios, e seus resultados, mesmo ainda pífios em sonoridades. O que antes era somente de quem tinha dinheiro suficiente para bancar a produção, agora tinha virado o investimento nos seus home studios. Foi nesse momento, pra mim, que o Brasil começou a entender o que poderia ser feito com produção musical, de verdade, em relação ao que poucos entendiam e o faziam muito bem. Sou e sempre fui muito fã do Liminha, do Tom Capone, de alguns dos discos seminais do (Carlos Eduardo) Miranda, dos discos do Chico Buarque, dos Mutantes, e até eu conseguir ter o equipamento básico para testar algumas coisas, isso tudo que eles faziam me soava como mito, inalcançável. Hoje fico feliz de discutir com uma turma de 15 alunos que estou formando, em nível superior, e todos entendem da mesma maneira o que eu aprendi na marra, tem noções gerais de produção, tem equipamento, tem capacidade de discernir entre o que foi feito e o que existe nos dias de hoje.

Creio que na produção brasileira atual, depois de termos nos desprendido dos impedimentos técnicos, podemos soar como qualquer grande artista internacional, ou como desejarmos. Em geral, acho que estamos muito bem, só acho que o universo pop e popular não explora as possibilidades, porque existe ainda um medo do que foi estabelecido pelo mercado fonográfico e pelas rádios, desde os anos 80. Ainda se tem muito medo de não errar, de ter que “tocar na rádio”, de soar como algum artista original que somos fãs, ou de ainda agradar a massa e os detentores de algum mísero poder na mídia. Talvez em geral as pessoas não se lembrem, mas no ano que vem será o décimo aniversario do “Bloco do Eu Sozinho”, dos Los Hermanos, e esse disco estourou em vendas sem tocar na radio, somente pela divulgação pela internet, e a banda se tornou referência para uma geração inteira de fãs. E a produção do disco não comportava nenhum padrão que existia naquele momento no mercado brasileiro, tanto que a gravadora pediu pra outros produtores remixarem antes de lançá-lo, para ficar mais fácil ao que eles julgavam para o ouvido do “público” da banda, que conhecia “Anna Julia”, somente. Ledo engano. Hoje, um dos grandes sucessos em termos de alcance de público é o tecnobrega, de Belém. E a produção é super simples, super fácil de ser manipulada em um PC, com softwares como o Fruitloops, que qualquer menino de 10 anos já sabe utilizar pra fazer música. E é um sucesso considerável pelo mundo, com repercussão até mesmo em veículos como o New York Times. Ou seja, música hoje pode ser bem mais sincera, acho que mais próxima do que é sua origem, sem depender do poder de decisão que algumas pessoas detiveram durante décadas no país e no mundo. Quem ainda não o faz é porque tem medo do futuro ou de que seu burro coma as amarras e alguém monte nele.

O Wado se amarra nos pancadões cariocas, e vejo nessa paixão dele exatamente isso que você diz: música sincera. Mas à parte a sinceridade, para onde você acha que a música está caminhando?

Honestamente, pra mim são dois lados bem claros: de quem percebe que o mundo mudou e tem clareza a esse respeito, e de quem está preso a modelos de 40, 50 anos atrás. Os presos são reprodutores, estão sempre atrás do que foi feito. Pra mim é a música da classe média e alta, de quem toca o que foi influenciado por outros, de quem curte reproduzir seus ídolos. De quem foi criado sob a mídia, sob as revoluções culturais, mas tomou dela a parte exterior, de imagem, de resultado para sua construção de personalidade. É a música dos personagens. Eu vivo meio nesse mercado, e tenho consciência disso. É a música em que muito do que é feito é baseado no que tem que ser mostrado pros outros, pra satisfação do ego, em geral e resumidamente. Por isso creio que minhas mudanças estejam relacionadas com a mudança de foco em relação ao que quero e espero da música. Talvez minhas grandes pretensões tenham ficado no Cabaret, por fim, isso eu comentei com o Marvio. Pedro talvez tenha entendido, também. Agora, parece que estou mais em paz pra fazer o que não espero resultado. Alguém pensa nisso, hoje em dia? Por outro lado, acho que atingimos a liberdade total de recursos. Ninguém está mais preso a condicionamentos para fazer música, vide o desenvolvimento tecnológico e ao acesso. Então, se o tecnobrega atinge o mundo, é porque eles são sinceros. Não foi a gravadora, a mídia, o jornalista com interesse que o fez. Eles já estavam lá, só restou ao mundo conhecê-los. Mesmo que tenham interesses, pretensões, resultados, o fator transformação nesse caso é mais forte. Acho que nesse nível, a música é mais sincera. É como o futebol, pela paixão. Estraga quando as corporações tomam conta. Mas até lá, existe muita coisa legal que acontece, muita troca com o mundo. Acho que estamos caminhando pra isso, pra quem poderia ser um artista com propriedade, hoje não teria mais os impedimentos que muitos tiveram. Só creio que infelizmente estamos baseados nos dois problemas que, pra mim, estragam a música: resultado e técnica. Sei que fiz muito pra entender dos dois, e lidei muito com isso (e ainda vou continuar lidando), mas a sinceridade as vezes não vem a tona se esses dois fatores entram na frente. Não julgo quem gravar uma música, já fazer MySpace, tirar foto, fazer clipe, fazer projeto pra Funcultura, querer tocar em festivais, querer lançar discos ou online, aparecer na tevê, dar entrevistas, fazer tournées mundiais em que interessa o nome da cidade e país, e não pra quantas pessoas se toca, não seja nada mais do que resultado, nenhum mérito se tem em aproximar do que já foi feito para atingir metas de quem teve o mesmo caminho, e tirar onda com isso tudo, achando-se importante e relevante para a música. Pois não o é, mesmo. Talvez, por algum motivo, possa impressionar as pessoas, possa iludir sobre o resultado, possa passar sentimentos positivos. Só que não canto uma música recente há tempos. Não me fica na cabeça melodias de discos novos, há anos. Ano passado, Radiohead. Ontem, só Chico Buarque. Continuo ouvindo aqui na memória coisas do passado, às vezes distante. Algumas perdidas, algumas canções, mas é bem pouco pra quando se tinham discos com todas as músicas cantáveis, ou músicas compostas há séculos que ainda mexem profundamente com alguma coisa que não temos compreensão. Em épocas de discussões acirradas por aqui, acho bom relembrar que música é mais do que matemática, e isso que estamos vivendo: formulas técnicas, de produção executiva, de resultados, de falsos méritos. Ainda assobio “Vassourinhas” quando passo em Olinda no carnaval.

Por que o som dos shows no Brasil é, na maioria das vezes, tão sofrível?

Olha, acredito que pelo mesmo problema de aparatos técnicos, e conhecimento em relação aos resultados. Pela minha experiência, mal faz cinco anos que as equipes de som conseguiram ter acesso aos mesmos recursos que os estrangeiros, na sua totalidade. Da mesma maneira, a internet ajudou a nivelar o mundo todo nesse aspecto. Por exemplo, no festival GigRock, que eu fazia em Porto Alegre, durante duas edições eu tive acesso, para mixar o PA dos shows, de uma mesa Digico, utilizada pelo U2 na tour que fizeram pela America do Sul. E as caixas do sistema eram francesas. Então consegui mixar os shows de 23, 24 bandas com a qualidade de equipamentos de qualquer festival europeu. Claro que minha experiência é bem menor em relação ao que esses profissionais já acumulam há décadas, mas felizmente ninguém ficou prejudicado pelo som nos seus 30 minutos de show. Só continuo achando que em geral os produtores de eventos subestimam a capacidade de percepção das pessoas no país. Principalmente em casas noturnas. Não é possível a gente entrar num lugar, pagando um valor considerável de ingresso, e o som da banda, que se esmera tanto para conseguir se fazer presente naquele lugar, seja deplorável. Às vezes bandas fazem tours pelo país, de 20, 30 shows no mercado independente, e o dono da casa tem um sistema que não comporta definição sonora nem pra banda se ouvir e nem pra platéia compreender o que é tocado. Acho isso uma mentalidade ultrapassada e que está começando a desmoronar, pois já temos percebido que pelo desenvolvimento tecnológico, que reduziu o tamanho dos sistemas e aumentou suas potencias, e pela informação através da internet, muitos lugares já estão mais conscientes nesses quesitos. Além, de claro, ter cuidados com a acústica dos ambientes e de cuidar dos funcionários, com protetores auriculares. Mas creio que somente uma renovação de geração de produtores de eventos vai fazer com que essa atitude relaxada mude em relação aos artistas.

E você agora, na função de professor, está bastante envolvido com essa renovação. Há muitas faculdades de produção musical no Brasil? Se alguém quiser entrar na área, descobrir o mundo da produção musical, o que você recomendaria?

Tenho sentido que, pra mim, isso se tornou uma certa missão: transferir esse conhecimento que adquiri sem muita clareza, pois achava que eram necessidades mesmo. Fui perceber o alcance do que descobri há pouco tempo, quando entendi sobre o que eu podia dar aula. Honestamente, acho que não é tão necessário alguém fazer uma faculdade para se tornar hábil nessas áreas. A quase totalidade das pessoas que trabalham por aqui não fizeram nenhum curso. Os que tinham cursos os fizeram fora do país (mas isso é raro, e por vezes muito bom). E creio que o universo técnico traz impeditivos pra quem cria. Mas tenho percebido uma coisa, principalmente, que é aquela questão do meio, da convivência, da troca de informação e experiência. Pra mim, cursando comunicação foi que abriu o universo do trabalho com música, a relação com o meio que produzia música e clareou muitos aspectos relevantes em relação ao senso crítico e sobre os conceitos de onde a música vem. Então creio que, se alguém entra na faculdade para se tornar produtor, contando somente com o curso, existe um problema grande, talvez uma falta de noção sobre o caminho. Mas estar numa faculdade em que todo mundo troca informações diariamente, que tem professores hábeis e com experiência de mercado, é extremamente válido. No nosso curso, percebo que se formarão especialistas em várias áreas, com conhecimento em muitas, mas atualmente principalmente em alguma delas. Na primeira turma, que se forma agora, temos produtores executivos, jornalistas da área, produtores musicais renomados, músicos, técnicos para sonorização, gente de banda (é claro!!!), gente que trabalha com cinema, animação, tem muitos focos diferentes. Ou seja, parece que a consciência em relação ao que se pode fazer na área é um dos pontos mais relevantes pro curso, que parece ter uma nomenclatura bem menos abrangente que isso tudo. Mas cursos técnicos, tenho muito medo! O que ouço falar é que é ensinado: é assim que se faz!!! Normalmente eu digo: olha, fiz assim, outros fazem assado, mas tem mil maneiras, não tem fórmula, não tem regra a não ser detalhes de cálculos sobre freqüência, que é matemática mesmo. O que vem, além disso, são meros instrumentos para se obter resultados sonoros e estilísticos, é como penso. As decisões cabem à capacidade de percepção de cada um, e os caminhos que se queiram trilhar.

Como você vê essa volta (timida ainda) do vinil?

Pois acho que será nosso objeto de consumo, pra quem ama música. É o duradouro, com espaço, com romantismo pelo objeto, pelo som, pela história. Pra quem não viveu isso, talvez não faça a mínima diferença, mas pra quem consumiu música no período pré internet, acho que ainda move corações. E a parte relacionada com a produção é muito bacana, tem muito mais charme que espaços virtuais e capas de CD, muitas vezes menores que os pôsteres que se tornavam os encartes dos vinis nos 80, além da qualidade atualmente ainda ser superior ao que existia na sua era. Fico achando um grande ponto de re-evolução pra quem gosta de música, voltar a origem do produto e renová-lo pra nossa era. Mas pro mercado ainda vai demorar a entender, ainda mais no país dos carrinhos de som que andam pelas praias e periferias do país vendendo CDs e DVDs recém lançados por 4 reais.

Muitos discos clássicos estão sendo remasterizados. A discografia dos Beatles e, agora, o “Exile”, dos Stones são dois exemplos recentes. Você chega a ser purista ao ponto de achar que não é preciso mexer naquele trabalho já feito? Ou aprova o Mick Jagger remixar mais uma vez o “Exile”? Me parece que estamos diante de um novo disco…

O que acho não é a questão do voltar atrás, e sim porque não temos mais o que lançar, em larga escala. Bandas com essa envergadura estão praticamente extintas, e poucos artistas vão falar pra tantas gerações como os seminais da era pop. Continuo achando que é mera extensão do que existiu, pra gerar mais lucros, enquanto a velha indústria sucumbe com as últimas gotas de soro que tem no tubo, antes que ele esvazie. E mexer, depois de tanto tempo, em grandes obras, talvez seja mexer com mortos, não sei se isso é bom ou ruim, honestamente, mas procuro não me envolver tanto. Não creio que se Picasso ou Dali estivessem vivos iriam querer retocar algum quadro porque não acharam a cor ideal no momento. Talvez quando resolvessem escanear até o fariam, mas é uma dúvida que não teremos respostas. Ainda prefiro pegar o vinil do “The Dark Side Of The Moon” e ouvir a voz final do LP que sumiu na versão remasters em CD, que por sinal, está emprestada pro Mini faz quase 10 anos e ainda não peguei de volta!!!

Leia também:
– “2?, Tom Bloch, um disco sensacional, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevista com a Walverdes em São Paulo, 2005, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevista com Wado em São Paulo, 2009 (aqui)
– “Grandes Infiéis”, do Violins: antipopular, bem gravado e genial (aqui)
– “Procura-se técnico de som”, por Marcelo Costa (aqui)

14 thoughts on “Entrevista: Iuri Freiberger

  1. Muito bom poder ouvi-lo Freiberger. Me sinto sempre em reconhecimento com o seu trabalho. Da mania de ler fichas técnicas identifiquei uma figura em comum em muitas das obras que mexem comigo. O “2” com o Tom Bloch é uma saborosa obra-prima. Saudar também o exercício do bom jornalismo que o Scream Yell vem praticando com entrevistas em plena sintonia com a pluralidade do atual cenário musical brasileiro.

  2. Os discos da Walverdes tem uma produção simples e impecável, porrada na cabeça e gostaria de citar também o excelente disco da Viana Moog que o Yuri produziu que também é impecável.

  3. O Iuri fala como se estivesse conversando com a pessoa.
    De um jeito muito carinhoso, nada de estrelismo.
    é muito legal, porque fala com uma propriedade, uma tranquilidade e uma maturidade muito própria.
    Na calma, no salto.
    Papo de gente que já tem muitaaaaaaa experiência e agora se dá ao direito de fazer o que bem entende com a
    a música, com o som.
    Eu adorei! uma super entrevista de bastidores, um aprendizado pra todo mundo.
    Acho que essa entrevista tinha que sair no Folhateen, aquele caderno da Folha pra molecada jovem aprender um pouco com esse rapaz aí. Parabéns!

  4. Só por ter produzido o Volume 2 – que tem um dos melhores sons que eu já ouvi – o Iuri já teria grandes méritos. Mas ele ainda compôs o dito cujo. Fantástico e bela entrevista.

  5. Pingback: Andrius Kalesnikas

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