Mark Lanegan ao vivo em São Paulo

Texto por Carlos Messias
Fotos por Marcelo Costa

329 dias após sua primeira passagem pelo Brasil, Mark Lanegan volta a São Paulo, novamente, para uma única apresentação. O show anterior, longe de ter sido ruim, não chegou a satisfazer os que ansiavam por ver o ex-vocalista do Screaming Trees, que mantém carreira-solo desde 1989, em ação. Ao lado de Greg Dulli (ex-Afghan Whigs, atual Twillight Singers e parceiro de Lanegan no Gutter Twins), a performance do ano passado mais pareceu uma prova de revezamento, em que a dupla relembrou diferentes momentos de ambas as carreiras, deixando o outro em segundo plano, seja fazendo backing vocals ou harmonizações menores. A plateia, também dividida, parecia torcida de futebol, vibrando quando o seu respectivo ídolo fazia um “gol”. Mas agora, não. Lanegan estava ali para rever, exclusivamente, o próprio repertório, e seus seguidores, poucos e bons, quase lotaram o Comitê, casa de shows recém-inaugurada na região do Baixo Augusta, com capacidade para mil pessoas. A apresentação inaugurou a “série cult” do festival Popload Gig.

Coisa de meia-hora após o horário previsto, Lanegan e o guitarrista Dave Rosser (do Twillight Singers e do Gutter Twins), que o acompanhou no ano passado (desta vez no violão), subiram ao palco. Sorrisos, “hellos”, saudações, que nada. Os dois já engataram “When Your Number Isn’t Up”, faixa de abertura matadora – dado o seu teor denso e introspectivo – de “Bubblegum” (2004), mais recente álbum solo de Lanegan. Na ausência da guitarra de Mike Johnson (ex-baixista do Dinosaur Jr., que mantém uma carreira-solo interessante e foi o parceiro mais constante de Lanegan) e dos elementos eletro-eletrônicos que deram corpo, pelas mãos de vários músicos, a “Bubblegum”, Rosser utilizou arranjos bem simplificados. Conjecturando, a explicação óbvia é que Lanegan não atrairia quórum suficiente para bancar uma apresentação com banda completa na América do Sul (e em uma série de shows recentes na Europa). Mas o vocalista compensou na interpretação. É difícil imaginar um artista que consiga segurar um show no gogó, mas este deu conta do recado com louvor.

Na sequência, emendou “One Way Street”, “No Easy Action” e “Miracle”, que abrem, também muito bem, seu disco anterior – “Field Songs” (2001). Desde o princípio, o músico não se mostrou à vontade no palco. Evitava olhar diretamente para o público – cantar com os olhos fechados é uma constante em seu modus operandi – e, entre as canções, não se dava ao trabalho de emanar um “obrigado” ou improvisar meia dúzia de baboseiras para entreter a galera. Foi no máximo um “thank you”, seco como de costume, e uma apresentação protocolar do músico que o acompanhava. Quando se movimentava pelo palco – seja para comandar alterações no setlist no ouvido de Rosser ou para um gole de uma das garrafinhas de água que estavam em um banco atrás dele –, eram gestos duros, quase truculentos. Um mané que não parava de gritar “Dollar Bill” a cada interrupção, ou o falatório dos espectadores, também não ajudaram a fazer com que o cantor se sentisse à vontade. Mas nada com que ele não esteja acostumado.

É nítido que estamos diante de um sujeito extremamente tímido, quase monossilábico, que encontrou na música a única forma de expressão. E isso ele faz muito bem. Posicionado diante do microfone – desta vez, felizmente, em pé, ao contrário de 2009 –, que utiliza quase como uma envergadura, mantém uma postura dura e segura o pedestal com ambas as mãos. O suor corria solto, mas, no olhar, nenhuma expressão. Nesse sentido lembra Johnny Cash, tanto pelas vestimentas pretas quanto pelo semblante cool e desconfortável ao mesmo tempo. E ao cantar, ele não simplesmente deixa a voz sair, com a facilidade que dá a entender em seus álbuns, mas arranca de dentro de si uma vivência que acumulou ao longo dos anos.

Como um bom uísque – que não bebe mais, mas contribuiu no teor das entonações –, sua voz fica melhor com o passar do tempo. Uma boa amostra disso é sua evolução vocal durante a era Screaming Trees, na qual foi de discos psicodélico-experimentais e relativamente toscos como “Clairvoyance” (1986) e “Even If and Especially When” (87) a álbuns bem acabados como “Dust” (96), que, graças ao baterista e percussionista Barret Martin, tem uma profundidade tribal. E hoje, ao vivo, Lanegan não usa só do pulmão e a garganta – já desgastados pelo longo período de tabagismo compulsivo. Ele se apropria de uma boa dose de estômago e, principalmente, fígado para entoar canções com tanta intensidade. É difícil fugir do chavão, mas esta foi uma apresentação completamente visceral.

Apesar do olhar distante, era claro que ele estava ali. Maneava a cabeça, sempre para o lado direito – exceto quando havia uma câmera apontada para ele vinda daquela direção –, como que em espasmos, e abria os olhos em êxtase, como que recuperando o fôlego da longa jornada interior. As luzes azuis contribuíram para o aspecto etéreo e intimista da apresentação. Fisicamente, o músico de 45 anos também denota a passagem do tempo marcado por excessos. Rugas demais e cabelos começando a rarear, mas, ainda assim, cá está ele, sem empresário nem roadie, manifestando sua arte não por capricho, mas por sobrevivência. Não é difícil imaginá-lo, daqui uns 20 anos, tocando em espeluncas sujas e viajando por conta como Bad Blake, personagem de Jeff Bridges em “Coração Louco”. Lanegan é um exemplo bem acabado de bluesman dos tempos atuais, que empresta sua voz – quase uma grife – a projetos moderninhos como os dois últimos discos do Soulsavers, o penúltimo do Bomb the Bass e o mais recente do UNKLE, mas, por um momento sequer, ignora as raízes cravadas no folk e no blues.

Como sinalizou a parte europeia desta turnê, o show se mostrou realmente centrado em “Bubblegum” e “Field Songs”, como denotaram as canções “Little Willie John”, “Don’t Forget Me”, “Resurrection Song”, “One Hundred Days” e “Bombed”. Houve exceções como “Wild Flowers” (do disco de estréia, “Winding Sheet”, de 1990), “Bell Black Ocean” (infelizmente, a única do ótimo “Scraps at Midnight”, de 1998) e “The River Rise”, de “Whisky for the Holly Ghost” (1994) – transformada em hino grunge ao sonorizar o documentário “Hype” -, além de “Message to Mine” (assista aqui), do EP “Here Comes that Weird Chill” (2003), e “Mirrored”, lado B do single “Hit the City’ (04). Também representou o Soulsavers com “Can’t Catch the Train”, do mais recente álbum, “Broken” (2009), e o Screaming Trees, com “Where the Twain Shall Meet”, do último disco “de garagem” do grupo, “Buzz Factory” (1989), e “Traveler”, de “Dust”.

Ainda houve espaço para covers, e estamos falando de um artista que, ao tomar emprestado o repertório de outros, sempre foge do óbvio. Lanegan já interpretou Billie Holiday, Buck Owens, Willie Nelson, Roky Erickson, Townes Van Zandt, Tim Buckley, Nick Drake, Gene Clark, Bonnie “Prince” Billy, José González, entre outros e, ao gravar uma faixa para a trilha de “Não Estou Lá” – semibiografia de Bob Dylan –, foi de “Man In The Long Black Coat”. De tal modo no show, apresentou “Shiloh Town”, de Tim Hardin, e “On Jesus Program”, da lenda do soul O. V. Wright (ambos em seu disco de intérprete, “I’ll Take Care Of You”, de 1999), além de “Julia Dream”, do Pink Floyd. E, para alegria daqueles que insistem em associá-lo a contribuição – importante, porém pequena se comparada ao corpo sólido de seu trabalho solo – ao Queens of the Stone Age, encerrou com “Hangin’ Tree”, de “Songs for the Deaf” (2002).

Três músicas antes (ao término de “On Jesus…”), quando normalmente sai para o bis, falou que aquele era o momento em que normalmente encerra os shows. Mas, como estava em uma casa que não tem acesso direto do palco para o camarim nem deste para a rua, segurou a apresentação num tiro só – afinal, seus fãs estavam em polvorosa e tietagem pouca seria bobagem. Ao término de “Hangin’ Tree”, ao invés de se dirigir para a esquerda, que dá acesso ao camarim, onde era esperado, foi para a direita, rumando diretamente para a rua – graças a um segurança, não foi encurralado no fumódromo. Levou o setlist em mãos e, longe de agraciar algum da plateia que pedia pela memorabilia – Lanegan não é muito dado a esse tipo de frescura –, dobrou a folha de papel e enfiou no bolso de trás da calça. Um desfecho ríspido e surpreendente para uma apresentação marcante. Afinal, ideologias antiimperialistas à parte, não resta dúvidas: Mark Lanegan é um “american original”.

Carlos Messias é jornalista e assina o blog Sem Manual de Instruções

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Leia também:
– “Adorata”, The Gutter Twins, por Marcelo Costa (aqui)
– “Bubblegum”, de Mark Lanegan, por Marcelo Costa (aqui)
– Mark Lanegan e Greg Dulli ao vivo na Bélgica, por Marcelo Costa (aqui)
– “It’s Not How Far You Fall”, Soulsavers, por Marcelo Costa (aqui)

11 thoughts on “Mark Lanegan ao vivo em São Paulo

  1. Finalmente um texto escrito por alguém que conhece a carreira solo de Mark Lanegan, cansei de ler textos sobre o show do ex-vocalista do Screaming Trees, parabéns.

  2. Cantor fantástico. Carreira solo fantástica. Que vocalista fodido!
    Porém, nada solo dele é e jamais será melhor que Sweet Oblivion.

    Puxando um paralelo nada a ver, o mesmo pode ser dito de Grant Lee Philips.
    Nada solo dele é e jamais será melhor que Fuzzy.

    Dois mestres bem injustiçados nestas tristes plagas tapuias. Gleba maldita!

  3. Fabricio, bem verdade isto ai, dois belos discos que não não foram superados. No primeiro caso, do Screaming Trees a banda era boa pra caraleo, um dos melhores bateristas de todas aquelas bandas que surgiram de Seattle e os dois irmãos eram muito massa também, baita disco.

  4. Oi Carlos!!Mark Lanegan regravou alguma música do Townes Van Zandt em álbum
    ou em performance ao vivo?Sei que no próximo disco com a Isobel Campbell tem duas faixas
    do Townes!!!!!!!!!Abs!!!!!!

  5. Queria muito ter visto esse show…adoro a carreira solo, amo screaming trees, mas eu odeio essa empatia gringa…

  6. Que bom que alguém ainda se rende aos anos de 1990. Viva Mark Lanegan, viva Grant lee Phillips, viva kurt Cobain e finalmente viva Axl Rose…he, he, he brincadeirinha!!!!

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