Entrevistão: Lulina e Stela Campos

ENTREVISTÃO DE MAIO

Entrevista por Marcelo Costa e Tiago Agostini
Revisão: Marco Tomazzoni
Fotos de Ariel Martini

Stela Campos e Lulina fizeram caminhos contrários. Stela nasceu em São Paulo, montou uma banda na cidade, mas deixou tudo por Recife, onde conheceu Chico Science, teve um programa de rádio com DJ Dolores, fez shows no Abril Pro Rock e Rec Beat e viveu seis anos de vida pernambucana. Lulina nasceu em Olinda e, enquanto o mangue beat estava bombando, ela ficava em seu quarto devorando livros e compondo canções. Montou uma banda na cidade, mas seu próximo passo foi vir para São Paulo (após 20 dias na Amazônia) começar vida nova – com banda nova.

Em vários momentos desse bate-papo regado a queijos variados e cervejas tchecas (a 1795 Dark foi a escolhida), tanto Lulina quanto Stela Campos, as duas morando em São Paulo atualmente, mostraram que a música é parte indissociável de suas vidas. “É a coisa mais importante já há muito tempo”, diz Lulina. “Gravo disco porque gosto, então vou gravar sempre”, completa Stela.

Stela Campos já lançou quatro álbuns na carreira (“Céu de Brigadeiro”, 1999, “Fim de Semana”, 2002, “Hotel Continental”, 2005, e “Mustang Bar”, 2009) enquanto Lulina debutou oficialmente em 2009 com “Cristalina”, embora tenha um vasto repertório de discos caseiros distribuídos pela internet – o último, inclusive, é o disco duplo “Aceitação do 14 / Aos 28 Anos Dei Reset na Minha Vida”, gravado após “Cristalina”, mas lançado antes.

Essas duas personagens da música brasileira do século XXI derrubam mitos que algumas pessoas querem vender como verdade. Por exemplo: tanto Lulina quanto Stela querem fazer sucesso – sem abdicar da liberdade artística –, serem ouvidas, aparecer na televisão, viver de música, mas não reclamam do cenário atual, e vão continuar fazendo seus discos porque gostam e precisam disso. Aqui, música não é um hobby, mas um veículo que coloca ambas em contato com o mundo – e, por que não, com elas mesmas. São dois retratos de inteligência da música popular brasileira que não toca em rádios (e nem em festivais).

Com vocês, Stela Campos e Lulina.

Como Recife, Pernambuco influenciaram a vida de vocês?
Stela: Pernambuco aconteceu por acaso na minha vida por uma série de coincidências. Fui pra passar férias e fui ficando, ficando e não voltei nunca mais (risos). Fiquei seis anos. Era um momento legal (da cidade), que me deu oportunidade de tocar e conhecer um monte de gente interessante que estava fazendo coisas novas. O pessoal do mangue beat estava começando. Foi importante (pra mim), pois foi uma época da minha em que fiquei muito focada em música, em tocar. Tinha uma cena, mais influências musicais… Claro que você ouve um monte de coisas diferentes – tive programa de rádio lá –, mas não vejo uma influência musical (direta) no que eu faço. Tanto que a gente fazia parte da cena, mas sempre foi roqueiro, indie. Quando cheguei (em Recife), fiquei muito surpresa com o que vi…

Como foi essa ligação? Você tocava aqui em São Paulo…
Stela: Tinha um amigo morava lá, e um trabalho aqui (em São Paulo) tinha acabado. Eu já tinha participado de um festival (em Recife) chamado Summerstage. Apesar de ter uma banda em São Paulo, fui sozinha (pra esse festival), e a Eddie me acompanhou. Conheci todo mundo, e esse amigo ficou falando para eu ir pra lá. Chegou uma hora que pensei: “Recife é tão legal. Eu vou”. Coloquei o meu teclado no carro e fui. Era tipo 1º de janeiro, acho que em 1994. Chegando lá conheci o Chico (Science), e eles descobriram que eu tocava com o pessoal do Fellini e falaram de montarmos um show no Panquecas (bar de Recife) tocando coisas do Fellini e do Funziona (Senza Vapore). Rolou comigo no teclado, o pessoal da Nação (Zumbi) e o Chico no banquinho tocando violão… como o Cadão (risos). Eu ligava para o Cadão (Volpato) e falava: “Tem uns megafãs seus aqui. Todo mundo conhece vocês!”. E ele: “Você não está falando sério”. Um dia, no ensaio pra esse show, coloquei Chico e Cadão no telefone. E eles conversaram e depois se conheceram quando o Chico veio pra São Paulo. Por azar do destino ninguém gravou esse show.

Nessa época o Funziona Senza Vapore não tinha lançado nada ainda?
Stela: Não. O Funziona na verdade é uma coisa que quase não funciona (risos). A gente ficou um ano inteiro ensaiando todo o fim de semana. Tínhamos doze músicas, e a gente gravou tudo. Até o último dia, o Cadão não tinha letra nenhuma. A gente só ficava na expectativa, afinal a banda era dele. Eu tocava teclado, cantava, mas as músicas eram dele. Normalmente eu cantava um “lalala” e ele dizia: “Eu vou te dar letra, eu vou te dar letra” (risos). Na semana que a gente começou a gravar no estúdio do irmão do Thomas (Pappon), ele apareceu com as letras. E ficou super legal. Fizemos um showzinho para uns amigos, 30 pessoas, e pronto: a banda acabou.

E o disco ficou gravado, mas não foi lançado…
Stela: É. Fui embora para o Recife, mas eu tinha a fita K7 com as músicas, e levei. O Chico (Science) era megafã do Fellini, e quando descobriu que eu tinha uma fita com coisas que o Cadão tinha feito e que ninguém conhecia, ficou doido. A fita foi de mão em mão para muitas pessoas. Eu tinha uma cópia da fita e o Jair Marcos (que tocava também no Funziona) tinha outra, e é engraçado como as fitas foram parar em lugares estranhos. O Clayton (Martin), que toca comigo hoje e eu não conhecia na época, ouviu a outra fita quando ele foi morar em Arraial d’Ajuda. Ele era da Mooca, e o Jair também, e conseguiu a fita. Foi morar em Arraial d’Ajuda e aprendeu a tocar violão tirando as músicas da fita! (risos). Depois (desse show com o Chico), o Devotos do Ódio me chamou para fazer um show tocando Doors (risos). Em janeiro ainda, o Paulo André me chamou para tocar no Abril Pro Rock. O Living In The Shit ia me acompanhar. Fui pra Maceió ensaiar com eles. Fiquei um mês. Nessa época, a Lara Hanouska (banda de Stela em São Paulo) já estava desativada. Ninguém acreditava que eu ia voltar.

O repertório desses shows no Recife já era o do seu primeiro disco, “Fim De Semana”?
Stela: Não, eram coisas minhas do Lara Hanouska. Em maio eu estava lá ainda, e já estava na hora de decidir o que fazer. Então remontei o Lara Hanouska (em Recife). Comecei a trabalhar com rádio, o programa se chamava “Mangue Beat”, e eu fiquei… seis anos.

Lulina: Minha história é o contrário. Eu estava lá, vim de férias pra cá e fui ficando. Mas é engraçado como é a influência de Pernambuco pra mim: é minha historinha de família. Não é muito uma história musical, porque pra mim as coisas só aconteceram musicalmente aqui em São Paulo. Lá, enquanto estava rolando todo esse movimento, eu era uma adolescente nerd que ficava em casa, e perdi muita coisa. Enquanto o pessoal saía, eu ficava em casa com os livros. Então só na faculdade que eu comecei a ter mais contato com algumas bandas, mas mesmo assim já estava quase vindo pra cá.

Já tinha tido todo aquele boom que jogou um holofote sobre a cidade…
Lulina: Fui a shows do Chico (Sicence), quando ele já estava prestes a estourar, na minha adolescência. Ele já era famoso em Recife, mas não tinha estourado nacionalmente. Fui com a turma sem saber direito o que estava acontecendo. Não vivi mesmo isso. Mas comecei a compor minhas coisas lá. Era uma coisa entre quatro paredes, quietinha. Não tinha banda. Só na faculdade que o pessoal começou a pedir pra eu colocar na roda as minhas músicas, então montei uma banda com uns caras que admirava. Quando eles quiseram montar uma banda pra mim, pensei, “quem sou eu pra chegar perto desse povo? Eles tocam com uma galera massa, e agora querem tocar comigo?” Mas, mesmo assim, montamos e começamos a tocar em lugares pequeninhos, porque, pelo menos no meu tempo, o indie era muito jogado de canto. Se você não tinha um batuque no meio…

Stela: A gente tinha um pouco disso também, porque eu nunca fui da turma do batuque.

Lulina: Exatamente. Então o que sobrava de Recife, o lugar mais tosquinho, era onde enfiavam a gente. Iam 20, 30 pessoas, no máximo. Eu admirava a galera que fazia esse movimento. Nessa época conheci o pessoal que viria a formar o Coquetel (Molotov), e me lembro deles conversando comigo, querendo entrevistar, falando que queriam montar um esquema. Dois anos depois, eles me chamaram pra ir pra lá quando o Coquetel ainda era feito num lugar pequenininho, bem no comecinho, ainda não era um festival. Eu fazia minhas coisas totalmente independente da cena, porque achava que a cena era uma galera da qual eu não fazia parte. Quando vim pra São Paulo, vim pra passar um tempinho de férias, e acabei ficando e comecei a tocar mais. Senti uma grande diferença de público, achei a galera aqui muito mais interessada. Comecei a mostrar minhas músicas, porque em Recife eu tocava mais covers, ainda não tinha muita segurança. Lá o pessoal que ia aos meus shows queria mais identificação com coisas que eles conheciam, até porque a cena era pequenininha. Então eles queriam alguém que tocasse Velvet Underground, e não uma coisa diferente. Aqui em São Paulo a recepção foi muito grande. O primeiro show que eu fiz lotou, só no boca a boca. Mas esse momento de Recife passou batido (pra mim).

Quando você fala que estava tocando as coisas no seu quarto, compondo, você é autodidata? Aprendeu a tocar como?
Lulina: Aprendi só, com essas revistinhas de violão. Os meninos da rua desciam com essas revistinhas, peguei uma emprestada, e tinha um violão no guarda-roupa, que era da minha mãe. Comecei brincando. Nas revistinhas só tinha música de Raul Seixas (risos), e eu não aguentava mais tocar Raul, queria tocar Nirvana, mas não tinha revistinha das bandas que eu gostava na adolescência. Então comecei a tirar as músicas de ouvido. Tinha uma facilidade. Às vezes tirava errado, mas beleza.  Comecei a compor aos 15 anos, porque eu não queria tocar mais as mesmas músicas. Algumas que fiz nessa época entraram em discos caseiros que gravei anos depois. Comecei a gravar em 2001, mas desde os 15 já estava lá, compondo.

Como você começou a tocar, Stela?
Stela: Foi muito parecido. Eu fiz pior, porque minha mãe achava que eu tinha que tocar piano, porque quem tocava violão cantava desafinado, e eu queria um violão, mas ela dizia que não. Lembro que pequei emprestado um violão de uma menina na escola e não devolvi mais. Minha mãe começou a ficar com vergonha, e me deu um violão. Cheguei a estudar um pouco, mas eu não tinha saco pra ficar estudando, gostava de ficar inventando minhas musiquinhas. Sempre fui meio rebelde. Nessa época, estudei piano com o Ricardo Brem, que era um cara superlegal. Eu era criança e participava de umas coisas no colégio. A diretora queria aparecer, então ela colocava a gente em um monte de coisas pra ganhar prêmio, e rolava uma coisa tipo “vestibular da canção”. Eles davam um tema, e a gente tinha 40 minutos pra ficar numa cabine e inventar. Era superlegal porque me tiravam da aula pra ir pra essas coisas, pra ganhar prêmio pro colégio. Ficávamos eu e um cara, que sabia tocar um pouco mais, compondo. A gente ganhou um programa, dois, e eu pensei que nunca mais ia estudar! Então conheci o Ricardo, que foi uma pessoa importante, porque a diretora contratou ele pra fazer o arranjo da música que íamos levar ao programa. Ele abriu minha cabeça pra essa coisa de arranjo. Aquilo que eu tinha feito no violão virava música! Foi um divisor de águas. Ele me fez ver as coisas de um modo diferente. Cheguei a fazer umas aulas de piano com ele, e depois de um tempo ele montou uma escola de música. Mas sempre fui muito mal (na aula). Decorava o negócio, tirava de ouvido, e nunca estudava. Abandonei. Um dia dei um disco pra ele, acho que foi o primeiro, “Céu de Brigadeiro” (1999), e ele me disse que eu era um caso que ele nunca conseguiu entender, a quem ele nunca conseguiu convencer de que teoria era bom. Mas ele convenceu, só não conseguiu me fazer aprender (risos). Sempre foi esse drama da intuição, de passar pros outros (músicos). Seria muito mais fácil se eu soubesse teoria…

Lulina: Às vezes, chego e falo: “É uma nota que é assim”. E eu tenho que mostrar porque não sei o nome dela (risos). Ao mesmo tempo ajuda porque você começa a compor de um jeito meio esquisito. Acho que minhas músicas são muito simples, mas (os músicos) me falam que faço uma lógica que é diferente.

Stela: A limitação de não ser uma instrumentista faz com que com você tenha que ser criativa com o pouco que você tem. Não sei como é pra você, mas pra mim essas coisas de bateria sempre foram um inferno. Achei legal quando veio o computador, essa coisa eletrônica, mas e a bateria? Que raios! Como é que vai ser? Porque precisa sempre da bateria pra você poder pensar o resto. Tinha um programinha que o Helder me deu, muito safado, que tinha umas bolinhas que você ia batendo e elas iam fazendo umas batidas. Fiquei experimentando e inventei umas batidas muito loucas, que acabaram entrando no “Fim de Semana” (2002), porque era tão esquisito que o Maurício (Bussab) falou: “O que você fez?”. E eu não fiz! Aconteceu na sorte. A tecnologia ajudou bastante pra compor arranjo.

As gravadoras foram muito importantes em uma época em que não havia como você entrar em um estúdio e gravar uma coisa de qualidade. Hoje em dia se grava um disco muito bom no fundo de casa…
Stela: Agora democratizou.

“O Céu do Brigadeiro” foi gravado em Recife. Você chegou a gravar alguma coisa com a banda antes?
Stela: O Lara Hanouska nunca teve CD. Chegamos a gravar uma demo mais ajeitada, com cinco músicas, mas era na época da fita K7, então ficou por isso mesmo. “O Céu de Brigadeiro” já são umas coisas que eu experimentava meio sozinha, paralelamente à banda. Eu e o Adriano (Leão), que tocava comigo. Esse disco reflete bem essa fase de experimentações. Na verdade, a banda tinha um formato muito mais fechado, rock ‘n’ roll, e sozinha pude fazer uma coisa mais aberta.

Você gosta desses discos antigos hoje em dia?
Stela: Gosto. Tem uma ou outra coisa que talvez não goste tanto. Outro dia fui gravar uma música (antiga), e até que era legal. Mas não fico ouvindo meus discos. Estamos pensando em fazer uma coletânea, então vou ter que ouvir, mas acho estranho ficar me ouvindo.

Como que você lida com isso? Você ouve aqueles primeiros discos que você fez?
Lulina: O legal de ter gravado tudo na hora em que eu estava sentindo as coisas é que funciona como uma biografia, misturada à ficção.

Você não tinha diário, então você gravava (risos).
Lulina: Isso. Obviamente, tudo muito distorcido, mas era um reflexo do ano. Tem um disco, “Abduzida” (2003), que quando estou triste coloco e gargalho. Funciona como uma injeção de humor, porque vem toda aquela atmosfera, o negócio de ter sido gravado com aquelas bases de computador, no chão, todo mundo sentado, violão, cerveja, barulho de copo, alguém fazendo a bateria em caixa de sapato, ao vivo praticamente. Você começa a gargalhar, porque você ouve alguém gritando: “Ju dançando”, porque tem ela dançando (risos). Fico pensando: como é que tive coragem de gravar um negócio desses? E agora esse negócio está na internet! Estou queimada (risos). Às vezes escuto esses. Existem outros que gravei durante épocas muito tristes. “Sangue de E.T.” (2005) foi gravado quando minha avó faleceu, então se coloco pra ouvir, choro. Gravei sozinha todos os instrumentos, até teclado, fazendo bateria em latinha de cerveja com hashi. Mas não escuto. Só escuto o “Abduzida” quando estou triste, pra gargalhar. E escuto pela referência histórica, não pela gravação. Não dá nem pra ser crítica, porque é tosco. Gravamos o primeiro disco no Windows, com barulho de buzina, de MSN, e foi melhorando. O último (o duplo “Aceitação do 14 / Aos 28 Anos Dei Reset na Minha Vida”, 2008) está muito bem gravado. Investi em microfone bom. Léo (Monstro) comprou um equipamento, ficou quase profissional. A gente gravou as faixas separadas – antes era tudo um bolo só. Esse disco duplo reflete o retorno de Saturno. Não acredito muito nessas coisas místicas, mas coincidiu de ser uma fase complicada pra mim, de pensar muito e fazer pouco, e eu sou muito de fazer. Eu e o Leo ficamos um bom tempo sem sentar e gravar, então num mês cheguei e disse: “Está aqui”. E ele também. Fizemos cinco músicas em dois dias. Algumas coisas eu gravava só guitarra e passava pra ele. “Completa”. E eu confio nele. Ele ficava brincando, brincando, depois me mandava por e-mail. Eu ouvia e respondia: “Adorei” ou “detestei”, e ele me respeita muito. Outras vezes eu chegava na casa dele e gravava um monte de coisas que tinha na cabeça. Rolou assim. Estava com uma pressa tão grande que saiu de uma vez. Marquei um showzinho de lançamento um mês antes. A gente terminou de gravar duas horas antes do show. E foi o mais organizado.

Quando é que foi o primeiro?
Lulina: O primeiro foi o “Acoustique de France” (2001). Eu estava na casa de um namorado em Olinda, e estava chovendo. Então ele me mostrou um programinha que permitia gravar coisas de violão. “Vou gravar os meus agora”. Com vergonha de mostrar para qualquer pessoa, recorri à ironia e gravei como se fosse uma cantora brasileira que ninguém gosta, que foi pra França e estourou lá. Esse disco é como se fosse um programa de entrevistas em uma rádio francesa com música ao vivo. Esse meu namorado da época bancou o apresentador, mesmo sem falar nada de francês. Ele ficava “Merci, bonsoir, bonjour”. E eu: “É. Exatamente. Esse disco…” (risos) Gravei, fiz uma capinha com um frame de um filme do Truffaut e mandei pros amigos. Eles se divertiram e pediram para eu fazer mais. Então decidi brincar e todo final de ano fazer um. Eu juntava as músicas e via a temática. O segundo foi o “Cochilândia” (2002), porque tinha muita música sobre sono, sonho, narcolepsia. O terceiro, “Abduzida”, já foi aqui em São Paulo, e tem coisas da minha viagem para a Amazônia. Tem “Balada do Paulista”, que eu compus nessa época ainda. Tudo foi meio que por acaso. A Stela estava falando da mãe dela e o violão, e em casa minha mãe me via tocando e nem sabia que eu tinha aprendido uma nota. Minha família se formou a partir de uma banda amadora, e eles faziam umas reuniões familiares, todo mundo bêbado, e sempre tinha um amplificador e uma guitarrinha. Uma noite em Itamaracá tomei coragem, peguei a guitarra e comecei a tocar e cantar. Quando a minha avó estava viva ela pedia para eu cantar “Meu Príncipe”. E eu morria de vergonha, porque tinha a parte dos orgasmos e eu não podia cantar isso pra minha avó (risos). Quando eu gravei o disco, fiquei pensando que minha mãe iria ouvir eu cantando sobre orgasmos, mas a recepção foi boa. Minhas tias cantam em casa…

Stela: Nessa coisa de confusão com a família, o Luciano (Buarque, marido e parceiro de Stela) fez uma música que se chama “Os Últimos Dias do Tio Sávio”, que está no “Céu de Brigadeiro”. Só que tio Sávio é o tio Sávio dele mesmo. E a letra fala que o tio Sávio comprou uma corda, riscou os dias do calendário, tio Sávio quer ir embora, uma letra um tanto pesadinha. E o tio Sávio de fato tinha comprado a corda, e o Luciano contou como era. Um dia a mãe dele liga: “Meu filho, sua avó está muito brava com você. O que você foi falar do tio Sávio?” (risos). Não se sabe como o disco foi parar na mão da avó. E o tio Sávio não olha na nossa cara até hoje! (risos). E a mãe dele ficava: “Meu filho, porque você não colocou tio Fábio” (risos).

Como foi gravar o “Céu de Brigadeiro”?
Stela: A gente gravou umas coisas em casa e depois conseguiu umas horas em um Conservatório (em Recife) para gravar, mas era pouco tempo, e a gente não tinha dinheiro para pagar mais. Então tivemos que ensaiar muito para não dar errado. O Loop B apareceu nessa época. Convidei ele para ajudar na produção e a única coisa que ele exigiu foi que eu marcasse um show para ele em Recife. Topei. A gente já tinha visto show dele. O cara era doido e iria ficar legal produzindo. Então ele mandou um fax com os itens que ele precisava para o show dele…

Porta de geladeira… (risos)
Stela: E não era só isso. Era: “uma tampa de Brastemp assim, assado. Uma porta de Chevette” (risos). Eu e Adriano (Leão) saímos de ferro-velho em ferro-velho procurando a tal da porta. E eu ligava pra ele e dizia: “Loop B, tem uma carcaça de máquina de lavar, mas não é Brastemp”. E ele: “Ah, não dá” (risos). Foi um problema, mas nós conseguimos. O plano era o seguinte: ele vinha, tocava, ficava quatro dias na minha casa, a gente gravava o disco e ele ia embora. Mas a gente não tinha noção do quanto ele era workaholic. O show dele foi numa sexta. A gente dormiu tipo umas seis da manhã. Quando deu 8h ele já estava acordando todo mundo. “Gente, vamos lá, vamos começar, porque a gente tem pouco tempo” (risos). Ele não bebe nada, mas é acelerado. A gente ficou o dia inteiro fazendo as bases com ele. Uma coisa insana. No segundo dia fomos dormir às 3h. Às 7h ele já estava acordando todo mundo de novo. “Gente, vamos todo mundo pra sala. E tem que dançar. Se não dançar é porque a música não ficou legal” (risos). No final deu certo. Já o “Fim de Semana”… Eu tinha voltado pra São Paulo e conheci o Mauricio Bussab. Ele gostava do “Céu de Brigadeiro” e me convidou pra fazer um disco novo no estúdio que ele tinha em casa. E o disco foi surgindo. Decidimos fechar num conceito porque sentimos o choque de voltar pra São Paulo, trânsito na Marginal, trabalho, rotina. O “Fim de Semana” reflete bem o que a gente sentia nesses primeiros anos de retorno. Depois você acostuma. Então o Mauricio começou a gravar, mas como era na casa dele a gente gravava na hora que dava. E ele tinha seus compromissos, viajava, e o disco demorou uns dois anos para ficar pronto. Isso permitiu que a gente fizesse o disco curtindo cada coisinha. Foi um disco muito trabalhado nos mínimos detalhes.

E o “Mustang Bar” (2009)?
Stela: Foi rápido. Juntando todas as sessões deu 48 horas. Eu e o Clayton temos um entrosamento grande, e queríamos muito trabalhar juntos. Acabou sendo o meu primeiro disco que tem mais cara de banda. Fui com as ideias, mas o Clayton e o Missionário José introduziram muitas coisas.  Há uma participação muito maior. Tem coisas que foram direto do meu computador, e eles acrescentaram coisas sobre aquela base. Mas também teve música que mudou de cara. No primeiro dia fizemos três músicas. Mostrei as demos e saíram coisas muito interessantes. E a média foram duas músicas por dia. A gente finalizava a música e levava para o Conselho dos Justos, que é o Luciano (risos). A gente é muito franco um com o outro. E ele estava gostando do disco todo até que chegou uma que ele não aprovou. “Tem que refazer sua voz. Não ficou bom”. Voltei e falei com o Clayton, e fizemos de novo. Ele não gostou. “O disco todo está bom, mas essa…”. A gente fez ela pela terceira vez, foi a única no disco que fizemos isso. Colocamos uns efeitos e voltamos pra ele. “Nossa, agora sim. Essa é a melhor música do disco”. Era “Laura Te Espera Com Uma Arma Na Mão”. Mas foi um disco muito focado. O disco ficou pronto em duas semanas. Também é um disco que não tem participação especial…

A gente ficou aqui pensando… o que você foi fazer na Amazônia, Lulina?
Lulina: Fui de férias. Fiquei 20 dias lá e depois vim passar uma semana em São Paulo. Só que fiquei. Não tinha planejado nada, mas foram aparecendo oportunidades, empregos, e a minha mala cheia de bugigangas da Amazônia. Não tinha roupa, não tinha nada, apenas apitos e chocalhos. Foi legal porque usei nesse disco…  (risos). Eu tocava bem pouco em Recife. Os meninos estavam me convencendo a ter banda. Era um pessoal que tocava com o Bonsucesso Samba Clube, com o China, e eles me chamaram pra cantar. Mas eu não tinha tempero. Eu achava divertido, mas morria de vergonha que as pessoas descobrissem que eu tinha aprendido a tocar com revistinha de violão (risos). Tinha vergonha das minhas músicas! Tocava uma vez a cada três meses e olhe lá com essa turminha que agitava a cena indie de lá, mas era o indie do indie. Essa turma que tocava comigo começou a morar em São Paulo no ano passado. Foi exatamente quando metade da minha banda daqui pediu pra sair. Chamei esse pessoal de Recife e deu tudo certo. Um ciclo se fechou. Eu lancei o meu primeiro disco por gravadora tocando com a banda que me empurrou pra começar.

Como foi gravar o “Cristalina”?
Lulina: Quando a YB me chamou, eu disse: “Eu vou, mas liberdade total”. Eles brincaram: “Não. A gente vai querer que você se vista de astronauta porque isso pode ser legal para você no palco” (risos). Demorei três anos e meio para gravar.

Sério? A gente achava que você tinha recebido o convite, entrado e gravado.
Lulina: Não! Cheguei aqui em 2003 e conheci o Mauricio Tagliari. Um amigo me apresentou e disse: “Grave pro Mauricio os discos que você fez em Olinda”. E eu pensando que ele iria achar uma merda. Gravei. O Mauricio curtiu tanto que na mesma semana me mandou um contrato: “Vamos gravar dois discos”. Acabou que nem rolou o contrato porque fiquei tão amiga dele, que ele acabou produzindo o disco. Foi bom porque fui amadurecendo. Ele quis que eu gravasse um disco a partir dos dois primeiros caseiros que ele ouviu, mas depois que ouviu os outros ficou mais convencido ainda que queria gravar. Só que foi um longo tempo. O convite rolou em 2003, mas só fomos entrar em estúdio em 2005. E era só nas horas vagas. Como eu trabalhava o dia todo, a gente gravava à noite. Eu chegava às 21h com o Missionário José e ficava até meia noite, para poder pegar o metrô e não gastar dinheiro com táxi. Gravava um mês seguido, parava dois meses por algum motivo, gravava mais um mês, e assim ia. Bem devagar. No começo eu até achava legal, mas depois bateu aquela angústia por estar demorando demais. Comecei a enjoar das músicas. Quando tivemos que gravar as vozes, estava tão nervosa que ficava com dor de garganta, me sabotando. Ao mesmo tempo, rolava uma ansiedade. Era muito contraditório. Eu queria lançar, mas morria de medo. Quando terminaram as gravações, passou mais de um ano e meio com o disco pronto, e começaram as burocracias de mixagem, masterização, capa, contratos… Eu nunca tinha tido essa experiência. Muita burocracia. Mas quando começou a sair o negócio, me apaixonei de novo. De repente era o momento mesmo. Agora estou mais madura. Lançar um disco com 30 anos é melhor do que lançar com 27.

Como foram os primeiros shows em São Paulo?
Lulina: O primeiro foi esse que amigos organizaram. Lotou e foi muito legal a recepção. Eu tocando pela primeira vez as minhas músicas e todo mundo interessado. Choveu email no dia seguinte. “Bota mais música na Trama Virtual”, e eu pensando “Nossa, que legal”. Só que a minha banda nessa época era muito louca. É uma galera legal que eu adoro até hoje, mas aquilo foi a minha adolescência musical. “Não precisa ensaiar. Pega a guitarra e vamos tocar”. Só que isso não funciona tanto comigo porque a minha voz é fraquinha, baixinha. É legal ter instrumentos e equipamentos de som bons. Então tinha show que a galera nem ouvia a minha voz. Era muita tosqueira. Era divertido pra mim, mas talvez não tanto para o público. Amigos meus diziam: “Pô, Lu, se valoriza. As letras são legais, a gente quer prestar atenção, mas não ouviu nada hoje”. E eu: “Que nada! Vamos nos divertir! Eu quero tomar cerveja e tocar! Não tô nem aí” (risos). Rolava isso. Teve uma vez que nós tocamos na Funhouse e foi engraçado. Minha banda em Recife era Lulina e os Pininhos. Aqui em São Paulo é Lulina e os Causadores. A palavra “causador” surgiu desse show porque foi o primeiro e único que teve uma coisa ruim por parte do público. E isso me destruiu. Se rolasse hoje em dia, eu diria “Sobe aqui, vem cantar comigo”. Eu ia brincar. Mas naquela época eu era muito insegura. Era o meu primeiro ano (aqui). E foi o seguinte: a gente ia abrir para uma banda inglesa na Funhouse, e o público queria ver a banda inglesa, obviamente, e não queria ver a gente. Já no finzinho do show, um cara que nem estava vendo (segundo meus amigos contaram) colocou a cabeça no meio da cortina e gritou: “Horrível. Acaba logo isso”. Na hora eu gelei. Sabe quando fica tudo em câmera lenta, todo mundo olhando pra sua cara, um esquema bem filme americano? Então um pessoal que estava na plateia, meus amigos, começaram a gritar pro cara: “Horrível é tua mãe”. O show parou. Meu guitarrista falou: “Você é mais um indiezinho de merda que quer ver uma bandinha de merda da Inglaterra”. Começou a confusão geral. Alguém brincou: “Causação, a gente vai causar”, e ficou: Lulina e os Causadores. Foi a única coisa boa que a gente tirou disso. E tirando esse show, esse indie ortodoxo, foi tudo bem (em meus shows) até hoje. Receptividade máxima.

Stela: Eu nunca tive problemas assim… Teve no Abril Pro Rock, uma vez com o Lara Hanuska, de uns metaleiros ficarem fazendo gestos (obscenos), muita gente (risos). Uma vez em Curitiba… O Clayton falou alguma doideira no microfone que não caiu bem com o povo, e rolou um stress pós-show. Nesse show caiu o amplificador no pé do Ryan (Batista), que tocava com a gente, e ele quebrou o pé. Na última música! Teve um show de lançamento que uma amiga minha quebrou o pé… É meio tradição (risos).

Como vocês vêem esse cenário atual?
Stela: A característica do som é uma coisa que se destaca bastante nesse momento. Essa coisa dos instrumentos vintage, de pegar aquele tecladinho, tudo isso dá uma certa identidade para essa turma. É uma coisa de reviver a MPB de uma época legal, com timbres, guitarras. Existe um cuidado com essa coisa dos arranjos que resulta em uma sonoridade legal. As letras são legais. E tem a ver com essa coisa de fazer em casa, de experimentar, de buscar informação. As pessoas captaram muita coisa nesses anos todos. As gerações vão se aprimorando, vão ouvindo mais… Talvez essa coisa de baixar músicas possa ter contribuído para garimpar mais coisas, muito embora quem gosta de música sempre garimpou a vida inteira. Está sempre ali, procurando.

O interessante é que o pessoal vai atrás desses instrumentos já sabendo o som que vai tirar. Antigamente, o pessoal tocava com esses instrumentos porque era o que eles tinham de mais novo. Quando chegava algo mais avançado, deixavam de lado o instrumento velho, trocavam. Agora, quando alguém vai atrás de um instrumento desses já sabe o som que vai conseguir. É uma opção.
Stela: Eu particularmente gosto do som dessa época, dos anos 60, 70.

Lulina: Além da sonoridade, está rolando uma parada muito mais autoral que faz parecer que todo mundo resolveu assumir quem é. “Não vou seguir fulano, não vou seguir sicrana, vou botar o que eu penso aqui”. É assim. Tem muita gente compondo. Isso é massa. Então você vê um (cara como o) Catatau, que descreve uma realidade que é só dele. O Romulo (Fróes), o Bruno (Morais)… É muito diversificado. Não é como um movimento que junta todo mundo numa mesma sonoridade, por mais que existam esses pontos em comum. É um movimento individual. Só que com todo mundo contribuindo um pro outro.

Stela: O trabalho que eu faço não está vinculado a uma cena ou a outra. Eu continuo fazendo a minha história e o que eu acredito. O interessante de quando surge um movimento, uma cena, é que é um momento em que as pessoas se interessam em ouvir o que está acontecendo. Cena é o momento em que as pessoas param e percebem que tem muita gente bacana fazendo uma coisa legal. O público começa a querer conhecer, os músicos começam a se ouvir. É algo paralelo à coisa musical. E nesse contexto é interessante estar fazendo parte dessa cena atual, pois mais pessoas podem ficar interessadas, se bem que o som que eu faço…

Mas os músicos da sua banda tocam em outras bandas que estão nessa cena.
Stela: Sim, e é super legal porque vem uma informação junta que é interessante. Na minha banda já tocou um monte de gente. O (Fernando) Catatau, o Ryan (Batista), o Cidadão Instigado inteiro (risos). Eu conhecia o Catatau de termos tocado junto com o DJ Dolores num Abril Pro Rock, e quando voltei pra São Paulo, não tinha banda, então chamei o Catatau para tocar em uns shows, e ele chamou o Ryan, que chamou o Mauricio Takara. Um tempo depois, o Catatau começou a fazer um monte de shows, e me apresentou o Clayton para tocar. Entrou o Zé Guilherme (Missionário José)…

Lulina: É difícil descrever esse negócio de cena estando inserido, porque a coisa está acontecendo. É meio complicado descrever o presente. A gente não sabe onde é que vai dar, então não adianta teorizar muito. Por outro lado, é legal alguém sentar como o Romulo (Fróes) e cobrar essa posição porque descreve (o que está acontecendo) e parece que faz a coisa andar, organizar. O pessoal todo está meio solto, fazendo, fazendo. O negócio é fazer.

Stela: Cada um está fazendo o seu. É diferente, por exemplo, de pegar aquela cena do mangue beat, que era uma coisa de conceito, organizada…

Vocês não vêem unidade nenhuma nessa cena atual?
Lulina: É uma unidade de individuais.

Mas podemos tocar “Laura Te Espera Com Uma Arma Na Mão” e “Meu Príncipe” na sequência em um programa de rádio, e isso não vai chocar. E depois emendar com uma do Romulo, que vai puxar uma do Bruno, depois uma do Cidadão…
Stela: É essa coisa da unidade musical até por serem as mesmas pessoas que estão transitando nos discos.

Lulina: Um contribui para o trabalho do outro. O Bruno (Morais) cantou no meu disco, eu cantei no do Romulo… A unidade é mais de parceria do que de teoria. Eu enxergo separado porque é como se eu visse uma personalidade em cada um. Às vezes, vejo o Romulo compondo samba, mas não quero admitir que componho samba. Mas fiz uma parceria com ele. Stela tem uma personalidade (musical) fortíssima. Bruno também, mas eles não se chocam. É tipo uma feijoada com tudo. Cada um é um pedaço de um negócio contribuindo para um bolo, mas eu enxergo muitos pedaços…

E como é que se faz para mostrar essa cena sensacional para o povo? Como vocês pensam o mercado?
Lulina: Essa é a pergunta da atualidade para qualquer músico. É a dor de cabeça de todo o mundo.

Stela: Uma crítica favorável de disco ajuda, mas isso não traz mercado, não traz público, mas eu não sei explicar por que não toca, por que não se rompe essa barreira.

Lulina: Porque não estamos na grande mídia, TV e rádio. Você não vê nenhum de nós na rádio bombando.

Stela: Por mais que todo mundo dessa cena tenha músicas acessíveis, que poderiam tocar no rádio. Algumas mais acessíveis, outras menos, mas todo mundo tem hit nessa cena paralela. Não sei se essa situação tem solução…

Lulina: É como o próprio Romulo disse na entrevista dele, que na época da mãe dele a rádio tocava música boa. E isso fez o gosto musical dela. Às vezes tocava alguma coisa ruim no meio, mas era tanta coisa boa que o ruim se perdia. Agora é o contrário. Toca muita coisa ruim e, infelizmente, isso faz o gosto da massa. Basta colocar algo bombando na rádio que o pessoal aparece cantando na rua.

Stela: As gravadoras estão falindo, mas eles insistem em lançar coisas ruins. Do outro lado, a cena independente produz coisas boas. Será que em algum momento vai mudar a cabeça desse pessoal que promove a coisa ruim? Acho que não. É difícil mudar isso.

Lulina: Eu sou otimista. Vejo cada vez mais pessoas se interessando pelo novo. Acho que uma parte da massa está cansada. Desde que lancei “Cristalina”, o disco foi, foi, foi, e tem gente que escuta e vem falar comigo que eu nunca imaginaria que iria chegar naquela pessoa.

Stela: A internet ajuda nisso.

Lulina: A internet é o nosso veiculo. Foi o que permitiu eu gravar um disco, senão nunca teria gravado.

Stela: E é o que democratiza e que permite que outras pessoas conheçam o seu trabalho.

Lulina: Ainda bem que a internet está crescendo, pois é isso que está permitindo à música chegar a mais pessoas. Mas seria ótimo se houvesse mais espaço na mídia tradicional.

Talvez tivesse que surgir alguém que se destacasse mais dessa cena.
Lulina: Mas é um perigo, pois ao mesmo tempo pode tornar a coisa toda banal. Então ficamos naquela: seria legal se mais gente escutasse, se a gente conseguisse ganhar dinheiro com música, que existissem convites legais (pra shows), com estrutura legal, mas será que pra isso acontecer a gente vai ter que se vender? É complicado, porque banaliza. É muito sutil. É um quebra-cabeças.

Stela: Sucesso instantâneo… Esse caso da Mallu é mais ou menos isso. Nada contra o trabalho dela, acho legal, mas deram aquela bombada. Foi uma coisa empurrada e meio atrapalhada que talvez faça ela repensar daqui algum tempo e ver que tinha que ter ido com calma. Essa corrida muitas vezes atrapalha o artista. Tudo tem seu tempo.

Lulina: Outra coisa que o Romulo falou, e que eu concordo: a gente está feliz com o que tem, porque tem muita gente interessada e muita coisa acontecendo. Se ficar nesse movimentinho de ir aumentando o público, é massa. Pelo menos está acontecendo alguma coisa. Agora, se um de nós chamasse mais a atenção… Estourar seria uma coisa muito legal.

Legal ouvir isso porque há muita gente que diz que o independente não quer fazer sucesso.
Stela: Não é verdade! Eu não vejo essa postura (de não querer o sucesso) nessa cena porque os discos são muito bem gravados. Existe um cuidado na apresentação do trabalho. Não existe esse descaso (para com o sucesso). Acho que as pessoas fazem suas músicas acreditando no trabalho que estão fazendo, e o resultado poderia estar tocando em qualquer lugar. Se eu tivesse uma proposta legal para viver de música, gravar o disco do jeito que quero, e ainda ganhar dinheiro com isso, seria excelente.

Lulina: Seria maravilhoso. É o sonho de todo mundo. Depende de uma grande gravadora ou alguém acreditar que a gente possa render alguma coisa. Queremos encontrar o meio do caminho entre ganhar uma grana, ter certa liberdade, mas fazendo o que a gente acredita sem ter que mudar. Porque quando você vai para o mainstream, você cai numa teia que quer te modificar. Infelizmente. Porque tem muita coisa envolvida, grana demais. E o que está faltando na música brasileira é personalidade, porque a galera fica tão quadrada em gravadoras.

Stela: Existem artistas que conseguiram romper essa barreira, mas são pouquíssimos.

Lulina: É o medo de apostar no novo. A grana envolvida que faz o cara apostar no que já chama a atenção.

Stela: Iria ajudar se aparecesse uma banda que, como o Nirvana, estourasse.

No caso do Nirvana, a própria indústria percebeu que havia uma movimentação muito maior e que não se esgotava só no modelo Nirvana. O problema aqui é que quando surge algo interessante, as gravadoras não conseguem observar o todo que está vindo com aquilo. Eles vão atrás da fórmula. E vão procurar várias bandas iguais ao NXZero, várias meninas que toquem como a Mallu. Eles não conseguem observar que de onde saiu a Mallu tem uma Lulina, uma Stela, que não fazem exatamente a mesma coisa que a Mallu, mas são tão interessantes quanto.
Stela: Fica tudo igual. Esse fenômeno das multidões é um negócio inacreditável. Dia desses eu estava zapeando e vi o Armandinho, que eu não conhecia. Ele faz um reggae com uma letra horrível – “Quando Deus te desenhou, ele tava namorando” (risos gerais) – e tinha uma multidão gigante cantando! E isso nunca tinha passado perto de mim. Como isso acontece?

O Armandinho é fruto do fenômeno Rio Grande do Sul, que é aquele mercado de anos e anos que se basta. Ele estourou primeiro ali, depois foi para o país inteiro.
Stela: E eu nem conhecia.

Como foi para você, Lulina, sair na capa da Ilustrada?
Lulina: Foi uma grande ajuda. Até antes de lançar o “Cristalina”, eu tinha uma visão envergonhada, tímida (do meu trabalho). Quando lancei, decidi assumir quem eu sou. Só o fato de lançar um disco já ajuda as pessoas a observarem você como um artista profissional. A capa da Ilustrada carimbou isso. E a visibilidade foi absurda. Outros veículos vieram me procurar depois para entrevista, e a maioria era pautada pelo que saiu na Ilustrada. Muita gente se interessou a partir dessa matéria. Ou seja: ela abriu portas para outras mídias, mas não para o público. Começou a aparecer show com estrutura e cachês melhores. Não chega a ser uma TV ou uma rádio tocando o tempo todo, mas foi muito legal. Não sei se aumentou o meu público. Não é como o rádio que a pessoa ouve e tá no seu ouvido. Mas, por exemplo, tem o caso do cara do restaurante chinês em que almoço. Ele chegou um dia pra mim e disse: “Luciana, parabéns. Eu vi a sua matéria da Lulilândia” (risos). Ele não sabia o meu nome, soube pela matéria, mas não sei se ele foi atrás (das músicas).

Mesmo porque pra gente é fácil ir atrás das músicas, mas se ele quiser ouvir o disco, será que ele vai achar?
Stela: Não sei se vai ouvir, mas o nome fica na cabeça.

Pode ser, mas o pessoal da internet já baixou, ouviu no My Space, conhece o disco e canta no show.
Lulina: É muito legal essa sensação de alguém cantar (a sua música). Fico vendo alguns artistas, e sempre chega aquela hora em que eles dizem: “Vocês”. E o público canta. Nunca vou ter coragem de fazer uma coisa dessas. Imagina! “Vocês”. E fica todo mundo mudo (risos). Mas no último show do Sesc Pompeia, pela primeira vez ouvi algumas pessoas cantando, e pensei: “É a minha chance” (risos). E fiz isso em “Meu Príncipe”. E funcionou! Quase chorei (risos). Os meninos (da banda) até brincaram comigo: “Olha, você deu a deixa”.

Como vocês pensam a carreira?
Stela: Eu gravo disco porque gosto, então vou gravar sempre. Aliás, disco físico eu não sei se vou fazer mais. Tenho muito coisa para mostrar, e a gente não pára de ter ideias e projetos. O Luciano é mais doido ainda. A gente nem bem acabou um disco e ele já está pensando no outro. Acho que a tendência é gravarmos mais em casa (nota do editor: os lançamentos mais recentes de Stela foram disponibilizados para downlad gratuito no site da compositora. Trata-se de um EP com cinco músicas de Daniel Johnston e o single de “Laura Te Espera Com Uma Arma Na Mão”, que traz a cover de “Chico Buarque Song”, do Fellini, como faixa bônus).

E o que você pensa de carreira, Lulina? Os discos caseiros vão continuar?
Lulina: Vão. Aquilo ali é o meu espírito. Demorei muito tempo para pensar a minha vida como carreira. Eu não queria assumir antes do “Cristalina” o quanto isso era importante pra mim. No dia do show do lançamento do disco, olhei no camarim, tanta gente envolvida acreditando nesse negócio, que chorei. Então comecei a ver como carreira, como eu tinha que dar valor a uma coisa que me preenche de uma forma absurda, que é a coisa mais importante da minha vida já há muito tempo, e eu não queria enxergar. Porém, emocionalmente assumi como carreira, mas tento não planejar muito até porque cheguei até aqui sem planejamento. Acho que esse foi o maior ensinamento que tive: fazer o que acredito e ver o que acontece. Então, pra mim nunca vai existir um disco ruim, porque ele é aquilo que estou pensando naquele momento. Se as pessoas não se identificarem, que pena. Mas é legal porque você não se censura e se permite experimentar. Fica sem medo. Pra mim já foi uma grande surpresa pessoas se identificarem e rirem com certas letras, que eu achava que eram piada interna, e me surpreenderam. Já os meninos da banda não querem que eu faça mais os (discos) caseiros. “Não esconde o jogo não. Joga na roda que a gente quer participar de tudo”. Os caseiros são, na verdade, uma forma de testar (as músicas), inclusive com os rapazes da banda. Leo é o cara que eu tenho mais intimidade, e é o primeiro para quem eu mostro. “Escuta aí. Se for uma merda me fala que eu já jogo fora”. E eu respeito e escuto muito ele. Então tem músicas que ele vira e fala: “Isso é muito bom”. E tem outras que não. Mas agora quero deixar a banda tomar conta. Já tenho músicas inéditas para um próximo disco, que não vai ser só de inéditas porque tem muita coisa dos outros discos que eu queria dar uma chance. Sucesso? Tem muita gente que admiro que não fez tanto sucesso. Velvet Underground, Tom Zé… Se for igual a eles, já está ótimo (risos).

http://www.lulilandia.com.br/

http://www.stelacampos.com.br/

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– Marcelo Costa é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne
– Tiago Agostini é jornalista, colaborador da Rolling Stone e assina o blog A Day in The Life
– Marco Tomazzoni é jornalista e escreve no iG Cultura
– Ariel Martini é fotógrafo. Mais fotos aqui http://www.flickr.com/photos/arielmartini/

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Leia também:
– Entrevistão do mês de abril: Romulo Fróes (aqui)
– Entrevistão com Wado, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevistão do mês de fevereiro: Nevilton e Heitor (Banda Gentileza) (aqui)

14 thoughts on “Entrevistão: Lulina e Stela Campos

  1. Bacanudo esse entrevistão, como de costume!

    Adoro o trabalho das duas. E do Scream & Yell também, of course! 🙂

    Música sempre. E ralação também.

    Abraços

    Luiza de Sá

  2. Gostei também,simples mas boa.Adorei o disco da Lulina mesmo com aquele sotaque,apesar de gostar,rsrs.O da Stela vou comprar e ver,parece bom.

    Só uma coisa:

    São dois retratos de inteligência da música popular brasileira que não toca em rádios (e nem em festivais).

    Mac,isso não é necessário,já tem post disso.

  3. A Stela eu conheço daqui do Recife, faz tempo. A Lulina eu só conheci depois do Cristalina
    e corri atrás dos Caseirinhos pra mergulhar no seu universo criativo.
    Pra mim são duas estrelas! =]
    Como a Mallu também é. Mas a Mallu caiu na graça da mídia.
    Engraçado que não fizeram cópias dela ainda. Tomara que não.
    Acho que Stela e Lulina estariam bem melhores onde foi parar a Mallu…
    Nem sei. Mas acho as duas mais maduras, trabalhos com assinatura, a Mallu ainda ta criando a sua.
    Assim, no meio do furacão. Será bom? Pra gente que ouve sim, mas penso na cabeça do artista.
    A Mallu vai ter a mesma cabeça dentro do esquema que teria fora dele?
    Penso que existe um preço a pagar por todo o esquema onde ela está inserida – será que ainda é assim?
    Penso que esse esquema ia mudar essa espontaneidade, essa liberdade do texto da Lulina – ou não?
    Mas isso é a vida, as escolhas, não tem como ficar puro, dentro de uma bolha.
    Não sou músico, não sou do meio, mas deve ser uma barra ficar diante
    de um contrato e de um esquema que pode te dar liberdade pra viver da música, mas
    que ao mesmo tempo te expõe e te transforma em produto.
    Pq ainda existe aquela coisa do lado de cá, de quem ouve, do fã indie – o tipo dodói –
    que não perdoa um artista que bota música em novela, que vai no Faustão, que o vizinho
    que usa aquela camisa pólo de marca – aquela – escuta no som do carro dele.
    Eu não me incomodo com sucesso dos artistas que gosto, o sucesso vai trazer ele pra mais perto de mim.
    Eu ainda compro cd, comprava vinil na época – ainda não sei se vou voltar a comprar – e o sucesso
    vai permitir que os produtos circulem: CD, DVD, edições especiais, toda essa parafernália que eu amo.
    Mas que eu tenho medo dos Restats, dos Fiuks… ah eu tenho sim.
    =] Só música salva!

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