Cinema: Um Sonho Possível

por Marcelo Costa

O politicamente correto é uma merda. É simples assim. E é uma merda, pois faz o mundo perder o senso de humor. Qualquer piadinha (com gaúchos, cariocas, portugueses, gays, bambis, corintianos, negros, a lista segue noite adentro) vira um exercício de análise de direitos humanos e, voilá, era uma vez a alegria do povão. Porém, esse é um dos lados da moeda. Do outro temos um sentimento tão perigoso quanto: o policiamento dos pseudo-rebeldes.

William Blake escreveu, certa vez, que “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”, mas esqueceu de dizer que nem todo mundo conseguiu encontrar a chave para abrir as portas deste castelo. Assim, para o prazer diário, o provérbio mais correto é aquele que diz que qualquer coisa em excesso faz mal. Qualquer coisa! Exemplo: dor de dente? Quanto mais dói, mais fode a vida da gente. Outro: amor.  Em excesso, chega a sufocar e não adianta afrouxar a gravata e desabotoar a camisa.

Dito isto, uma das diversões da tribo do policiamento dos pseudo-rebeldes é detonar tudo aquilo que soe politicamente correto. E a vítima recente da primeira turma foi “Um Sonho Possível”, filme que deu o Oscar (merecido) de melhor atriz para Sandra Bullock, e que conta a história verídica de Michael Oher, um jovem de origem pobre que é acolhido por uma família rica, que além de lhe dar um teto, carinho e comida, o apóia nos estudos pensando em seu futuro.

“Um Sonho Possível” é, provavelmente, o filme mais piegas dos últimos cinco anos, mas carrega uma beleza que merece ser valorizada. Leigh Anne Tuohy (o personagem oscarizado de Sandra Bullock) é uma decoradora texana que não conhece negros, muito menos republicanos. Seu marido é dono de todas as principais franquias de fast-food dos Estados Unidos, e o casal vive em uma bela e imensa casa com seu filho pequeno e uma filha adolescente.

Certo dia, Leigh Anne está voltando tarde da noite com a família pra casa quando percebe um jovem negro, imenso (não à toa seu apelido na escola é Big Mike), voltando para o colégio. Leigh Anne dá meia volta no carro, para ao lado do rapaz, e o interroga. O choque de personalidades é imenso. Ela é mandona. “Onde você está indo, Big Mike?” Ele é retraído. “Para o ginásio”. Ela continua: “Não há ninguém lá”. Da parte dele, silêncio. Ela insiste, insiste, e ele responde: “Lá é quente”.

Daqui pra frente você já descobriu tudo o que acontece, certo. A história é extremamente previsível, o que não quer dizer que seja rotineira. Leigh Anne leva o rapaz pra casa, que dorme, e com seu peso “destrói” um sofá de 3 mil dólares. Ela não sabe o que está fazendo, muito menos ele, e o bom roteiro de John Lee Hancock (que também assina a direção) permite ao espectador ir descobrindo com os personagens qual a melhor maneira de lidar com a situação – mas não se engane, não há receita.

É lógico que o filme tem final feliz, mas isso, caro leitor, você vai ter que ver no cinema. O que interessa aqui é debater essa atitude mesquinha do policiamento dos pseudo-rebeldes. “Um Sonho Possível” é acusado de paternalista. É uma defesa perigosa e a linha é extremamente tênue, mas existem pessoas – como Big Mike – que necessitam de um empurrão, de alguém que lhes indique a direção. Não é à toa que as igrejas se multiplicam como pragas em lavoura. Mas há casos e casos.

Uma crítica pedante ataca o filme por valorizar o que é apresentado como assistencialismo. É quando os ricos (uma classe perfeitamente atacável, vamos corroborar) usam os pobres para se envaidecer. É uma crítica interessante, e que acontece a todo o momento (Bono que o diga), mas se Big Mike não tivesse se transformado em Michael Oher, uma das lendas recentes do futebol americano, sua história provavelmente não teria vindo à tona – e nem aos cinemas.

“Um Sonho Possível” merece um voto de confiança, assim como críticas. John Lee Hancock poderia ter aprofundando o tema do racismo nas escolas norte-americanas, mas passa um leve verniz assim como pincela os ricos que não sofreram a mudança de Leigh Anne de forma patética, mas isso tudo ainda não é o ponto central da história, nem a coda que faça a vida de Michael Oher ficar rodeando a cabeça do espectador (ok, só de alguns) por mais tempo que as duas horas na sala de cinema.

O que fica martelando as idéias é a possibilidade de se olhar para o lado e ver o outro. O gesto de Leigh Anne é de uma beleza rara no mundo moderno, um mundo que coloca milhares de pessoas em seus carros milionários enquanto deixa outras tantas procurando comida nos restos deixados no lixo. Leigh Anne olhou para uma pessoa dessas, mas quantos olham? Quantos questionam a culpa do Estado, do governo, a sua própria culpa nesse cenário desolado?  Quantos fazem algo para tentar mudar o mundo?

Chega a ser patético criticar alguém por ajudar alguém usando isso como se fosse um defeito. “Um Sonho Possível” está (bem) longe de ser uma obra prima cinematográfica, mas tem seu valor num mundo dominado pelo irrealizável. É preciso despir-se do cinismo para entender Leigh Anne. Você pode chamá-la de paternalista e até mesmo assistencialista, mas antes seria de bom grado olhar no espelho, pra dentro do âmago, e perceber que você não está sozinho no mundo. Talvez as coisas comecem a mudar…

9 thoughts on “Cinema: Um Sonho Possível

  1. Finalmente, uma crítica sem preconceitos bobos. O filme tem problemas sim, mas está longe de ser uma bomba como dizem alguns…
    A história é bonita, e foi bem contada. Cinema também é isso.

  2. Crítica fenomenal, Marcelo.

    Você descreveu perfeitamente bem a função primordial do cinema (diria, da arte si)… De causar a reflexão da mensagem – seja naquele momento, seja posteriormente – que é transmitida ao seu receptor. E essa reflexão depende não apenas do que é o cinema (num conceito hermético), mas também da vivência desse receptor e seu “conhecimento de mundo”.

  3. Crítica fenomenal (2)
    Mas “Chega a sufocar e não adianta afrouxar a gravata e desabotoar a camisa” é a melhor frase que li ultimamente…

  4. Até que enfim alguém apontou o mal que fazem os defensores do anti-politicamente correto.
    Embora eu concorde que muitos exageros em nome do PC tornaram o mundo mais chato, em certos aspectos há que se reconhecer os méritos dessa prática.
    Ou alguém acredita que, ao menos na maioria das vezes, chamar um negro de “crioulo” não tem conotação ofensiva?
    O ponto principal da crítica é a observação do mal que todo exagero faz.

    Quanto ao filme, talvez valha assistir.

  5. finalmente alguém falou algo descente! “geralmente a trupe dos revoltados que não faz nada pra mudar o mundo” só mete o pau….

  6. Em um momento do filme quando Leigh Anne esta conversando com suas amigas e elas dizem que o gesto dela é muito nobre e que ela estava mudando a vida do rapaz e ela responde com “Não, ele esta mudando a minha vida”. Bom, isso muda tudo. Demonstra que as atitudes dela não foram meramente assistencialista… ela queria uma família com o Michael. O problema é que as pessoas assistem filme procurando defeitos e este tem vários. Não me impediu de sair do cinema feliz.

  7. Esse filme como cinema não mostra nada de impressionante. Um filme regular onde tudo é plastificado e certinho demais. Faz se sentir bem, isso é inegável, mas não acho que seja suficiente.

  8. bom, fui ao cinema depois de ler essa critica sobre “sonho impossivel”. nunca vi coisa pior na vida. o filme comeca feliz e so fica mais feliz a cada minuto. nao, nao ha conflito, nao ha trama, nao ha realidade. as frases feitas seriam hilarias se nao fossem pateticas de tao “pre-fabricadas”. quando se ve com maus ohos o resultado desse enredo, eh piegas acreditar que se trata de uma opiniao do contra e ilegitima vinda daqueles que soh reclamam e nao fazem nada para construir um mundo melhor (…). por favor. o filme eh ruim como cinema, como historia. ajudar o proximo (ou a si mesmo…) nunca foi tao chato e enxaropante.

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