Entrevista: Henrique Rodrigues

por Rafael Rodrigues

Formada em 1982, a Legião Urbana é, talvez, a mais bem-sucedida banda de rock brasileira. Suas músicas embalaram, e ainda embalam, os sonhos, as alegrias, as tristezas e os amores de muita gente. Mesmo tendo encerrado suas atividades de maneira não planejada e trágica, devido a morte de Renato Russo em 1996, a Legião continua presente na mente e nos corações de milhões de pessoas. Então, não é surpresa algumas de suas canções também sirvam de inspiração para muitos artistas em atividade no Brasil. Incluindo escritores.

Prova maior disso é o livro de contos “Como se não houvesse amanhã”, organizado pelo escritor Henrique Rodrigues, que traz vinte histórias inspiradas em músicas do grupo de Brasília, cada uma escrita por um autor diferente. Os contos tratam de temas universais como amor, perda, revolta, indignação, morte e seguem por uma via delicada, profunda e inquietante. Henrique Rodrigues fala um pouco de sua paixão pela banda de Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá e conta como foi organizar o livro.

Por que a Legião Urbana e não Barão Vermelho ou Cazuza, por exemplo? O que a Legião Urbana tem de tão interessante? Por que a banda marcou tanto não apenas uma, mas várias gerações?
A obra da Legião Urbana conseguiu não só ser um sucesso pop na época, mas também atingir um nervo lírico de várias gerações. Talvez por isso eles consigam dizer coisas até para pessoas bem novas, que nasceram depois que banda acabou. Isso é algo que acontece com os Beatles também. Você de repente vê adolescentes cantando e curtindo sem que nenhum adulto tenha imposto nada. Assim, a Legião consegue estabelecer uma relação íntima com pessoas de diferentes idades e, em vez de ser datado e local, tornou-se atemporal e universal.

Você lembra como conheceu a Legião Urbana? E qual impacto ela teve em sua vida?
Eu era bem pequeno e ouvia no rádio os hits dos dois primeiros discos. Mas lá pelos meus onze anos foi na escola, quando toda a garotada se reunia para ler em voz alta e decorar a letra de “Faroeste Caboclo”, que o encanto começou. Desde então, não parei mais de ouvir e ficar atento a tudo o que saía da Legião. Aliás, quando me entregaram o diploma na formatura (Letras, Uerj, 1999), a música que tocou foi o final de “Metal Contra as Nuvens”. Ironicamente, eu não costumo ouvir música o tempo todo, não sou dessas pessoas que “não conseguem fazer nada sem música”. Mas ouvir Legião é diferente, pois é como estar em companhia de uma pessoa querida. Aliás, a ideia deste livro surgiu de tanto eu ouvir enquanto dirigia. Deu vontade de criar uma história a partir daquelas letras.

Como foi feita a escolha dos autores? Há escritores de vários estados do Brasil… Você já os conhecia? Como foi esse processo?

Bom, quando bateu a vontade de escrever um conto a partir de “Acrilic on canvas”, comentei com o Maurício de Almeida (um dos autores que compõem a coletânea), que achou legal a ideia e disse que escreveria um sobre “Sagrado coração”. Daí a ideia foi se espalhando com entusiasmo entre outros escritores. Quando a Record topou publicar, fui atrás do grupo. Inicialmente eu pensava em uns doze ou quatorze contos, mas a ideia foi tão abraçada que ficaram vinte. Alguns escritores eu já conhecia, outros só pelos seus livros ou blogs. Com alguns eu só tive contato por e-mail. O critério foi ser assumidamente fã da banda e ter um bom texto, independente de ser um autor conhecido ou não. Acredito que, no final, ficou um grupo bem eclético, e ter representantes de vários estados, além de mostrar o quanto a Legião está presente no Brasil, nos dá um retrato também da nossa diversidade literária.

Uma curiosidade: autores diferentes escolheram a mesma música? Se sim, como foi resolvido o impasse?
À medida que os autores iam chegando para o livro, eu informava a todos quais letras já haviam sido escolhidas.  Acho que mais de um quis fazer sobre determinada letra, mas muitas músicas da Legião suscitam histórias, de modo que não teve nenhum problema. No fim, tivemos pelo menos uma música de cada disco no livro.

Muitos escritores dizem que alguns personagens de contos e romances simplesmente surgem do nada, ou seja, não estava nos planos do autor criar determinados personagens. O que faz isso possível é a liberdade que o escritor tem, no momento de criação. No caso dos contos inspirados em músicas como “Eduardo e Mônica” e “Faroeste caboclo”, ambas com personagens conhecidos, os autores já tinham os protagonistas de seus contos. E mesmo em letras sem personagens denominados, há uma certa limitação, uma espécie de “script” a ser seguido. Como foi lidar com essas questões? Você acha que houve mesmo limitações ou, ao contrário, a liberdade de criar em cima de uma criação é a mesma que a de “criar do nada”?
A liberdade de criação está presente em todos os contos. Inicialmente eu pensava ser bem difícil o modo como os autores iriam criar os contos sobre letras que já são narrativas por si só. Mas é justamente a capacidade criativa dos autores que permitiu imaginar o fim do casal Eduardo e Mônica, ou uma intriga política em Brasília envolvendo Maria Lúcia ou “Faroeste Caboclo”. Pessoalmente, curto muito esses desafios de criar um texto literário a partir de um tema. As letras sugerem histórias, e o modo de trabalhar esse “script” é que compõe o jogo literário, que cada um tratou à sua maneira. Foi mais ou menos como olhar a lua e querer fazer um soneto. Você tem um assunto e uma forma, e a liberdade está em como vai trabalhar esse material.

Você, como poeta, já escreveu versos inspirados em prosa alheia (o contrário do que é feito em “Como se não houvesse amanhã”)? Além da inversão do gênero, há mais diferenças?

Como estudei literatura por vários anos, tanto teoricamente quanto na prática, acabei experimentando criar textos de várias formas possíveis. Já escrevi conto a partir de teatro, poesia a partir de prosa ou cinema, romance a partir de outro romance etc. É interessante que cada categoria de texto tem um tempo de respiração próprio, e é preciso praticar para aprender a respirar com o texto – ou fazer ele respirar com o ritmo pretendido. Estudei muito a questão do humor na escrita, e isso também me permitiu simular registros de vários autores diferentes. O aspecto lúdico de encarar o texto é fundamental quando se pensa em lidar com gêneros diferentes.

A Legião Urbana se originou de uma banda punk, o Aborto Elétrico, e algumas músicas da Legião contestam ideias e convenções sociais. Ou seja: quase todo jovem ouviu e gostou da Legião, enquanto a banda estava na ativa, já que quase todo jovem é um contestador por natureza. Você acha que, por conta de sua popularidade, de certa forma a Legião moldou a geração dos anos 1980, que foi a geração que mais teve contato com o grupo?
Acredito que sim, sobretudo nos primeiros discos da banda, que tinham um teor contestatório muito grande. Esse período de final de ditadura e retorno da democracia, em que os “filhos da revolução” se perguntavam “que mundo é esse que nos legaram?” teve a Legião não só como trilha sonora, mas também como porta-voz por meio das suas letras.

Há uma característica muito marcante nos contos, que é o tom intimista deles. As letras da Legião Urbana meio que desarmam, despem o ouvinte?

Os discos da Legião foram se tornando cada vez mais líricos e intimistas. Talvez por não se restringir à questão sociopolítica e invadir a alma das pessoas com letras como as de “Pais e filhos”, “Vento no litoral” e “Giz”, a banda tenha se tornado tão atemporal. Essa carga poética tende a ser captada pela literatura e recriada com o mesmo impulso nos contos.

Como as coletâneas ou shows da Legião, com certeza vai ter gente reclamando que faltou um conto sobre esta ou aquela música… Você está preparado para esses pedidos e quem sabe até para um “Como se não houvesse amanhã – volume 2”?

Bom, eu mesmo gostaria de ter feito contos sobre várias músicas de que gosto muito. Deve ser normal esse tipo de reclamação e pedido. Mas uma continuação dependeria da aceitação desse primeiro livro. Eu encararia com o maior prazer fazer outro.

A resposta é óbvia, mas vamos lá: a Legião Urbana faz falta hoje? Por quê?
“Como se não houvesse amanhã” está sendo lançado quando o Renato Russo faria 50 anos, e  quase 14 depois que a banda terminou. A Legião faz falta mas ao mesmo tempo está tão presente nas nossas vidas que fizemos essa homenagem à obra que nos deixaram e que contribuiu para a nossa educação sentimental. Temos muita superficialidade na cultura pop hoje e acho que falta um pouco essa densidade da Legião. Isso, talvez, faz com que ela permaneça como uma referência tão forte.

3 thoughts on “Entrevista: Henrique Rodrigues

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.