Otto: alegria e redenção no Ibirapuera

por Marco Tomazzoni
foto: Carlos Augusto Gomes

Otto está feliz. Se ele já enfrentou nuvens negras com a separação de Alessandra Negrini, um pé da gravadora, a morte da mãe e a conversa de que é alcoólatra, tudo isso ficou para trás no momento em que subiu ao palco do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, para lançar “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos” com ingressos esgotados. Sombrio, o disco pode escorrer por “linhas e formas de caos”, como alerta o encarte, mas ao vivo o cantor e percussionista pernambucano transforma a dor em energia pura, fazendo um grande apanhado de sua carreira e dando alegria a um fiel grupo de fãs.

Isso porque a trajetória de Otto, mesmo que diluída em “Certa Manhã”, sempre teve forte identidade regional – maracatu, coco, samba, frevo e ciranda aparecem desde seu primeiro álbum, “Samba pra Burro” (1998), rejuvenescidos pela guitarra ou eletrônica. O resultado é que, não tem jeito, suas músicas são naturalmente dançantes. O ar sisudo do auditório não impediu que desde o início um clima de balada baixasse, se instalasse entre as poltronas e funcionasse como uma espécie de mola para deixar todo mundo de pé.

Uma banda espetacular está por trás desse sucesso. Fernando Catatau, que também participou das gravações do disco, provou porque é um dos maiores guitarristas do país e sozinho fez um show à parte. De deixar qualquer um boquiaberto. Catatau trouxe Rian Batista do Cidadão Instigado para tocar o baixo, acompanhado de grandes representantes da cena pernambucana: Bactéria, do Mundo Livre S/A, nos teclados, e Pupillo, da Nação Zumbi, destruindo na bateria – duas bandas, aliás, que Otto já integrou. Completam a formação o guitarrista Junior Boca (de muletas, tocou sentado) e os percussionistas Malê e Axé, que acompanham Otto há anos.

Mas nada teria efeito se o protagonista não estivesse a todo vapor. Logo depois de um vídeo com imagens de Dom Hélder Câmara, Otto entrou em cena para defender “Filha”, dos versos “aqui há paz e alegria” e “aqui é festa, amor”, cartão de visitas mais do que verdadeiro. No fundo do palco, uma projeção da capa do último disco. “Janaína” veio na sequência, com forte gingado, e comprovou a fórmula do show: seja pendendo para o brega (cortesia de Catatau) ou para o folclore, o som soava acima de tudo encorpado, raivoso, com guitarras altas e bateria pesada, no estilo da própria Nação Zumbi.

Nessas alturas, uma pequena multidão já se aglomerava nas laterais do palco. Aí apareceu “Lavanda”, pop radiofônico que abre o álbum “Sem Gravidade” (2003), e até os corredores centrais foram tomados por uma plateia fervorosa. A receptividade tem explicação: a maioria do repertório do show já é bem conhecido desde 2005, época do lançamento do DVD “MTV Apresenta”. Não que Otto precisasse ser apresentado, mas como eventualmente acontece na fórmula coletânea + gravação ao vivo, ajudou a sedimentar a base de fãs e atraiu um novo público para o cantor. Público esse que tem as músicas na ponta da língua e vibra com qualquer rebolado.

E quanto rebolado. Contagiado pela temperatura a seus pés, Otto não parava um minuto no lugar. Literalmente corria de um canto a outro do palco, dançava muito, fazia caras e bocas, abraçava os companheiros, tirava a camiseta e suava, suava. Foi mais de uma vez cantar no meio da galera e, como se estivesse em um programa de auditório, até deu o microfone para alguém arriscar uma palhinha. Assumindo o posto de apresentador, não raro sentava e puxava papo, além de se declarar aos fãs: “Tenho cinco coisas na vida: minha menina, meu amor, vocês, minha música e o resto”.

Mesmo sem a voz de Julieta Vinegas, “Saudade” não perdeu a força e ficou até mais latina do que em estúdio. Em “Cuba”, puro mangue beat (“Chico Science foi o cara mais importante da música brasileira nesses últimos 20 anos”), todo mundo cantou junto. Na romântica “Pra Ser Só Minha Mulher”, de Ronnie Von, Otto fez o alerta: “essa música é do Príncipe, mas eu interpreto como o Rei”, disse, se referindo à gravação de Roberto Carlos. Mas a surpresa foram os improvisos em “Condom Black” e “Renault / Peugeot”, misturadas com “Sinhá Pureza”, de Pinduca, e “Lia é Lia”, de Lia de Itamaracá, patrimônio do Recife.

Na saída para o bis, uma versão indiscutível de “Seis Minutos”, a melhor faixa de “Certa Manhã”. Otto se entregava à dor da letra, enquanto a banda acompanhava no mesmo ritmo, em fúria. Antológico (assista aqui). O retorno para o palco aconteceu com o cantor sozinho no pandeiro, tocando “Café Preto” e o samba de raiz “Conto de Areia”. Em “Naquela Mesa”, clássico de Sérgio Bittencourt que homenageia seu pai, Jacob do Bandolim, Otto cantou deitado, rolando no chão. “Podem vir os anos que for, as guerras que for, que a gente vai continuar de pé. Eu prometo”, ele garantiu no microfone. Parecia final de filme. Era a redenção.

“Filha”
“Janaína”
“Lavanda”
“Dias de Janeiro”
“Tento Entender”
“Crua”
“Nebulosas”
“Por que”
“O Celular de Naná”
“Saudade”
“Ciranda de Maluco”
“TV a Cabo”
“Cuba”
“Pra Ser Só Minha Mulher”
“Low”
“Condom Black” / “Sinhá Pureza”
“Renault / Peugeot” / “Lia é Lia”
“Seis Minutos”
Bis
“Café Preto” / “Conto de Areia”
“Naquela Mesa”
“Agora Sim”

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Marco Tomazzoni é jornalista e escreve no iG Música. Mais fotos do show aqui.

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Leia também: “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”, de Otto, por Marcelo Costa (aqui)

8 thoughts on “Otto: alegria e redenção no Ibirapuera

  1. Massa essa boa fase do Otto, sempre fui fã.
    Ele tocou aqui em Recife no carnaval no Marco Zero(principal palco ao ar livre da cidade) e foi um showzaço.
    Otto lançou um disco simplesmente sensacional – bonito e forte -, faz o Lóki do Arnaldo Baptista(temática parecida) parecer frágil.

    PS: Bactéria soltou fora do Mundo Livre há algum tempo e esse DVD gravado pela MTV é bem ruinzinho. O show é travado, alguma coisa não rolou direito naquele dia.
    Acho que a erva não era de Cabrobó. :>)

  2. No sábado o som estava muito ruim, muito baixo, mesmo para quem estava ali na frente, na boca do palco. Quando Otto filosofava, mal dava para entender o que ele dizia. A guitarra do Catatau não reverberava, se ouvia mais o povo cantando do que tudo. Essa baixeza acabou influenciando, tirou a intensidade da coisa: Otto visivelmente emocionado, entregue, mas sem eco. Adoro o disco, mas deu uma preguiça… Espero que ele toque no sesc pompéia…

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