Milk – A Voz da Igualdade

Por Nuno Manna

Logo nos primeiros anos de carreira, ainda no cinema independente, Gus Van Sant fez seu filme mais cultuado, “Drugstore Cowboy”, de 1989. Mas foi preciso um filme mais quadrado e adocicado, “Gênio Indomável”, com Robin Williams no elenco, para que a Academia o premiasse com um Oscar em 1997. O destaque rendeu a Van Sant a permissão para uma refilmagem do clássico “Psicose”, em 1998, e o convite de Sean Connery para realizar um filme produzido e atuado por ele, “Encontrando Forrester” (quase um “Gênio Indomável 2”), de 2000. O resultado de ambos foi irregular e muito criticado.

A partir de então, Van Sant voltou ao cinema independente e mergulhou em obras extremamente ousadas e autorais. Alguns filmes dessa safra, como “Gerry” (2002), que passou em branco na época, e “Elefante” (2003), premiado em Cannes, fazem dele um dos diretores estadunidenses mais interessantes das últimas décadas. Van Sant pôde se debruçar sobre suas histórias, e desenvolveu grande sensibilidade para lidar com idéias e sentimentos complexos, traduzindo-os na matéria de seus filmes. A volta de Van Sant aos holofotes – do Oscar, inclusive – com “Milk”, marca, inversamente, o retorno do diretor para a sombra de um filme.

“Milk” é convencional, de narrativa marcada e mastigada pela narração. O personagem de Sean Penn (o ativista gay Harvey Milk), enquanto conta sua história diante de um gravador, já começa o filme adiantando dados importantes e entregando aonde quer chegar. A partir dali sua história se desenrola linear e fluidamente, sem nada que fuja ao previsto – e ao previsível. O único momento que foge da linearidade é exatamente o momento, ao final, em que Van Sant repete uma cena que resume didaticamente uma das principais idéias do filme.

Em diversos momentos da história, Harvey Milk agarra um megafone e se põe a discursar diante da multidão pelas causas gay. A própria mensagem que ele registra no gravador é um discurso para ser repetido em sua posteridade. E é articulando essas diversas falas com a história pessoal de Milk e de seus companheiros que Gus Van Sant transforma seu filme em um grande discurso.

Se “Milk” não é um exemplo de primor cinematográfico – tampouco é um contra-exemplo – é o papel que ele representa socialmente que complementa sua importância. Ele é, claramente, para o diretor, Sean Penn, e também para o roteirista Dustin Lance Black, uma peça política. Os três são nesse momento tão ativistas quanto o próprio personagem que recuperam e reverenciam. E foi em prol de uma causa, e não preocupados em serem considerados gênios do cinema, que o filme foi construído.

A homofobia já carrega em si uma carga de estigma. É um tema de difícil digestão, principalmente em um país moralista como os EUA, que acabou de recusar aos gays o direito de união civil. Um filme pesado e taxativo criaria resistência e alcançaria um público muito restrito. Sem as grandes salas de cinema o filme perderia enormemente seu impacto na promoção do debate ou mesmo da visibilidade do tema.

Com tal tema em mãos, para chamar o público e então conquistá-lo, ou no mínimo mantê-lo sentado até o fim da sessão, a forma do filme é de maior importância. Por isso alguns recursos como efeitos de edição e trilha sonora pop (que inclui David Bowie e Sly and the Family Stone), aliados a uma estrutura narrativa simples, conferem a leveza e dinâmica que o filme e a situação pedem. E por mais que a legitimação de práticas afetivas e sexuais esteja em jogo, o filme não força a grandes rupturas. Joga um beijo aqui, uma bunda ali, sugere mais um esforço de naturalização com tais situações do que a promoção de choque no espectador pudico.

Algumas escolhas dos rumos da história também demonstram essa preocupação de acesso ao público. O diretor e o roteirista não foram moralistas ou ingênuos a ponto de negarem as drogas e a promiscuidade, mas tais aspectos são bastante suavizados. Por outro lado, ainda que a forma do filme tenha pouca gravidade, entram o uso de imagens de arquivo e o tradicional posfácio que conta os rumos de cada personagem para garantir a autenticidade do filme, afirmar sua relação com a realidade.

A presença de um grande ator como Sean Penn é muito importante em “Milk”. Em primeiro lugar, ela garante uma grande atuação, que foge da típica representação caricatural e exagerada dos homossexuais. Construído com sutileza e inteligência, sua atuação vai em direção da idéia de que Harvey Milk é, antes de tudo, uma pessoa que, aos 40 anos, resolveu fazer algo do qual se orgulhasse. Em segundo lugar, grandes astros ajudam a atrair grandes platéias, o que é de grande interesse dos realizadores. Além disso, o nome do ator, reconhecidamente militante em diversas causas, agrega ainda mais importância política ao filme.

Ao longo de “Milk”, com todos esses artifícios, a pessoa Harvey Milk vai dando lugar a uma entidade coletiva, um conjunto de idéias e uma luta, exatamente naquilo que o personagem diz pretender se transformar. E é em prol de disso que Gus Van Sant parece recuar. Dificilmente “Milk” viria a público com a força que veio, e teria a voz que teve, se o diretor não tivesse feito tantas concessões. O filme é em primeiro lugar de Harvey Milk, no início o personagem e crescentemente a entidade coletiva. Em segundo, de Sean Penn. Por último, do diretor e do roteirista. “Milk” é um filme que pretende evidentemente ecoar no mundo, e que sabe das dificuldades que encontrará. Se não representa um marco para o Cinema, pelo menos está cumprindo seu papel social com dignidade.

“Milk”, de Gus Van Sant – Cotação 3,5/5

– Nuno Manna é jornalista e assina o blog Reset

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