Granada, do La Carne


Por Leonardo Vinhas

“Desonestidade é a especialidade
do Cardápio das Promessas
E o Jean Charles me escreveu de Londres
disse que Londres está uma merda”.

Era uma vez uma banda chamada La Carne, que lançava seus discos por conta própria, que tocava em qualquer lugar que os chamassem, que não tinha paciência para fazer a banda “acontecer”, só queria mesmo fazer música. Rock? Pode ser – eles provavelmente dirão que é rock. Mas tem muita gente, como o dramaturgo Mario Bortolotto, que diz que eles são autores de uma arte maior. Vai saber.

Londres está mesmo uma merda, mas como costuma completar ao vivo o vocalista Linari, “e Osasco, então?”. Oz, a terra natal da banda, é território inóspito para qualquer som de guitarra que não lembre o Chimbinha. E São Paulo vai por outros caminhos que levam a esse mesmo fim. Sim, porque “independente” e “indie” não significam a mesma coisa há muito tempo.

“O indie” (carregue-se na ironia aí) é um circuito, um microuniverso com seus dogmas e cânones, uma terra de muito ego, alguma grana e pouca substância. Virou um circuitinho tão pateticamente fechado em si mesmo que um de seus mais famosos escrevinhadores criou um “canto” chamado “underground do underground” (é sério!) para colocar bandas como o La Carne, que não participam das festinhas nas boates de bebida cara ou nos apartamentos onde o pó que se acumula nos móveis não é exatamente sujeira.

“Posso garantir
Eu li no jornal:
‘CSS é tão legal'”

Eu escrevi “bandas como o La Carne”, mas não há outras como eles. O que Jorge (guitarra), Carlos (baixo), Chicão (bateria) e Linari fazem é só deles. Dá para sacar, claro, que eles ouviram muito Nick Cave, muito New Model Army. Mas nada que eles façam se assemelha às suas fontes. O La Carne é uma daquelas cinco bandas brasileiras que têm identidade própria, apesar de eu não me lembrar agora das outras quatro.
(Nação Zumbi! Lembrei uma! As outras três ta difícil…)

Essa identidade é forjada em ensaios semanais, nos quais “a gente volta ao primitivo”, conforme declarou Jorge aqui no S&Y, três anos atrás. E esses ensaios explodem em apresentações vigorosas, memoráveis, shows que são experiências emocionais e físicas extenuantes e renovadoras.

Esse apavoro sônico nunca tinha encontrado uma transcrição muito fiel em disco (o primeiro, “La Carne”, de 1997, quase conseguiu), e mesmo agora em “Granada” (2008), quarto e melhor registro dos caras, a coisa ainda não reflete o que a banda é no palco. Mas veja bem: esse é um disco que supera até o mesmo o disco de estréia da banda, aquele que já foi definido e defendido pelo músico e escritor Rubens K como “o melhor disco do rock brasileiro”. Então, esse Granada… Bom, é o “Guernica” dos caras, fácil.

“Posso garantir
Eu li no jornal:
‘Rock no Brasil não presta'”.

Primeiro disco da banda a incorporar outros instrumentos fora da trindade baixo-guitarra-bateria (há teclados, violino, percussão e sanfona), são 12 faixas que soam como carne crua e sangrenta jogada num ventilador industrial. A guitarra limpa e sem pedais faz mais estrago que qualquer distorção metida a jarro de testosterona, o baixão (que tem – coisa rara nesses dias de assepsia sonora – som de baixo mesmo) arranca nacos do estômago e recupera a frequência cardíaca dos lentos, obsoletos e impotentes. E não há no Brasil vocalista como Linari. Ponto. Basta escutar o cara em “Vergonha na Cara” para se certificar.

É complicado escolher um destaque. Dos climas soturnos de “Decida” e da faixa-título aos ribombos de “Malasuerte”, “Tratadus Pilantrae (TGP)” e a já citada “Vergonha na Cara”, o nível se mantém. Mas é inevitável não dedicar uma atenção especial a “Blues dos Seus Absurdos” e à “Londres Está Uma Merda”, que tem alguns de seus versos intercalados entre os parágrafos dessa resenha. São duas canções que traduzem, em lírica e instrumental, o que o La Carne é, e que falam pela banda mais que os elogios aqui descritos.

Uma vez, conversando com o “líder” de uma banda cujo som respeito e gosto, perguntei-lhe por que ele não gostava do La Carne. Sua resposta: “é uma banda que não me fala ao pau”. Quase completei: “é porque você não tem um”, mas deixei a ofensa (justificada) para lá. Não valia o estresse, mas sabe como é, tem gente que acha que pode mudar o mundo. E tem gente, como o La Carne, que só diz: “eu não quero saber quem morreu, eu só vim pra chorar”.

“Ah, eu amo o sol e as nuvens,
mas me sinto mal.
Mas posso garantir problemas…”

Leia também:
– Entrevista La Carne 2005, por Leonardo Vinhas (aqui)
– Site Oficial do La Carne: http://www.lacarne.com.br/

17 thoughts on “Granada, do La Carne

  1. é uma satisfação indescritível ler um texto desses, de alguém que sabe do que tá falando, e escreve com a mesma visceralidade que o som do qual ele tá falando. Leo Vinhas é foda. Essa resenha
    essa resenha, por exemplo, é como se fosse uma canção, um rock do La Carne, um “tapa na cara” de um monte de gente. da mesma forma como a própria existencia/resistência do la carne expressada no disco dos caras. muito foda.

  2. O La carne é sem sombra de dúvidas uma banda ímpar!
    É tipo mosca branca, saca?
    Tive o prazer de ver algumas dezenas de shows dos caras e são na minha a opinião uma das se não a maior banda de rock tupiniquim!
    Além de esbanjar toda essa musicalidade, lirismo e musicalidade, os caras são super humildes e gente boa pacas! Atitude de verdade.
    Sucesso pra esses cara ae que eles merecem!
    E infelizemente o rock aqui no Brasil ta uma merda, mas são bandas como o La Carne que ainda me da esperança de que algo bom possa vir acontecer. (se é que já não está acontecendo, não é)

    Ayuso – banda Monaural – SP.

  3. Se me permite, Leo, vou citar o verso que mais gostei dessa obra:

    “Sobre a sua conduta
    figurinha afetada do hype;
    eu nem quero comentar porque,
    pra mim, tipinho assim feito você
    não fede nem cheira”

    Parabéns pelo texto e um grande e saudoso abraço!

  4. A melhor banda que apareceu na minha vida de 2004 p/ cá. Adoro essa banda, esses caras, essas músicas.
    Granada é disparado o melhor disco nacional de 2008.
    Pô, devo estar mais feliz que muita gente.
    Bela e merecida matéria.

  5. Grande texto….se tu tava procurando 5 bandas para citar eu sugiro +1 Motormama de Ribeirao Preto.
    Do la Carne fica suspeito eu dizer,……..Poh, Linari (o gordo, pra nos de osasco): Paga aquela cerva no bar do Tonho da praca da led.

    Osasco e Phoda!!!!!!

  6. ontem eu passei por uma senhor gritando palavras de fim de mundo no semaforo.

    a canção granada é diferente de tudo, singular, carismatica, pessoal, familiar.

    Um dos (3)melhores discos do ano.

  7. Extora tudo!! Tamo na pilha pra ouvir o petardo!
    Vida longa à maestra instituição “La Carne” e sua música incrível!
    -rg

  8. Não conheço a banda, mas achei que o texto e os comentaristas passa a impresssão de uma panelinha reclamando de outra. É meio engraçado.

  9. É um direito seu, Regis. Mas se você frequenta shows e as ditas “panelinhas”, poderá ver facilmente que não é assim.

  10. Parabéns pelo texto, tá proporcional aos La carnes, aqui em Mogi são aclamados, no último Show rolou uma puta chuva e uma puta galera compareceu pra curtir. Os Shows dos caras é curtição e honestidade pura. Além do som ser de primeiríssima, os integrantes são de uma dignidade impecável. Longa vida ao La Carne.

  11. Completamente inoportuno o comentário do meu xará aqui no reply#12. Triste constatarmos que pessoas que não conhecem absolutamente nada a respeito de grande bandas que realmente fazem acontecer, como o genial La Carne, ainda criam circunstâncias nitidamente depreciativas embasadas em fundamento nenhum. Caro xará: não quer ouvir o Granada? Tá com preguiça de baixar os sons dos caras? É um direito que vc tem… Mas sugiro que tire sua bunda de frente deste computador e vá primeiro assitir um show do La Carne, veja e sinta (se conseguir) o que acontece e depois volte aqui para discutirmos, com base, o que é “meio engraçado”.
    No mais, caro Elmo, assino literalmente embaixo de ti: Long live Laca!

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