Blog do Editor: Um dia de silêncio

por Mac

Minha avó morreu. Quando meu pai me ligou, na terça-feira, avisando que a vozinha estava internada, uma crise de dor de estômago se instalou. Eu nunca soube como iria lidar com isso, com a perda de algum familiar próximo, e cá estava agora enfrentando. Foram duas noites em claro esperando o inevitável. A Dona Lourdes tinha 78 anos, e seu coração – de ouro, como ela costumava falar das outras pessoas – não aguentou.

É meio difícil falar da importância da Dona Lourdes na minha vida. No velôrio, conversando com meu avô (eles se separaram ainda bem jovens – hoje ele tem 80 anos), ele me confidenciava que, “apesar de tudo, ela tinha sido muito importante por ter me dado seu pai e seu tio”. E eu brinquei: “É, vô, se não fossem vocês dois, essas trinta e poucas pessoas que estão aqui não existiriam”. Rimos juntos.

A Dona Lourdes tinha um lado sério, estourado, que sempre ficou visível na personalidade do meu pai e de minha irmã. Eu sempre me desculpei dizendo que havia herdado toda doçura e força guerreira da minha mãe, mas preciso assumir que a cada ano que passa me vejo parecido cada vez mais com seu Carlos, e consequentemente com a Dona Lourdes. Chega a ser engraçado – e instrutivo – como somos cópias (melhoradas ou pioradas, a avaliação é de cada um) de nossos pais e avôs.

O lado que mais se pronunciava em vovó, porém, era o lado bondoso. Dona Lourdes tinha um sorriso largo quando estava feliz, e soltava gargalhadas deliciosas assim como tinha uma face serena quando estava triste ou emocionada – os olhos abaixavam, o sorriso se escondia e a bochecha, enrugada, completava um delicado quadro lírico de doçura. Duas coisas são eternamente ligadas a imagem da Dona Lourdes: a vassoura e as sacolinhas.

Vovó limpava a casa por prazer e dever. Nada podia estar fora do lugar, nenhuma sujeira poderia ser vista. Quando você menos esperava, lá estava ela arrumando algo. Eu sei que é clichê, mas o feijão da Dona Lourdes foi o melhor feijão que comi na minha vida. Ela ainda fazia um filézinho de pescada a milanesa que só de lembrar minha boca se enche de água. Sem contar os bolos, variados, que sempre estavam lá quando eu e minha irmã chegávamos de Taubaté para passar férias em São Paulo.

Não me lembro da rua em que ela morava na Môoca, a primeira casa, apesar de visualizar com perfeição a escadinha, os sofás do lado direito e meu vô Chico nos esperando com um chocolate Alpino. A segunda casa, que mais frequentamos, era na Tóbias Barreto, e passamos anos e anos de férias ali. Ela nos levava a vários lugares, nos apresentava São Paulo, a São Paulo que ela conhecia tão bem. Um pouco da minha paixão por esta cidade eu devo a ela. Andamos muito juntos por aqui.

Sobre as sacolinhas, uma visão recorrente. Vovó sempre aparecia, do nada, em Taubaté com suas sacolinhas milgrosas que levavam roupas, brinquedos e comida. E não só em Taubaté. Na casa de meu pai, meu tio e alguns primos também. Ela chegava com os pulsos marcados pelo peso, um sorriso largo, reclamava do calor terrível da cidade, e se divertia com a nossa felicidade diante dos presentes.

Uma de minhas primas contava, no velório, que o bom foi que ela não sofreu. Ela foi internada no sábado, com principio de pneumonia, que se complicou devido ao fato dela ter deixado de tomar os remédios para sua arritmia. Os batimentos do coração aceleraram, e na velocidade o orgão não conseguia mais bombear sangue para irrigar o corpo. Ainda na semana passada ela tinha feito uma dessas viagens de sacolinha e estava reclamona e sorridente. Poder ajudar alguém – mesmo que não fosse da família – era algo que fazia seus olhos brilharem.

A Dona Lourdes é a primeira pessoa realmente importante de minha vida que se vai. Tenho, em meu coração esburacado, a lembrança de amigos fiéis, queridos e eternos, que se foram – cedo demais – mas vão sempre me acompanhar por todos os dias de minha vida até o momento de eu mesmo virar pó. Porém, perder alguém totalmente responsável por sua existência é algo maior, e faz a gente parar e pensar.

Toda vez que minha mãe, corujona, elogia aspectos da minha personalidade, digo a ela que além de ter aprendido a ser o que sou convivendo com ela, vendo ela lidar com o mundo, tenho o sangue dela correndo no meu. É inevitável. Tenho traços de personalidade claríssimos que me aproximam de meus pais. E de meus avôs. Sou uma versão atualizada – e, espero, melhorada, risos – deles. O sangue de minha avó corre por minhas veias. Ela descansou desse mundo doido, mas será eternamente a minha vozinha amada.

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