Cinema: Mutum, de Sandra Kogut


por Marcelo Costa

A adaptação de livros para o cinema sempre foi um desafio para roteiristas e cineastas, e com raríssimas e honrosas exceções estes profissionais conseguem transformar as palavras no papel em imagens inesquecíveis tão belas quanto aquelas perdidas em páginas e páginas amareladas pelo tempo e pela história. Condensar uma narrativa de centenas de páginas em duas horas de exibição é uma tarefa inglória que já derrubou muitos (e continuará derrubando).

Agora, se adaptar um livro já é um grande desafio, o que dizer de uma adaptação de uma obra de Guimarães Rosa, escritor mineiro que ia além do simples escrever: ele criava vocábulos a partir de arcaísmos, palavras populares e de seu imenso conhecimento de línguas (falava mais de sete e, “com o dicionário agarrado”, lia mais umas cinco) colocando suas “novas palavras” em uma prosa tão poética que, recomenda-se, deve ser lida sempre em voz alta. Trabalho quase impossível, com certeza.

A cineasta Sandra Kogut “inventou” de enfrentar o desafio e “Mutum”, longa baseado na novela “Campo Geral”, do livro “Manuelzão e Miguilim”, de Guimarães Rosa, é uma surpresa que emociona e encanta. A rigor, Sandra deixou de lado a narrativa pessoal de Guimarães Rosa (vamos combinar, iria soar forçado), e concentrou-se na descoberta de jovens atores que pudessem dar aos personagens Miguilim e Dito uma verossimilhança acima de qualquer suspeita. Os garotos Thiago da Silva Mariz e Wallison Felipe Leal Barroso cumprem essa função de forma arrebatadora.

Com os personagens principais em sintonia, faltava Sandra buscar a melhor forma de traduzir as emoções, os neologismos, a poesia da prosa de Guimarães Rosa para as telas. Como transformar em imagem a seguinte frase: “Mesmo assim, enquanto esteve fora, só com o tio Terêz, Miguilim padeceu tanta saudade, de todos e de tudo, que às vezes nem conseguia chorar, e ficava sufocado. E foi descobriu, por si, que, umedecendo as ventas com um tico de cuspe, aquela aflição um pouco aliviava.” Não basta focar os olhos do garoto e filmar o ato. É possível que espectadores achassem nojento e perdessem a poesia do texto. A tarefa não era fácil.

Porém, o roteiro inteligente focou-se na poesia da narração e procurou, ao máximo, transforma-la em imagens. Dessa forma, o sertão mineiro é explorado em seus detalhes e, maior mérito, apresenta ao público um Brasil que o Brasil parece desconhecer e querer deixar no passado enquanto caminha a passos largos para o futuro. O Brasil dos nossos pais e avós. Um Brasil de pratos de plástico, roupas remendadas e palavras inventadas. Um Brasil que, embora muitos nem saibam, ainda corre nas veias de seu povo. “Mutum” é a outra metade de “Saneamento Básico”, grande cinema de Jorge Furtado. Os dois filmes se completam ao falar de um Brasil que muita gente realmente não conhece.

Em “Mutum”, Thiago vive o personagem Miguilim, mas no filme ele é Thiago mesmo. Felipe passa pelo Dito, mas também manteve seu nome de batismo no longa. Estes dois garotos vivem a história de uma família que vive no Mutum, um lugar “longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto (…). No meio dos campos gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra.” Thiago tem oito anos, acabou de ser batizado, muito embora esse rito de passagem não vá proteger sua família das “tragédias” vindouras.

Primeiro, a briga dos irmãos pela mesma mulher. No sertão não há diálogo: é tudo no facão. Se não tem como conversar, melhor partir, e o ente mais querido de Thiago Miguilim deixa a casa num dia de chuva e trovoadas. Os meninos, embaixo de uma mesa – à luz de velas – comentam: “Deus tá castigando a gente”. O drama segue, mas tanto a narrativa de Rosa quanto as imagens de Kogut transpiram poesia, mesmo na morte. Tanto as imagens quanto o texto mais enlevam que anuviam. E essa métrica será seguida até o final de “Mutum”, e ganha ares de clássico na cena derradeira, a cena mais tocante do cinema recente feita em terras brasileiras, quando o garoto lança o último olhar sobre o Mutum pretendendo guardar cada grão de areia no fundinho de sua alma de menino.

Sandra Kogut transforma a rica prosa poética de Guimarães Rosa em poesia visual. O resultado é um dos filmes mais líricos da retomada. E um dos melhores. “Mutum” é sublime e sobrevive ao livro sem diminui-lo ou desmerecê-lo. Além, filme e livro se entrelaçam, se envolvem, e criam uma nova perspectiva na mente do leitor espectador: cada um deles sobrevive sem o outro, mas nenhum deles substitui o outro. Se você leu o conto, o filme o levará galopando pelo mesmo sertão, com o olhar em primeiro plano, não o ouvido. Se você só viu o filme, você precisa urgentemente ler o conto. Ou seja, o melhor que você tem a fazer, caro leitor, é adentrar os mundos particulares de Guimarães Rosa e de Sandra Kogut e descobrir, como disse um homem para Miguilim, que o “Mutum era lugar bonito”.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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